quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Violência: Parte 7.

Viviam como família; eram da mesma espécie e se trucidaram com uma crueldade iniludível. Eis o ponto mais assombroso sobre os relatos narrados anteriormente. A intrigante história da comunidade de chimpanzés de Kasekela, que foi apresentada nos últimos seis textos, nos remete à pergunta: por que a violência explodiu?

Vamos pensar assim: uma comunidade pacífica de chimpanzés é observada durante anos. Os primatas foram criados no mesmo ambiente, brincaram juntos, caçavam pequenos mamíferos – os macacos colobus eram vítimas preferidas – e dividiam a carne, às vezes dando na boca; dormiam um em cima do outro, surgiam por trás das árvores e empurravam os distraídos, ao que se seguia uma perseguição amistosa; e faziam “grooming” – um comportamento de catar parasitas no pêlo do outro, alisar a pelagem entre eles, cuja função social é de aproximação entre os animais a fim de formar vínculos sólidos. Já foi mensurado que quanto mais um chimpanzé macho faz ou recebe “grooming”, mais tempo andam juntos pelo território e ampliam a mútua cooperação[1]. Esse panorama, por outro lado, vai se modificando ao ponto de a comunidade se dividir e de surgir agressões letais intragrupais; com um detalhe extremamente importante: os ataques eram raides.

Assim, o desafio para os cientistas era tentar conciliar o fato, de uma perplexidade instigante, de que animais com uma capacidade cognitiva extraordinária (memória maior do que a de um cão; capaz de identificar as inúmeras vocalizações dos membros da própria espécie, o que permite uma interação mais rica e comportamentos sociais complexos; capacidade de estratégias de caça muito sofisticada etc.), tenham chegado ao ponto em que chegou: matar com brutalidade aqueles que tinham ficado em outro grupo. Observe! Só morreu quem não entrou para o grupo dos agressores. Notável. Nas palavras de Peterson e Wrangham[2]: “Como eles poderiam ter matado os seus antigos amigos daquele modo?”.

Se por um lado os primatologistas eram de uma curiosidade desoladora, os antropólogos culturais já tinham as respostas: o homem introduziu bananas que, por sua vez, intensificou a competição entre aqueles animais pacíficos, desencadeando um comportamento de agressão letal, que não era próprio daquela espécie. Em outras palavras: a culpa é do homem.

Não resta a menor dúvida de que se trata de um argumento bastante sedutor, principalmente porque fomos doutrinados para acreditar que o ser humano é uma criação que foi colocada na natureza, inclusive arrancando uma maça de uma árvore que não deveria ter mexido, isto é, a humanidade iniciou a sua história desequilibrando aquilo que lhe era alheio: a natureza. Portanto, o homem sempre altera a natureza, não sendo, ele próprio, parte da natureza. Dito de outro modo: uma menina de Harvard sai do seu conforto em Massachusetts, embrenha-se nas fulgurais florestas equatoriais da Tanzânia, onde o índice de mortalidade infantil é de 104 crianças por mil habitantes e a expectativa de vida é de 45 anos[3], entra no equilibrado, delicado e proibido habitat natural dos chimpanzés, distribui inocentemente bananas a torta e a direita e acaba por interferir no comportamento daqueles animais. Por conseguinte, o episódio só reforça a tese da antropologia cultural: a violência deliberada permanece um traço exclusivo dos seres humanos; animal mata por comida, sexo ou território e jamais assassina os da mesma espécie.

Pois bem. Para a desgraça dos que creem na antiga ideia de que o homem é apartado das bestas o “argumento das bananas” não funciona, pelas seguintes razões:

[1] Pesquisas genéticas com outros chimpanzés de uma região distante do acampamento de Goodall descobriram que antes da distribuição de bananas o grupo Kasekela já estava se dividindo. Logo, as bananas não desencadearam a divisão. Podem ter acentuado a divisão, mas isso também não é o caso, como veremos.

[2] Os chimpanzés de Kasekela que Jane Goodall alimentou com bananas, não são os únicos animais desta espécie a viver em estado selvagem, nem no Parque Nacional de Gombe, nem na Tanzânia e muito menos na África. Era de se esperar, seguindo o “argumento das bananas”, que agressões letais entre grupos, constituídos majoritariamente por machos, fazendo patrulhas de fronteiras e raides, não fossem encontrados em lugar algum. Contudo, mais uma vez a argumentação que defende a interferência do ser humano não convence.

Em primeiro lugar, o próprio grupo de Kasekela, antes da distribuição de bananas, foi vítima de um grupo mais ao sul, Kalande, que era observado por pesquisadores que não eram da expedição de Goodall e, ora veja você, não distribuíram bananas e não mantiveram nenhum contato com os animais de Kalande, apenas observaram. O comportamento de agressão letal seguiu os mesmos padrões que depois foram relatados sobre o grupo de Goodall (o que refuta a tese de que a distribuição de bananas teria, ao menos, acentuado a divisão do grupo).

Em segundo lugar, a cerca de 130 km ao sul de Gombe, no Parque Nacional das Montanhas Mahale, um jovem professor da Universidade de Tókio, Toshishada Nishida, iniciou seus estudos sobre o comportamento dos chimpanzés em 1965 (até os dias de hoje), também de modo independente. Mais uma vez, os registros de pesquisa da equipe do cientista japonês não deixa a menor abertura para o “argumento das bananas”: nas Montanhas Mahale foi observado patrulha de fronteiras, altas taxas de violência contra chimpanzés de grupos vizinhos ou estranhos, furiosos embates entre subgrupos de comunidades vizinhas e raides. As capturas de membros isolados seguiam o mesmo padrão crudelíssimo de violência contra os da mesma espécie. Peterson e Wrangham relatam ainda um dado estarrecedor sobre os registros da equipe de T. Nishida: entre 1969 e 1982 sete machos de uma comunidade que estava sob ataque, desapareceram um por um até que toda a comunidade foi exterminada. Para o cientista japonês não havia dúvida: chimpanzés assassinavam chimpanzés. Será que era uma anomalia comportamental que tinha acometido os inocentes chimpanzés da Tanzânia? Claro que não.

Seja como for, as bananas distribuídas por Goodall nada tinha haver com as agressões letais tão elaboradas. Cães se agridem por um osso, mas não há registro de cães largando o osso e correndo com o seu grupo de machos até pegar o sujeito em emboscadas, arrancando-lhe partes do corpo e o espancando durante longos 20 minutos para, só assim, voltar e descansar. Por outro lado, são fartos os relatos de grupos de machos humanos que perseguem um único indivíduo e o barbarizam, como no caso das brigas de torcida.

[Continua]

Paulo Henrique Castro.


[1] Mitani ET AL. Male affiliation, cooperation and kinship in wild chimpanzees. Animal Behavior, 2000, 59, 885-893.

[2] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996.

[3] Atlas National Geographic. África. São Paulo: Abril Cultural. Vol. II, 2006.

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