sábado, 19 de novembro de 2011

Jonestown: o carisma do líder (continuação do texto anterior).

A ideia de suicídio coletivo já tinha sido anunciada por Jim Jones. Era uma espécie de carta na manga, para uma eventual intromissão de quaisquer elementos externos à Jonestwon. A mórbida decisão teve início a partir de um incidente: como nenhum familiar americano recebia notícias dos membros do Templo do Povo que foram abruptamente morar na Guiana, a opinião pública nos EUA, que já estava ciente dos meios como o pastor tomava os bens e arregimentava os fiéis, começou a bater na porta do Congresso americano e aí o caldo começou a entornar.
Não era um campo de concentração, mas havia muita dificuldade de sair de Jonestown. Para começar, tratava-se de uma colônia no meio de uma densa floresta tropical, 480 km selva adentro, que só se tinha acesso por avião. De fato, uma vez em Jonestown, só se podia sair no avião de Jim Jones. Mas por que não ocorreram focos de resistência e até insurreições, a exemplo do que ocorreu até em campos de concentração? Jones se serviu de diversas estratégias propagandistas. Primeiro, isolou o grupo de qualquer contato com o mundo exterior, nem com familiares mais próximos os moradores podiam falar. Nada de televisão, ou telefone, ou carta. O isolamento dificulta a divergência de opiniões. Segundo, havia um sistema de som que só o líder religioso podia usar (ligado 24 horas, o que permitia uma presença constante da voz do Reverendo, ainda que em sua ausência, já que era alimentado com gravações.). Com esse mecanismo, o “pai” do Templo do Povo propagou o medo: o mundo estava contra Jonestown, dizia. Essa era uma mensagem recorrente do pastor. Ele criou um clima de medo contínuo divulgando a falsa informação de que Jonestown estava sob iminente ataque, organizado por forças armadas que queriam destruir a colônia na Guiana.
Também para impedir a fuga de fiéis ou a formação de dissidentes no grupo, o pregador carismático dizia todas as noites, usando aquele mesmo sistema de som, conectados em auto-falantes espalhados entre as moradias: “Estou mandando alguém embora esta noite. Alguém que conhecem, em quem confiam. E eles vão agir como se quisessem ir embora. Mas é um gesto de lealdade. Vocês têm de os convencer a voltar.” Ora, com essa estratégia extremamente sutil e perspicaz, o líder religioso de uma vez só conseguia duas coisas: [1] tornava todos suspeitos (afinal, se alguém se manifestar dizendo querer ir embora, como posso ter certeza se realmente se trata de uma manifestação sincera ou de um enviado de Jones?). Isso criava um clima de insegurança; [2] fabricava vigias voluntários, pois, na melhor das hipóteses, é mais vantajoso avisar ao Reverendo sobre pessoas que “querem” ir embora, do que correr o risco de ser acusado de saber da fuga e não dizer nada. Disse um dos sobreviventes: “a coisa mais proibida de expressar era querer partir.” Assim, o chefe da seita mantinha todos em um “cativeiro voluntário” (a expressão “cativeiro voluntário” é elucidativa por dois motivos: [1] primeiro nos lembra que tudo o que ocorreu teve origem também nos mecanismos de controle do líder religioso, mas não só; [2] segundo, nos permite lembrar, como foi dito no texto anterior, que as pessoas não podem ser interpretadas como crianças que são enganadas colocando um doce na boca. Outros fatores individuais, humanos, e de interação grupal, contribuíram fortemente para o episódio medonho, como iremos explorar no próximo texto). Vamos ficar com a figura do líder religioso.
Líderes podem ser extremamente persuasivos se combinarem meticulosamente quatro conhecidos elementos da comunicação, segundo o psicólogo David Myers: [1] O modo como o comunicador é percebido; [2] o conteúdo da mensagem; [3] o canal e [4] a audiência. Por enquanto, nos interessa o primeiro: o comunicador.
Jim Jones obteve sucesso em controlar pessoas, em parte porque conduziu muito bem quatro aspectos que seduzem uma audiência: credibilidade, competência, confiabilidade e poder de atração. Ninguém que pretenda conduzir um rebanho vai muito longe sem esses ingredientes. Acontece que Jones desde a infância, por ser rejeitado e maltratado pela família, desenvolveu uma aguda sensibilidade em identificar perfis psicológicos marcados pelo desamparo, pela dor e pela rejeição.
A infância do Reverendo foi em Lynn, Indiana, cidade pobre dos EUA. Lugar tipicamente racista na primeira metade do século XX, com uma população em que a maioria dos moradores era constituída por negros pobres e uma minoria branca que dominava e excluía. Anos mais tarde, Jim Jones deu uma declaração esclarecedora sobre o impacto que o contexto social de Indiana teve em sua personalidade: “Vivendo como um rejeitado desenvolvi uma sensibilidade pelos problemas dos negros. Levei um indivíduo negro da cidade para casa e meu pai disse que ele não podia entrar, então eu disse ‘não concordo’ e não vi o meu pai durante muitos anos.” O curioso é que o poder de atração que Jones exercia sobre os negros continuou até o massacre do dia 18 de novembro em Jonestwon: a maior parte dos mortos eram afro-americanos. O Templo do Povo ficou conhecido como uma igreja de negros dirigida por um branco, como relatou um parente de uma das vítimas (Rebecca Moore). Por quê? Ora, Jones sabia o que era ser excluído e rejeitado e escolheu muito bem a sua audiência. Muitos diziam na época que o pastor só tinha de branco a pele. Juanell Smart, membro da seita, disse: “Quando as pessoas ouviam o Jim, não olhavam para ele como sendo um ‘pastor branco’, as pessoas nem olhavam para o Jim como sendo ‘branco’; ela não era ‘branco’, era só o pastor.”
Jones, ainda na cidadezinha de Lynn, instituiu um lema que fixou em uma placa na entrada da Igreja: o de integração racial. Como disse June Cordell (parente de membros da seita), para Jones “não interessava a cor da pele. Ele estava lá para receber todas as pessoas na igreja, deixou bem claro.” Portanto, para uma platéia majoritariamente constituída de excluídos, o discurso era de um excluído contra a exclusão: quer algo mais persuasivo?
Essa percepção que as pessoas tinham de Jones como um “igual” foi decisiva para o seu poder de atração. Como disse Myers: “tendemos a gostar de pessoas que são parecidas conosco.” Portanto, bem cedo Jim Jones ajustou a sua imagem para conquistar determinado auditório: os excluídos, despossuídos e desamparados, como os negros da sua vizinhança em Indiana. O futuro pastor tinha a sensibilidade e o talento para arrebanhar as ovelhas, mas não tinha a instituição social que desse as condições para Jones pôr em prática a sua vocação. Porém, as coisas mudaram quando o futuro reverendo descobriu a Igreja Evangélica em Lynn, que não permitia a presença de negros.
Por volta da década de 1930, Jones, o desamparado, achou acolhimento e inspiração no Pentecostalismo Clássico, que surgiu nos EUA em 1906 e rapidamente se difundiu pelo país. Como é peculiar aos pentecostais, os cultos eram fortemente emotivos e teatrais, com gritos, danças, explosões de louvores coletivos, músicas animadas, pregações eloqüentes dos pastores e rituais de cura no meio da multidão (tudo isso foi muito bem explorado posteriormente pelo astuto líder carismático). Além de agregar tais características nos seus cultos, pode-se dizer que Jim Jones, ao criar o Templo do Povo, foi um dos precursores do chamado Neopentecostalismo, em que o pilar fundamental é a Teologia da Prosperidade (a felicidade é aqui) e a Propaganda da Fé (uso de veículos de comunicação de massa e estratégias sutis para aliciamento de fiéis).
De acordo com o jornalista Tim Reiterman: “Ele [Jones] viu que eles [os pastores] eram acolhedores, viu que os pastores eram figuras paternas e que eles tinham poder sobre as vidas das pessoas.” Jim Jones se tornou pastor, mas não qualquer pastor. Reinventou a Igreja Pentecostal: abriu as portas para os negros e demais excluídos (principalmente idosos); prometeu, com ações efetivas, conforto nesta vida (com dinheiro da igreja, tirava os idosos de asilos e os colocava vivendo com os fiéis); pôs em prática a ideia cristã de partilha, mesclando inclusive aspectos fundamentais do comunismo soviético (até os últimos dias em Jonestown, o Reverendo prometia levar os fiéis para a Rússia da Guerra Fria e exaltava uma sociedade sem classes); tornou os cultos celebrações alegres e extasiantes; suas pregações eram ordens para acolher, agregar, amparar, incluir, aqui e agora; nunca no além morte. Disse certa vez em uma pregação: “Jesus Cristo tinha os ensinamentos mais revolucionários para dizer: alimentem os pobres, vistam os nus, acolham os estranhos, cuidem das viúvas que estão sofrendo.”
Acima de tudo, o pastor fez curas para aumentar a sua credibilidade (que depois a imprensa descobriu serem forjadas, inclusive com o episódio de uma mulher em uma cadeira de rodas que andou, mas não passava da secretária de Jones fingindo ser paraplégica). Como lembrou Grace Stoem, membro da seita: “As pessoas elevaram Jim ao nível de adoração, porque muitos acreditavam que ele havia curado seu câncer, muitos acreditavam que ele tinha salvo os filhos de um acidente. Havia muitos motivos para as pessoas admirarem, amarem, desculpar e ignorar muitas coisas que o Jim fazia.”
Assim, Jim Jones tinha credibilidade, inspirava confiança e era extremamente sedutor porque:
[1] Sabia o que era ser excluído e falava como um, o que lhe dava confiança ao falar (um dos ingredientes da credibilidade, segundo Myers, e convence a audiência);
[2] Defendia a integração racial em uma cidade altamente racista quanto aos negros, mas ele era branco. Um branco defendendo os negros contra outros brancos na primeira metade do século XX. De acordo com Myers: “As pessoas também percebem como sinceros os que argumentam contra seus próprios interesses pessoais. [...] Estar disposto a sofrer por suas convicções – o que Gandhi, Martin Luther King Jr., e outros grandes líderes fizeram – também ajuda a convencer as outras pessoas da própria sinceridade.”
[3] O Reverendo Jim Jones não ficava só no discurso; não permitia que suas palavras se perdessem nas evangelizações: pregava a igualdade e exercia a igualdade (foi o primeiro branco de indiana a adotar um afro-americano e dois asiáticos); pregava fraternidade e promovia ações sociais de amparo e acolhimento. Em Ukiah, cidade a 150 km de São Francisco, o pastor construiu uma comunidade em que as pessoas tinham comida, trabalho e moradia. Serviu-se de uma espécie de “rede de amparo”: “À medida que as pessoas idosas se juntavam, passava um ano e ele as convencia de que já tinham feito tanto pela comunidade e por isso em vez de darem 20% por que não vedem suas casas e dão o dinheiro à igreja? E isso foi o que as pessoas começaram a fazer.” (Deborah Layton, membro da seita). Os idosos se sentiam parte de uma comunidade e não um dejeto jogado em um asilo.
[4] Enquanto o Estado de bem-estar social fracassava após a quebra da bolsa, nos EUA, e a pobreza aumentava, Jones mobilizava as pessoas para dividirem o pouco que tinham com os outros, com discursos fortemente marcados pela ideologia socialista e por um caráter messiânico inconfundível: “Eu represento princípios divinos, igualdade para todos; uma sociedade onde as pessoas partilhem, onde não há ricos nem pobres. Onde não há racismo; onde houver pessoas lutando por justiça e pelo que é certo, lá estarei eu, lá estarei eu envolvido”, disse Jones em um culto, gritando, falando rápido e usando todos os truques de um bom retórico. Como lembrou mais tarde Neva Sly Hargrave, membro da seita: “Ele falava de coisas que estavam no nosso coração. O governo não cuidava das pessoas. Havia pobres a mais lá fora, havia crianças pobres.”
Jim Jones foi uma face do massacre, mas não o único fator. Outro aspecto importante de episódios como este é o comportamento humano em grupo ou quando nos sentimos parte de um grupo (como as torcidas de futebol). Sobre isso falaremos no próximo texto.
Paulo Henrique Castro.

5 comentários:

REGINA disse...

...muito bom amor, estou ansiosa para o(s) próximo(s) texto(s) pra saber o restante disso tudo...beijos.PS: Vc é demais!

Gustavo Alves disse...

A liderança negativa pode matar muitas pessoas, como na tragédia de Jonestown, a falta de políticas públicas impede que pessoas se desenvolvam como de direito, por não investir nos grupos minoritários. “Dados do Censo do IBGE de 2010 apontam que 23,91 % da população possuem algum tipo de deficiência, totalizando 45 milhões de brasileiros.” E a estrutura básica de cidades de periferia, saúde ineficiente, uma educação inexpressiva ou negando acessibilidade a pessoas com deficiência, fatos que levam milhares de pessoas à morte, e os Jim Jones da nossa política surrupiam suas vidas em troca de números em suas contas bancárias.

Gustavo Alves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Obrigado, Rê! Bom demais ver cocê acompanhando os textos. Bjs de amor!

Unknown disse...

Boa relação, Gustavo! Obrigado pelo comentário. Abraço, PH.