domingo, 11 de janeiro de 2015

Sobre explicações sobrenaturais.

Yasmin era uma menina rara nos tempos de hoje: adorava ler um Machado de Assis do que baixar novos aplicativos no celular. Franzina, loira por sua ascendência polonesa e atormentada por uma forte miopia, que lhe rendeu o apelido crudelíssimo de “fundo de garrafa”, era de uma alegria de fazer inveja aos rabugentos de plantão. Costumava frequentar aquelas feirinhas de livros itinerantes no Rio de janeiro, onde encontra-se ótimos livros por preços bem baratos.
Ela tinha 12 anos quando a medonha desgraça aconteceu. O pai, pobre coitado, repetia sem parar, aos prantos e aos berros, debruçado sobre o caixão: — Não é justo! Não é Justo! A mãe, entorpecida, se agarrava a uma antiga boneca de pano da filha querida.
Certa manhã, quando se dirigia ao Largo do Machado, em frete ao seu prédio, a animação de Yasmin era tão visível quanto a sua distração. É que a feirinha de livros estava justamente no seu bairro; diante dos seus olhos, aéreos feito qualquer adolescente que só vê a tela do smartphone e nada mais. Foi a última vez que foi vista viva.
O corpo fora encontrado à noite, não muito longe dali, na Rua Corrêa Dutra, dentro de um carro roubado e abandonado no local. Os testes da perícia comprovaram não só a violência sexual, mais também encontraram vestígios de pele nas unhas de Yasmin, sêmen, fios de cabelos pretos e sinais claros de luta. Entretanto, a peça fundamental da investigação foi uma carteira de identidade, encontrada pelos policiais embaixo do banco do carro. As câmeras do condomínio, que fica próximo a esquina da Corrêa Dutra com a Rua Bento Lisboa, só confirmaram o que o delegado já sabia: o autor do crime era o síndico do prédio que a pequena Yasmin morava.
Diante dos testes de DNA com o material coletado, a identidade encontrada e as imagens claras, o próprio síndico confessou o crime, não deixando dúvidas para o tribunal. O intrigante e bizarro no testemunho do síndico foi a motivação para o crime: uma entidade espiritual havia exigido o sacrifício de uma virgem. Evidentemente que, descartada a hipótese de doença mental, o juiz deu a pena máxima para o sujeito.
Bem, a maioria de nós concordaria que as provas racionais apresentadas no caso Yasmin eram suficientes para condenar o réu; e, poucos estariam inclinados a aceitar que o réu deveria ser absolvido, baseado na alegação de que quando uma entidade sobrenatural manda alguém agir de certo modo, a desobediência seria a própria desgraça eterna e que, portanto, o síndico agiu certo.
É claro que o caso de Yasmim é uma situação extrema e que nos conduz a um acordo sobre o que o síndico merece, independente da filiação sobrenatural do indivíduo. Também estamos de acordo sobre qual deveria ser a escolha que ele deveria fazer: agir de modo contrário a recomendação da suposta entidade sobrenatural (que vou chamar de Boogie Woogie, para não começar a estranha e suspeita ladainha de que “religião não se discute”). Mas, todos os dias, as pessoas são censuradas ou elogiadas por ações que estão de acordo ou não com critérios supostamente determinados por entidades sobrenaturais. Há pouco li em uma rede social a seguinte expressão: “De 50 pessoas convidadas para a igreja, 05 vão. Agora, de 20 pessoas convidadas para uma festa, 200 vão. O mundo é dos espertos, mas o Céu é dos escolhidos.” Algumas indagações surgem para aqueles que não se contentam com explicações fáceis e exercitam os miolos periodicamente: O que faz a festa ser menor do que a igreja? Por que os 200 que escolheram ir à festa foram censurados? Baseado em que uma festa é avaliada negativamente se comparada com a igreja? Por que neste caso (escolher ir à igreja ou à festa), estamos inclinados a seguir preceitos sobrenaturais para as ações e no caso de Yasmin preferimos as explicações racionais? — Por mais evidente que a resposta possa parecer, foque no ponto certo da questão: seguir ou não seguir a orientação de uma entidade sobrenatural para agir e avaliar o comportamento alheio? — Onde está o limite entre aceitar ou não aceitar orientações sobrenaturais?
Vejo pessoas discutindo vários pontos de vistas sobre os terroristas do Charlie Hebdo: fanatismo, geopolítica, fraternidade, liberdade, direitos e deveres; religiosos de outras crenças condenado o Islã, outros pedindo tolerância entre as religiões, mas não vejo ninguém discutindo o papel da crença em entidades sobrenaturais nas ações de todos nós. Perceba: não é discutir uma crença específica em fada madrinha, Laksmi, Javé, Alá, Quetzalcoalt ou Kannon, por exemplo. Trata-se de psicologia de grupo e o papel das explicações sobrenaturais que influenciam o comportamento humano. Por que em certos contextos as explicações sobrenaturais são bem-vindas e as explicações racionais não (e vice-versa)?

[Continua na próxima postagem]

Paulo Henrique Castro                                                                                                                                                                  


2 comentários:

Carlos Zeitoune disse...

É, meu caro e arguto PH, é a transcendentalização dos afetos humanos, sob a forma de uma ordem superior (Deus, deuses etc.), para nos liberar da reflexão séria sobre o homem e sua humanidade, como a que vc faz nesse texto! Apontar uma outra instância, para além do homem, como causa tanto da beleza como da miséria é farto sinal de impotência! Sigo no aguardo do próximo post para continuarmos a conversa e de que venham outros interlocutores, forte abraço, mestre!

Unknown disse...

Obrigado pelo comentário, meu amigo Carlos!