segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Jonestown: últimas considerações.

Como Jonestown foi possível? Raciocinemos, caro leitor. Vejamos algumas respostas possíveis, considerando o que já foi dito.

Alguns podem alegar que a tragédia aconteceu porque um número razoável de ingênuos perdeu o juízo e seguiu um louco: “são malucos”, dizem. Essa hipótese só explica o mundo da fantasia, não o mundo humano real, concreto, complexo, multifacetado e incerto. Vou chamar essa visão fantasiosa de “Teoria etérea sobre o ser humano” e explico as razões:

O filósofo Aristóteles afirmou que existia um quinto elemento que formava os céus. Diferentemente das coisas sublunares que eram, no antigo debate grego, compostas por ar, fogo, terra e água, os céus eram feitos por uma substância que não era gerada; uma substância, portanto, incorruptível e inalterável: era o éter. Daí, diz Aristóteles, decorria uma crença muito antiga de que o céu era a morada dos deuses, pois, supõe-se, divindade nenhuma é submetida à deterioração. Hoje sabemos que o éter, tal qual idealizou Aristóteles, não passa disso mesmo: uma mera visão ideal do mundo. “Idealizar” significa, ao menos, “criar na imaginação” e “fantasiar”.

O éter aristotélico não passava de uma fantasia. Do mesmo modo, há uma visão etérea sobre o ser humano, extremamente consolidada nos meios populares. Tal concepção afirma que o homem foi [1] criado e [2] que é uma criatura feita de modo apartado da natureza. Logo, somos etéreos. Isso implica que: o homem só erra ou porque quer, ou porque suas ações decorrem de problemas mentais. O animal nem erra e nem acerta: age influenciado pelos instintos. (É bom lembrar que se opor a Teoria etérea sobre o ser humano, como faço, não implica se comprometer com a tese de que os comportamentos humanos são isentos de responsabilidade. Evidentemente que esse é outro assunto, desvinculado da crítica que apresento).

Nos textos anteriores observamos que o instinto gregário é um poderoso motor invisível das ações humanas, contrariando fortemente a visão eterial. Pessoas podem agir de modo diferente do que agiriam. Como explicar esta aparente contradição? Ora, não foi por acaso que o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) disse que “o homem é um ser de circunstância”. Menosprezamos o impacto da vida social, do gregarismo, do viver juntos, do peso das situações e circunstâncias que surgem das interações com os outros. Esse menosprezo nos leva a explicar as ações humanas sempre em termos do “EU”, apesar dos efeitos devastadores e primitivos do “NÓS” (quantas pessoas vivendo em estado de total solidão, feito um eremita, usariam maquiagem ou fariam a barba?).

O comportamento do ser humano é sujeito às influências grupais e pode até apresentar resultados que nos provocam perplexidade, mas não nos deixemos enganar: a maioria esmagadora das nossas ações nada tem haver com doenças mentais e isso se aplica ao caso da Guiana. Desse modo, atribuo à inocente “Teoria Eterial” um caráter apressado e popularesco. Comportamentos ordinários, corriqueiros e banais nos dão uma impressão de que há uma “normalidade” nas ações humanas. A partir disto, e tomado pela crença de que os humanos são seres criados (e criados a parte, portanto isentos de influxos naturais), formamos uma imagem ideal das ações humanas. Uma imagem assustadoramente intrigante, ao supor que o homem é separado do reino animal.

Outra hipótese: a crença religiosa é a culpada. Também aqui essa resposta não me satisfaz, embora entenda que a fé religiosa é um dos mais poderosos elementos de adesão emocional no processo de formação de grupos. Pode ser que a religiosidade tenha lá o seu papel, pois indubitavelmente o ensino religioso se faz por doutrinação e qualquer forma de doutrinação é, por excelência, um processo acrítico, um mecanismo de aceitação. Certamente que a doutrinação era algo farto no Templo do Povo. Porém, não era a fé em forças sobrenaturais que mantinha aquele grupo coeso.

Perceba que ao longo dos textos sobre Jonestown eu fiz questão de grafar a palavra “reverendo” com letra maiúscula, apenas para indicar que a divindade essencial na seita Templo do Povo era o próprio Jim Jones. Havia pouco de transcendentalidade no culto, algo tipicamente das correntes Neopentecostais. Assim, é necessário separar o que decorre da doutrinação daquilo que surge da crença específica em algo além de uma experiência possível (o trancendental). Cultos de doutrinação podem ser não-religiosos, como o Nazismo, e também religiosos. Portanto, a construção do fanatismo não está necessariamente ligada ao elemento transcendental.

O que faz dos fanáticos o que são não é o elemento afim, mas as condições grupais. O elemento afim dá a identidade do grupo, mas não faz com que as pessoas sejam extremadas. Penso que ninguém ousaria dizer que o motivo do terrorismo do IRA (católicos), dos protestantes do Ulster e da Al Qaeda (islâmicos), seja a fé em si. Parece haver algo mais, não é mesmo? Precisamente por haver algo mais é que não se tem notícias de grupos terroristas agindo pelo ateísmo (sim, o grupo terrorista alemão Baader-Meinhorf era ateu, mas não reivindicavam o ateísmo e nem, muito menos, agiam em nome do ateísmo como bandeira ou como desculpa para a barbárie). É claro, concedo de imediato a tese de que a fé religiosa é um elemento de adesão emocional extremamente poderoso. Todavia, isso não promove a amplificação de tendências ao extremismo, ao menos por si só. Portanto, quer seja religioso, quer seja não-religioso, o comportamento humano é suscetível à modelagem social, podendo ou não chegar ao paroxismo da barbaridade.

A tragédia de Jonestown foi resultado de uma combinação de fatores sociais, vinculados a outro mecanismo social: a formação de grupo. Nordestinos são assassinados no centro de São Paulo, em decorrência de ataques covardes de Skinheads, por processo social semelhante ao que possibilitou o destino do Templo do Povo (quer dizer, não o ataque em si, mas o processo de formação de grupo que termina nesses atos bárbaros). Mesmo grupos reduzidos de pessoas podem levar indivíduos a fazerem o que seus pais duvidam, como o caso de cinco jovens de classe média-alta que, em 1997, atearam fogo no índio pataxó, Galdino dos Santos; e também o fato ocorrido no Rio de Janeiro, em que cinco moradores de condomínios de luxo espancaram uma empregada doméstica, no ano de 2007.

A condição grupal, dependendo da combinação de fatores sociais, corre o risco de levar o indivíduo ao fanatismo (no sentido bem específico de adesão cega). O perigo do fanatismo ronda qualquer grupo social. O Templo do Povo foi um exemplo de adesão cega. Alguns membros relataram que havia sinais de que a história daquele grupo não iria terminar bem, mas, humanamente, continuaram. Nem sempre os sinais trágicos do estado de manada são visíveis; e, quando são visíveis, nem sempre somos capazes de romper com a rede social. Apenas sabemos que, uma vez em andamento, poucos são capazes de recuar e sair da corrente que conduz o rebanho, como observou um estudo clássico em 1895, chamado “Psicologia das Multidões”, de Gustave Le Bon (1841-1931), que influenciou ninguém mais, ninguém menos do que Sigmund Freud (1856-1939).

A influência de grupo, tal qual foi descrita em várias ocasiões, nos oferece uma ideia do que o ser humano é capaz de fazer em determinadas circunstâncias, como Jonestown. Contudo, permanecerá um enigma de como exatamente a tragédia do Templo do Povo foi possível, pois toda explicação sobre o comportamento humano é incompleta. Afinal, nós somos o ser que investiga a si próprio e isso certamente contamina a nossa explicação. E se é possível tirar alguma lição do macabro evento, talvez seja esta: cuidado com o estado de rebanho, pois muitas ovelhas podem caminhar voluntariamente para o abatedouro sem, ao menos, se dar conta ou desconfiar das doces e persuasivas palavras do lobo mau (sempre coberto de lã). Neste caso, já será tarde demais para voltar.

O que nos torna humanos?

Paulo Henrique Castro.

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