À margem da Lagoa da Ponciana, na fazenda Flora, no
Ceará, havia um belo juazeiro. Lá, por volta de 1841, Manuel de Morais Rêgo,
vulgo Tartaruga, foi brutalmente assassinado[1].
Na época, era comum que crimes deste tipo ficassem impunes. Não foi diferente
com o Tartaruga. Entretanto, sua fama atravessou o século XX em todo Estado do
Ceará. Mas, o que tinha de especial com o assassinato do Tartaruga? Com o ato
brutal em si nada que o distinguisse de tantos praticados no período, e ainda
hoje. Acontece que após o triste ocorrido eventos estranhos passaram a ser
relatados no local do crime. Testemunhas descrevem que um pouco antes do
inverno, no local do crime, aparecem chamas, da altura de um homem. O fogo
aumenta e diminui, em certos casos, até desaparecer. Ao ver o “Fogo do
Tartaruga”, como ficou conhecido na região, as pessoas correm de pavor. Outras
afirmam que o surgimento do fogo é um sinal de bom inverno. Para alguns, o fogo
é a manifestação do Tartaruga para lembrar a impunidade ou, ainda, que a alma
do falecido queima no purgatório, daí a aparição do fogo. Pois bem.
É sempre a mesma história: quando o ser humano se
depara com algo que desconhece ou que é extremamente complexo, recorre às
explicações sobrenaturais. Como é possível aceitar que expliquemos a combustão
(uma reação química) desta maneira, sobrenatural, no ano de 2015? Por que
buscar razões em forças mágicas e invisíveis (em primeiríssimo lugar) do que em
razões lógicas, racionais? Não quero discutir as condições matérias, as
tradições orais, os costumes arcaicos, a deficiência educacional das pessoas
que vivem no sertão do Ceará e que, talvez, contribuam para alimentar
explicações sobrenaturais sobre o mundo. Isso porque, na verdade, as
explicações sobrenaturais são facilmente encontradas em qualquer classe social
e também em indivíduos analfabetos ou com pós-doutorado em astrofísica. Se tais
crendices são mais encontradas em uma classe do que em outra ou se estão
relacionadas com o nível de formação educacional, deixo para os debates
sociológicos. Meu interesse aqui é epistemológico (o modo como conhecemos e
explicamos os fenômenos que nos cercam), portanto filosófico. Meu objetivo é
demonstrar que as explicações sobrenaturais contribuem significativamente para
mergulhar a humanidade em ignorância e fanatismo. Vejamos o argumento,
começando por provocações:
Em 2013 o funcionário da FUNAI, Jair Condor, filmou
pela primeira vez uma tribo totalmente isolada na Amazônia: os Kawahivas,
conhecidos há 20 anos, mas sem contato com a civilização. Os nativos andavam seminus,
carregando poucos objetos (arcos e flexas, pequenos jarros de barro e cestas de
palhas). Os Kawahivas são nômades e se deslocam conforme a caça. Agora vamos
fazer o que os filósofos chamam de experimento mental:
Estamos no século XXI e provavelmente você está lendo
este texto em um computador ou, o que é ainda mais espantoso, em um smartphone.
Vamos supor que seja um smartphone. Seu smartphone não tem nada de sobrenatural
e todos nós sabemos disso. Porém, vamos imaginar um encontro hipotético com os Kawahivas
e nosso primeiro presente será um par destes fabulosos aparelhinhos, daqueles
que carregam desenhos de maças. Separe dois membros da tribo na floresta e lhes
coloque para falar um com o outro pelo Face Time (um software desenvolvido para
fazer simultaneamente chamadas de áudio e vídeo). Imagine a cena, amigos. Será
que alguém tem dúvidas do que iria acontecer na cabeça dos nativos, quando um visse
e ouvisse o outro em um objeto estranho na palma da mão? Provavelmente, como
podemos esperar de acordo com a terceira Lei de Clarke (“qualquer tecnologia
suficientemente avançada é indistinguível da magia”), os Kawahivas iriam fazer
comentários sobrenaturais sobre o misterioso artefato e, talvez, até fizessem
algum ritual exótico para a Apple, divinizando ou demonizando a maça.
Mesmo dentro da nossa própria civilização é possível
encontrar o mesmo comportamento mágico em apelar primeiro para as explicações sobrenaturais,
do que para a dúvida e subsequentes tentativas de explicações racionais, seja
para artefatos, seja para fenômenos da natureza, como o Fogo do Tartaruga. E, se
no sertão cearense se explica o desconhecido a partir de compreensões
sobrenaturais, há alguns no leste dos EUA (Ohio, Pensilvânia e Indiana) que
recusam usar carros, preferindo usar carroças (sim, aquelas feitas de madeiras
que vemos em filmes de faroeste), em nome de entidades sobrenaturais: a Igreja
Menonita Amish da Velha Ordem.
No dia 21 de janeiro do corrente ano, na sede da
Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, reuniram-se vários
líderes religiosos, de diversas crenças, para discutir a questão da intolerância
religiosa. Na ocasião, o Babalaô Ivanir dos Santos, ao lado de Rabinos, Padres,
Pastores, Mulás etc. disse que “não devemos ter medo do debate” e disse também
que toda sociedade deve se envolver na discussão. Achei ótimo. Penso que a
filosofia, caracterizada por questionamentos radicais, também deve apresentar a
sua contribuição para o debate. Neste sentido, continuo, como no texto
anterior, com a questão: por que preferimos explicações sobrenaturais?
[Continua]
Paulo
Henrique Castro
Um comentário:
Por que preferimos...? Caro PH, eis aí um tema multidisciplinar MESMO, mas que não exime, ao contrário, força a filosofia a se manifestar! Tendo a compor com Clarke no diagnóstico de que tudo o que nos escapa ao entendimento em nível de senso comum é automaticamente elevado à condição transcendental, sobrenatural e, assim sendo, aponta para a ignorância como causa. Mas isso não esgota a questão: temos de entender os mecanismos da psique que, no caso humano, ligam o ignorado, o inédito, mágico, ao insensato, ao sobrenatural... teriam essas liturgias fantásticas e fantasmagóricas, sido em algum tempo de nossa história, propiciadoras da celebração da vida mesmo? Porque toda a transcendentalização dos fenômenos ignorados geram a paixão do medo, da sanção ou da submissão (mesmo naquelas festivas, em que se canta, dança, mas se oferecem prendas ou sacrifícios ao "dono da festa")? Se saber e poder, o que faz com que existam tantos cientistas, mestres, doutores que admitem uma crença no desconhecido? Porque essa precarização do real em função do oculto? Com uma das palavras, você, meu caro! Abs.
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