sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Jonestown: parte IV.

Pessoas formam grupos por afinidades. O grupo, por sua vez, influencia o comportamento do indivíduo de um modo mais intenso do que supúnhamos. As pessoas formam vínculos e constroem o que são (sua identidade) a partir dessas ligações (que podem ser nexos políticos, parentais, religiosos, bairristas, étnicos, preferências musicais e esportivas, costumes, vícios, sentimentos, ofícios, ou qualquer elemento em comum). Foi esse aspecto espantoso das relações sociais que apresentei no texto anterior. Há outros aspectos extremamente relevantes que também precisam ser elucidados para impedir uma análise superficial.
Como pode ser lido no texto II sobre o massacre, o Reverendo Jones isolou os membros do Templo do Povo do resto do mundo. Essa condição de isolamento intensifica a identidade grupal (esse conceito, “identidade grupal”, foi explicado no texto III), em um fenômeno que ficou conhecido na área de Psicologia Social como “Implosão Social”:
os vínculos externos enfraquecem, até que o grupo socialmente desaba para dentro, e cada pessoa se relaciona apenas com outros membros do grupo. Isoladas da família e de antigos amigos, as pessoas perdem o acesso a contra-argumentos. O grupo agora oferece identidade e define a realidade. Como o culto desaprova ou pune as divergências, o aparente consenso ajuda a eliminar as dúvidas remanescentes.[1]
É possível afirmar, a partir dos fatos elencados, que os membros do Templo do Povo sofreram os efeitos deste fenômeno denominado “implosão social”. O grupo teve os seus vínculos externos enfraquecidos e a única fonte de identidade grupal decorria das convicções pré-existentes há anos e reforçadas pelo poder de persuasão do pastor (que foi observado no texto II). Veremos que essa intensificação da identidade do grupo, sem acesso a opiniões divergentes, foi um dos fatores mais importantes para a incrível adesão ao suicídio e complacência com o horrível homicídio de crianças.
Na véspera da tragédia, dia 17 de novembro de 1978, uma comissão do congresso americano, liderada pelo deputado Leo Ryan e por alguns jornalistas, foi à Jonestown a fim de esclarecer o que estava acontecendo com cidadãos americanos no meio da selva guianense. A posição do congresso americano era clara: uma vez que não se tem notícias dos cidadãos que foram para a Guiana e já que o próprio Templo do Povo estava sob investigação em São Francisco, era necessário averiguar se os membros da seita eram mantidos naquele país contra a sua vontade. Evidentemente que a visita não agradou ao líder religioso, que vinha alimentando e disseminando entre os fiéis a crença delirante de que o mundo estava se preparando belicamente para invadir Jonestown. O estado de isolamento, ou melhor, a implosão social serviu exatamente para que os fiéis da seita aderissem sem reservas à ideia estapafúrdia de Jones.
Logo assim que a aeronave da comissão aterrissou em Jonestown, o ambiente ficou tenso. Inicialmente, seguindo as instruções de Jones, o deputado e os jornalistas foram bem recebidos, mas a mensagem do Reverendo para seus fiéis era: “não digam nada, pois eles são mentirosos”. Muitas entrevistas foram feitas e os membros da seita diziam que estava tudo bem, que não estavam ali contra a sua vontade e que poderiam partir quando quisessem. Todavia, a comissão não estava satisfeita e percebeu que algo estava errado.
No dia seguinte, a atmosfera de tensão só piorou, mesmo porque alguns membros da seita manifestaram a sua vontade de ir embora, inicialmente por meio de bilhetes escondidos e depois explicitamente. A comissão abordou Jones, a fim de comunicar que algumas pessoas voltariam para os EUA no avião do congresso. O Reverendo ficou visivelmente decepcionado e tentava, à custa de muito esforço, convencer os dissidentes para não ir. Em determinado momento, Jones fez um apelo para a comissão: “Eu imploro, vão. Por favor, vão embora!” Infelizmente, o deputado Leo Ryan não tinha a menor noção do perigo que estava correndo e do seu triste fim. Como revelou uma testemunha posteriormente, o deputado insistia que estava protegido pelo “escudo do congresso americano”, prepotência que iria lhe custar caro.
Naquela manhã fazia um belo sol, mas, como disseram os sobreviventes, algo de sombrio estava no ar. Por volta das 11h30min o céu ficou escuro e uma incrível tempestade tropical desabou. Um dos sobreviventes, falando sobre a assustadora tempestade, disse que sua impressão era a de que o diabo havia chegado à Jonestown em pessoa.
Visivelmente transtornado com a notícia de que algumas pessoas da seita iriam embora, Jones tentou convencê-los a ficar. Como seu esforço foi em vão, o Reverendo escolheu uma macabra alternativa: permitiu que as pessoas fossem para o avião com a comitiva do congresso, mas ninguém chegou a embarcar. Um grupo de fiéis armados matou covardemente os jornalistas, os membros que iriam partir e o deputado Leo Ryan, em uma emboscada junto ao avião. Três pessoas sobreviverem se fingindo de mortas, entre elas a assessora do deputado.
Enquanto isso, pelos microfones espalhados em Jonestown foi anunciada uma reunião no pavilhão central e todos os membros deveriam estar lá. Jones anuncia a morte do deputado e diz que o ato tinha sido necessário para proteger o grupo. “[...] Eles irão torturar nossas crianças. Irão nos torturar. Não podemos permitir. Se não conseguimos viver em paz, morreremos em paz”, justificou Jim Jones, em um palanque no pavilhão, se referindo ao que acabara de fazer com os “intrusos hostis”.
Em seguida, Jones tenta persuadir o grupo de que a única saída seria o suicídio coletivo. Teriam que tomar a decisão e disse: “se alguém tem algo contra, por favor, fale agora.” Por que o grupo optou pelo suicídio coletivo e o assassinato de suas crianças? Por que, neste momento, as pessoas não repudiaram com veemência essa proposta esdrúxula de escolher a morte?
Em diversas ocasiões em que um grupo coeso tem que tomar uma decisão, como nesse momento crucial no pátio, curiosamente o debate não ajuda a esclarecer a realidade e muito menos nos orienta para tomar uma decisão lúcida, como afirma o especialista em psicologia social, David G. Myers. Ocorre um fenômeno inverso: o debate não esclarece pontos de vista alternativos, mas intensifica as opiniões iniciais partilhadas pelo grupo (o que se convencionou chamar de “polarização de grupo”). E a crença de que um suicídio coletivo seria a melhor maneira de dar uma lição ao mundo em caso de ataque externo à Jonestown estava, há tempos, sendo cultivada por Jones no Templo do Povo. Devemos lembrar também que os membros da seita não tinham acesso ao mundo exterior, como foi dito no início deste texto. As convicções dos fiéis foram forjadas de modo progressivo pelo líder religioso e intensificadas pela implosão social. A maioria estava muito crédula de que o mundo estava contra Jonestown. Jim Jones alimentava a ideia de que só em Jonestown os membros do Templo do Povo poderiam ser felizes. Certa vez disse: “Os EUA querem o exílio dos negros e dos indianos. Inglaterra também. Eles querem os imigrantes fora do país em 6 meses. A minha posição é clara: deem nos a liberdade, ou a morte.”
Ora, tente imaginar um grupo incomunicável, vivendo em uma pacifica comunidade agrícola, com casa, comida, trabalho, remédios; diariamente sendo bombardeados com a propaganda de Jones sobre um mundo podre e em guerra. Quem iria querer sair dali? Observe as palavras de uma fiel, Laura Johnston Kohl, sobre viver em Jonestown, olhando em retrospecto e aos prantos por lembrar-se da tragédia:
Nunca acreditei no paraíso, não fui educada assim. Mas quando fui para a Guiana, quando via o nascer do sol, pensei que pudesse haver um paraíso em terra. Agora já não consigo acreditar nisso.”
Outro aspecto da influência de grupo que deve ser considerado para nós compreendermos a fatídica decisão dos membros do Templo do Povo é o chamado “pensamento de grupo”, isto é: “O modo de pensar em que as pessoas se empenham quando procuram a concordância torna-se tão dominante em um grupo coeso que tende a prevalecer sobre a avaliação realista de cursos de ação alternativos.” [2]
Em um dado grupo coeso, as pessoas tendem a suprimir a dissidência para manter a harmonia do grupo, a tendenciosidade do grupo. Isso pode aumentar se houver um líder que indique a decisão que deve ser tomada, se o grupo for amigável e se houver um isolamento de opiniões discordantes das do grupo (três aspectos, já mencionados, presentes naquela reunião no pavilhão, em Jonestown). Esse fenômeno psicossocial conduz o grupo para uniformidade de pensamento, bem como para superestimar o poder e o direito do grupo (não é difícil imaginar também como isso pode levar a uma tragédia). Myers elucida 8 características do pensamento de grupo:
[1] Ilusão de invulnerabilidade: os membros do grupo desenvolvem um otimismo excessivo que impede a identificação de sinais de perigo;
[2] Crença inconteste na moralidade do grupo: os membros do grupo consideram apenas as regras morais do grupo interno, ignorando as questões éticas e morais do grupo externo;
[3] Racionalização: para cada crença e tomada de decisão, os membros do grupo defendem cada vez mais as suas convicções com toda sorte de justificativas e explicações;
[4] Visão estereotipada do oponente: o grupo externo é encarado de forma caricatural (“maus demais”, “burros demais”, “fracos demais” etc.);
[5] Pressão do conformismo: para cada dúvida levantada por um membro do grupo, sua posição é repelida pelos demais e até ridicularizada;
[6] Autocensura: as divergências são, no seio do grupo, desconfortáveis. Assim, mesmo os que têm opiniões divergentes tendem a se calar;
[7] Ilusão de unanimidade: cria-se uma atmosfera de consenso, a partir do silêncio de opiniões divergentes;
[8] Guarda-costas mentais: alguns membros do grupo são empenhados defensores das idéias e decisões majoritárias, se comportando como agentes repressores.
Considerando estas observações, voltemos aos momentos finais que antecederam a tragédia. Paramos no seguinte ponto:
Jones tinha perguntado no pavilhão: “se alguém tem algo contra, por favor, fale agora.” Na verdade tinham sim, pessoas que discordavam daquela posição. Porém, foram engolidas pela forte influência grupal. Uma mulher chamada Christine Miller se opôs na hora (como se sabe a partir das fitas de áudio que foram gravadas no momento da reunião no pavilhão e encontradas após o massacre). Miller questionava a morte como uma saída para o conflito com o “inimigo” (releia o que foi dito sobre a concepção que um integrante de grupo interno tem sobre os membros do grupo externo, no texto anterior). O diálogo entre ela e o Reverendo, na frente de quase mil pessoas foi o que se segue:
Miller: — Quando nós nos destruímos, estamos derrotados. Nós deixamos os inimigos nos derrotar. Eu olho para todos os bebês e penso que eles merecem viver.
Jones: — Eu concordo. Mas acima de tudo eles merecem paz.
Miller: — Todos nós viemos à procura de paz. É tarde demais para a Rússia? (Essa era uma das alternativas para o suicídio coletivo, oferecida ao longo do tempo pelo persuasivo pastor: em caso de ataque, ir para a Rússia comunista).
Jones: — Me perguntou sobre a Rússia e neste momento estou fazendo uma ligação para lá. O que mais sugere? Christine, sua vida foi prolongada até hoje, por minha causa.
Neste momento em que Jones ridiculariza Christine Miller, espantosamente escuta-se ao fundo da gravação gritos frenéticos de louvor e de apoio ao Reverendo. Depois, ninguém mais se manifestou contra. Um grupo armado de fiéis cercou o pavilhão, Jim Jones dá a ordem para que as crianças morram primeiro, algumas mães dão o veneno voluntariamente para seus filhos e outros menores são arrancados dos braços de algumas mães para serem envenenados. É possível ouvir desesperadores gritos e choros de mulheres, enquanto Jones diz em tom de advertência, repreensão e ironia: “Mães, mães, mães, não façam isso. Troquem as suas vidas pelas de suas crianças, mas não façam isso.” Depois foi a vez dos adultos tomarem o veneno e o relato dos sobreviventes, quanto a não resistência das pessoas, é impressionante. Ao contrário, a maioria bebeu o sulco envenenado com convicção (como já descrevi no texto I sobre o caso). Poucos fugiram para a selva. Mesmo considerando o número menor de fieis armados, não houve luta, não houve resistência. E devemos lembrar que as pessoas que estavam armadas eram, antes de tudo, fiéis do Templo do Povo. Não era uma milícia oriunda de fora do grupo, de tal modo que é importante deixar claro que o papel das armas no momento da decisão foi mínimo, senão nulo. Muitos corpos foram encontrados no interior das casas, nas plantações, nas camas, bem longe daqueles poucos fiéis que estavam com armas. No final, foram contabilizados 909 corpos, muitos deles deitados e abraçados no chão (como se estivessem esperando a morte).
(Continua)
Paulo Henrique Castro.

[1] Myers, p. 150.
[2] A definição de ‘pensamento de grupo’ é de Irving Janis, citada por Myers (2000, p. 170).

2 comentários:

REGINA disse...

Amor, os textos estão ótimos! Quero que venha outro(s) pra saber o final.bjão.te amo

Unknown disse...

Obrigado, Rezinha! Bjs de amor!