Yasmin era uma
menina rara nos tempos de hoje: adorava ler um Machado de Assis do que baixar
novos aplicativos no celular. Franzina, loira por sua ascendência polonesa e
atormentada por uma forte miopia, que lhe rendeu o apelido crudelíssimo de
“fundo de garrafa”, era de uma alegria de fazer inveja aos rabugentos de
plantão. Costumava frequentar aquelas feirinhas de livros itinerantes no Rio de
janeiro, onde encontra-se ótimos livros por preços bem baratos.
Ela tinha 12 anos
quando a medonha desgraça aconteceu. O pai, pobre coitado, repetia sem parar,
aos prantos e aos berros, debruçado sobre o caixão: — Não é justo! Não é Justo!
A mãe, entorpecida, se agarrava a uma antiga boneca de pano da filha querida.
Certa manhã,
quando se dirigia ao Largo do Machado, em frete ao seu prédio, a animação de Yasmin
era tão visível quanto a sua distração. É que a feirinha de livros estava justamente
no seu bairro; diante dos seus olhos, aéreos feito qualquer adolescente que só
vê a tela do smartphone e nada mais. Foi
a última vez que foi vista viva.
O corpo fora
encontrado à noite, não muito longe dali, na Rua Corrêa Dutra, dentro de um
carro roubado e abandonado no local. Os testes da perícia comprovaram não só a
violência sexual, mais também encontraram vestígios de pele nas unhas de
Yasmin, sêmen, fios de cabelos pretos e sinais claros de luta. Entretanto, a
peça fundamental da investigação foi uma carteira de identidade, encontrada
pelos policiais embaixo do banco do carro. As câmeras do condomínio, que fica
próximo a esquina da Corrêa Dutra com a Rua Bento Lisboa, só confirmaram o que
o delegado já sabia: o autor do crime era o síndico do prédio que a pequena Yasmin
morava.
Diante dos testes
de DNA com o material coletado, a identidade encontrada e as imagens claras, o
próprio síndico confessou o crime, não deixando dúvidas para o tribunal. O
intrigante e bizarro no testemunho do síndico foi a motivação para o crime: uma
entidade espiritual havia exigido o sacrifício de uma virgem. Evidentemente
que, descartada a hipótese de doença mental, o juiz deu a pena máxima para o
sujeito.
Bem, a maioria de
nós concordaria que as provas racionais apresentadas no caso Yasmin eram
suficientes para condenar o réu; e, poucos estariam inclinados a aceitar que o
réu deveria ser absolvido, baseado na alegação de que quando uma entidade
sobrenatural manda alguém agir de certo modo, a desobediência seria a própria
desgraça eterna e que, portanto, o síndico agiu certo.
É claro que o caso
de Yasmim é uma situação extrema e que nos conduz a um acordo sobre o que o
síndico merece, independente da filiação sobrenatural do indivíduo. Também estamos
de acordo sobre qual deveria ser a escolha que ele deveria fazer: agir de modo
contrário a recomendação da suposta entidade sobrenatural (que vou chamar de Boogie Woogie, para não começar a estranha
e suspeita ladainha de que “religião não se discute”). Mas, todos os dias, as
pessoas são censuradas ou elogiadas por ações que estão de acordo ou não com
critérios supostamente determinados por entidades sobrenaturais. Há pouco li em
uma rede social a seguinte expressão: “De
50 pessoas convidadas para a igreja, 05 vão. Agora, de 20 pessoas convidadas
para uma festa, 200 vão. O mundo é dos espertos, mas o Céu é dos escolhidos.”
Algumas indagações surgem para aqueles que não se contentam com explicações
fáceis e exercitam os miolos periodicamente: O que faz a festa ser menor do que
a igreja? Por que os 200 que escolheram ir à festa foram censurados? Baseado em
que uma festa é avaliada negativamente se comparada com a igreja? Por que neste
caso (escolher ir à igreja ou à festa), estamos inclinados a seguir preceitos
sobrenaturais para as ações e no caso de Yasmin preferimos as explicações
racionais? — Por mais evidente que a resposta possa parecer, foque no ponto
certo da questão: seguir ou não seguir a orientação de uma entidade
sobrenatural para agir e avaliar o comportamento alheio? — Onde está o limite
entre aceitar ou não aceitar orientações sobrenaturais?
Vejo pessoas
discutindo vários pontos de vistas sobre os terroristas do Charlie Hebdo: fanatismo, geopolítica, fraternidade, liberdade,
direitos e deveres; religiosos de outras crenças condenado o Islã, outros
pedindo tolerância entre as religiões, mas não vejo ninguém discutindo o papel
da crença em entidades sobrenaturais nas ações de todos nós. Perceba: não é discutir
uma crença específica em fada
madrinha, Laksmi, Javé, Alá, Quetzalcoalt ou Kannon, por exemplo. Trata-se de
psicologia de grupo e o papel das explicações sobrenaturais que influenciam o
comportamento humano. Por que em certos contextos as explicações sobrenaturais
são bem-vindas e as explicações racionais não (e vice-versa)?
[Continua na próxima postagem]
Paulo Henrique Castro
2 comentários:
É, meu caro e arguto PH, é a transcendentalização dos afetos humanos, sob a forma de uma ordem superior (Deus, deuses etc.), para nos liberar da reflexão séria sobre o homem e sua humanidade, como a que vc faz nesse texto! Apontar uma outra instância, para além do homem, como causa tanto da beleza como da miséria é farto sinal de impotência! Sigo no aguardo do próximo post para continuarmos a conversa e de que venham outros interlocutores, forte abraço, mestre!
Obrigado pelo comentário, meu amigo Carlos!
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