quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Jonestown: parte III (continuação).

O que esperamos das pessoas? Imagine uma praça em um dia de sol. Muitas árvores, crianças brincando sorridentes, jovens correndo com suas bicicletas, adultos conversando sobre o último capítulo da novela ou sobre futebol, guardas caminhando sem preocupação, um homem lê o seu jornal, alguns senhores jogam baralho e a vida segue. Nada nessa imagem irá nos espantar, pois esperamos das pessoas exatamente cordialidade, respeito, prudência, coragem, generosidade, temperança e outras tantas virtudes. E a vida segue.

Entretanto, ninguém espera naquela praça crianças enfiando o dedo nos olhos das outras, jovens apostando corrida de bicicleta em alta velocidade perto de idosos, guardas confabulando sobre propinas, uma fofoca injuriosa no banco da praça, senhores trapaceando no jogo de baralho e, a vida segue.

A nossa perplexidade diante de acontecimentos como a tragédia de Jonestown, em parte, tem origem em uma visão romântica e ficcionista da constituição humana; do que esperamos dos outros, do que somos e do que o ser humano é capaz de fazer. Do mesmo modo que esperamos acordar vivos amanhã, também não paramos para pensar que a insensatez faz parte da constituição humana. A condição do homem, além da fachada de normalidade, também é demencial. No entanto, preferimos esperar por comportamentos exclusivamente sensatos de uma criatura insensata por natureza. Se escrevo sobre Jonestown, é porque aceito a afirmação de Edgar Morin de que os casos extremos nos permitem compreender melhor o ser humano:

A escravidão, o campo de concentração, o genocídio e, finalmente todas as desumanidades são reveladoras da humanidade.” [i]

Enquanto imergidos no cotidiano, ocupados, como diria o filósofo Martin Heidegger, agimos a partir da crença de que há uma ordem normal no comportamento humano: somos racionais e, portanto, coisas como Jonestown são anomalias isoladas, da qual nada se assemelha ao que vivemos cotidianamente. Ledo engano. Jocosa farsa. Muito do que aconteceu no massacre da Guiana está relacionado com as pequenas e gradativas influências sociais que incidem sobre a personalidade dos indivíduos que, na maior parte das vezes, nos fazem agir irracionalmente (de modo emocional).

Para compreender o massacre de Jonestown, precisamos entender como o nosso comportamento é profundamente marcado pela influência de grupo, por nosso estado gregário primitivo, pela nossa identidade social, enfim aspectos relevantes que são esquecidos em casos como o ocorrido com a seita do Templo do Povo, na Guiana. Olhamos para a humanidade do homem como algo pronto, acabado, muito bem elaborado, até que uma tragédia nos acorda para o lugar desse primata, peculiarmente gregário, entre os bichos.

O Templo do Povo era um grupo social e todos nós pertencemos a um grupo na sociedade. Como o grupo molda a opinião e o comportamento individual de determinado membro? Como aderimos aos grupos? Nós precisamos pertencer a um grupo?

Em primeiro lugar, viver em grupo se deve ao fato de que herdamos o gregarismo da ancestralidade primata (instinto gregário – isto é: “que vive em bando”). Em segundo lugar, o estado gregário provocou uma forte necessidade de afiliação (Charles Darwin já havia notado o efeito esmagador da solidão, comentando o estado de prisioneiros naquilo que hoje chamamos de “solitária”. Não há saída: precisamos viver com alguém[ii]). Cito as palavras do psicólogo social David G. Myers (uma das fontes teóricas que estou usando para refletir sobre Jonestown):

Nós humanos somos uma espécie que vive em grupos. A história ancestral nos prepara para nos alimentarmos e nos protegermos – para vivermos – em grupos. Os seres humanos aplaudem seus grupos, matam por seus grupos, morrem por seus grupos. Definimos a nós mesmos por nossos grupos [...]. Nosso autoconceito – a definição que temos de nós mesmos – contém não apenas a identidade pessoal (o senso de atributos e atitudes pessoais), mas também a identidade social.” [iii]

Apesar de o cotidiano próximo nos iludir com a sensação de pleno controle sobre nossos comportamentos, a personalidade não é uma ilha (com a licença da metáfora). Acreditamos que nossas crenças e convicções não são construídas, abaladas e afetadas pelos outros, mas a verdade é que somos mais “Maria-vai-com-as-outras”, do que gostaríamos de admitir. E isso se dá não porque somos “fracos”, mas porque somos animais sociais abertamente suscetíveis a sofrer a influência dos que nos cercam, feito uma manada.

Em termos mais técnicos[iv], o nosso autoconceito (a percepção individual de quem nós somos) é formada a partir de dois componentes básicos: [1] identidade pessoal (os atributos ou traços individuais) e [2] pela identidade social (etnia, sexo, religião, profissão, ser mãe, ser pai, ser filho, músico, atleta etc.).

Acontece que ser membro da religião X (ou qualquer outro grupo social, ser torcedor do time de futebol Z, pertencer à etnia Y etc.), implica simultaneamente estabelecer o que você é e quem não é como você. Segundo Myers: “A definição do grupo a que você pertence – sua raça, religião, sexo, curso acadêmico – implica uma definição de quem você não é. O círculo que inclui ‘nós’ (o grupo interno) exclui ‘eles’ (o grupo externo).” [v] (Observe como um torcedor de futebol diz: “hoje NÓS vamos ganhar.” O curioso é que ele não é jogador do time, os próprios jogadores do time, a comissão técnica e o presidente do clube nem sequer o conhece, mas o torcedor tem esse sentimento primitivo de pertencimento ao grupo. Ele é membro do grupo).

A nossa identidade social, portanto, estabelece o nosso círculo (que inclui quem pertence ao grupo) ao mesmo tempo em que estabelece quem não pertence ao nosso círculo (os que são diferentes). De acordo com o já mencionado psicólogo do Hope Collge, a formação de grupos se dá a partir do seguinte processo mental:

[1º.] Categorização: em diversas circunstâncias estamos incluindo/excluindo os outros (e nós mesmos) em categorias: “sou brasileiro”, “sou tricolor”, “ele é professor”, “ela é mãe”, “ela é hindu”, “eu sou católico”, “ela é flamenguista”, “ele é negro”, “sou roqueiro”, “ele é gringo”, “ela é favelada”, “ele é vereador” etc. Porém, essa rotulação não é necessariamente pejorativa, conquanto seja a base para muitos preconceitos. De qualquer forma, categorizar é parte do processo mental humano em lidar com os outros e com nós mesmos.

[2º] Identificação: as pessoas se identificam com as outras e, assim, formam o “nós”. Isso se dá muitas vezes com base em pequenos detalhes (basta estar em um bar e ver um desconhecido vestido com a camisa do time de coração e haverá uma grande probabilidade de um bom bate-papo). Em outros casos, a identificação entre as pessoas ocorre por meio de vários aspectos: brasileiro, católico, carioca, tijucano, alvinegro.

[3º.] Comparação: comparamos o grupo interno (ser católico) com o grupo externo (ser evangélico). Ocorre, então, a “tendenciosidade do grupo interno”, que supõe por um lado afeição recíproca e, por outro, aversão por quem não pertence ao grupo imediato (xenofobia). O psicólogo Steven Pinker denomina esse limite entre os que pertencem ao grupo de “círculo moral”. Quem é membro do círculo é avaliado positivamente (“bom”, “inteligente”, “prestativo”, “pacífico”, “correto”, “digno” etc.). Todavia, aquele que julgamos ou acreditamos não pertencer ao círculo, são avaliados negativamente (“inútil”, “preguiçoso”, “interesseiro”, “sujo”, “burro”, “inferior”, “indigno”, “perigoso” etc.).

Pode parecer inocente, mas as coisas não param por aí. Ser membro de um grupo social envolve também uma poderosa vulnerabilidade aos influxos comportamentais do grupo, que podem levar as pessoas desde simples vaias ou gritos entusiasmados, quando a nossa torcida começa a cantar e a aplaudir em um estádio de futebol, ou mesmo insultar o árbitro, até atos de intolerância, ódio, explosões de fúria coletiva, linchamentos, brigas de torcida e chacina étnica.

Segundo Myers[vi]:

Por causa das identificações sociais, conformamo-nos às normas do grupo. Fazemos sacrifícios pela equipe, pela família, pela nação. Detestamos os grupos externos. Quanto mais importante for a nossa identidade social e mais forte a ligação que sentimos por um grupo, mais reagimos com preconceito a ameaças do outro grupo. Nomes como sérvio, tâmil, curdo e estoniano representam identidades de grupo interno pelas quais as pessoas se mostram dispostas a morrer.”

Em outras palavras, em grupo e pelo grupo somos sutilmente e de modo extremamente poderoso influenciados pelo comportamento de horda de tal modo que, sem se dar conta, fazemos muito do que não faríamos sozinhos, tendemos a abandonar os freios inibitórios (as restrições corriqueiras), chegando a perder o senso de responsabilidade individual, em um estado psicológico chamado de “desindividualização”, isto é, diminuímos a percepção de autoconsciência, de individualidade. Não somos “um”, somos o grupo. Quando desindividualizadas, as pessoas têm maior facilidade de agir sem pensar, reagindo mais prontamente ao que o grupo faz (Myers). Sim, caro leitor: somos mais “Maria-vai-com-as-outras” do que gostaríamos de admitir. Pense em como você se comporta quando está entre pessoas que você aprecia e se identifica; pense no seu círculo de amizade, no seu grupo familiar, no seu grupo religioso, nos seus colegas de trabalho. O nosso próprio modo de ser é afetado para o grupo e pelo grupo. A nossa identidade se confunde com a identidade do bando, pois ser demasiadamente diferente do grupo é ser esquisito; e ser “esquisito” significa que o grupo irá se encarregar de te condenar ao ostracismo (somos banidos e esquecidos no limbo). A vida social é um mercado de mendicância e a esmola é sermos parte de um círculo. Como disse Gazzaniga e Heatherton:

Uma motivação humana dominante é se ajustar ao grupo. [...] O desejo de se ajustar ao grupo e evitar ser ostracizado é tão grande que, em algumas circunstâncias, as pessoas se comportam de uma forma que elas mesmas condenariam em outro momento. O poder da situação social é muito maior do que a maioria das pessoas acredita, o que talvez seja a lição mais importante que a psicologia social possa nos ensinar.”[vii]

Sobre esse comportamento grupal, que os estudiosos alertam, cometemos dois erros: [a] temos uma crença muito difundida de que comportamento de horda é coisa tipicamente de adolescente; [b] acreditamos que somos imunes a influência do grupo ao qual pertencemos, pois isso é coisa de gangue e o nosso grupo não é uma gangue. Todavia, como demonstra a psicologia social, não só necessitamos pertencer a um grupo ao longo da vida, mas somos também extremamente suscetíveis às influências da facção a que pertencemos, chegando mesmo a fazer coisas que não faríamos sozinhos. Myers comenta que dificilmente um fã de rock gritaria delirantemente em um concerto em que estivesse assistindo sozinho. Pensando no comentário, tento imaginar alguém sozinho em um estádio de futebol xingando o árbitro. Uma vez membro de um grupo social, as influências intra-específicas são inevitáveis.

Pois bem. O Templo do Povo era um grupo coeso: majoritariamente pobres, negros, idosos e pessoas de pouca instrução formal, oriundas de determinada camada da sociedade americana, que tinham em comum um forte sentimento de rejeição social e de exclusão, indubitavelmente um dos mais fortes elementos de identidade grupal. Jonestown amplificou ainda mais a identidade do grupo, isolados, trabalhando juntos, sem distinção de classe, em uma rotina diária de partilha. Como disse o filho adotivo do Reverendo, Jim Jones Jr.: “Quando não se tem nada, somos parte de Jonestown, somos acionistas de Jonestown se formos afro-americanos. Dava-lhes a oportunidade de fazer parte da criação de uma utopia.”

Lá na Guiana os membros da seita encontraram seu lar, fortificaram a identidade de grupo e sedimentaram os laços de afiliação. Portanto, é visível que os aspectos apresentados sobre a formação social de grupos, a influência interna e a identidade grupal, atuaram na tragédia em Jonestown. Os membros do Templo do Povo queriam terra para plantar, queriam casa, cama e comida; queriam viver entre pessoas que não se importavam com a cor da pele e que comungavam fortemente a ideia de partilha. Queriam viver entre iguais, em uma grande família; e, como vimos, vivemos e morremos pela família. Por isso Jim Jones foi aplaudido e recebeu gritos de apoio, antes de ordenar que as pessoas tomassem veneno em Jonestown, quando disse: “Se não podemos viver em paz, morreremos em paz”.

[continua]

Paulo Henrique Castro.


[i] Morin, E. O Método 5. A Humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2003; p. 18.

[ii] Tenho pleno conhecimento da seguinte objeção: “mas, muitas pessoas vivem sozinhas”. Quanto a isso só tenho a dizer o seguinte: pesquise sobre os efeitos da solidão na saúde das pessoas; verifique o percentual de pessoas que vivem em estado de total isolamento no mundo e o compare com aquele das pessoas que vivem em grupos; por fim, verifique o sucesso das redes sociais (não por acaso denominadas desse modo).

[iii] Myers, op. Cit.; p. 192.

[iv] Cf. D. Myers.

[v] Cf. D. Myers, p. 192-193.

[vi] Myers, p. 193.

[vii] Gazzaniga, Michel S.; Heartherton, Todd F. Ciência Psicológica. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 450.

4 comentários:

Rota Romântica-Valnora disse...

Comportamento, grupos, redes sociais.
A complexidade do ser humano torna-se mais fácil de entender nas leituras que faço dos textos do Paulo Henrique.
Valmir Barbosa

Unknown disse...

Obrigado, Valmir! Muita gentileza! Grande abraço e é sempre uma honra vê-lo por aqui.

REGINA disse...

Concordo com meu primo Valmir!Estou adorando os textos sobre Jonestown!!!bjus

Unknown disse...

Que bom que está gostando, RÊ! Obrigado, Bjs!