sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Instintos.

Corria o ano de 2002. A rede de televisão britânica BBC produz e lança um documentário sobre um tema controvertido: instinto humano[1]. Ao longo do Século XX, esse tema tinha sido alvo de debates acalorados. Para boa parte das ciências humanas (psicologia, antropologia, sociologia, história etc.), a simples menção da palavra “instinto” no mesmo parágrafo que o adjetivo “humano”, era (e ainda é) uma verdadeira heresia, incluindo o risco de ir parar na fogueira. “Humano é uma coisa, bicho é outra”, diziam os clérigos do Humanismo. Mas é duro de engolir a idéia de que os homens são separados dos outros animais, até porque só nos restaria ser incluídos entre os vegetais ou minerais.

Do lado oposto ao dos Humanistas estavam os Etólogos (biólogos que estudam o comportamento animal), principalmente depois que os cientistas Karl von Frisch (1886-1982), Konrad Lorenz (1903-1989) e Nikolas Tinbergen (1907-1988), foram laureados com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973, justamente por notáveis estudos sobre o comportamento animal. Como qualquer ramo da Biologia, os cientistas que estudavam as condutas dos bichos consideraram com muito bom-senso a descoberta de Charles Darwin (1809-1882) de que os animais (incluindo os humanos) são aparentados.

Assim, chegamos ao longínquo ano de 2002 com um programa de televisão falando sobre “instintos”, muito embora o documentário tenha feito alguns humanistas pré-históricos torcerem o nariz.

Polêmicas a parte, a série da BBC foi dividida em quatro episódios: [1] Sobrevivência, [2] Desejo, [3] Competição e [4] Proteção. Vou relatar neste artigo apenas um dos quatro episódios (por motivo de espaço), com o intuito de divulgação científica, advertindo ao leitor de que há uma montanha de estudos que sustentam os aspectos meramente ilustrativos do documentário. Assim, vamos começar por um tema bem interessante: sexo.

[2] Desejo:

O narrador começa com perguntas sedutoras, junto a imagens de pessoas dançando rumba em um belo salão (aliás, rumba foi uma escolha muito adequada ao tema): “por que são vendidos mais de 20 mil Km de batom por ano?”; “O que é que cada pessoa faz mais de 3 mil vezes na vida?”; “Por que mais de 18 mil litros de loção pós-barba são usados por dia?”; “O que é que nos faz queimar 250 mil calorias ao longo da vida?”; “e o que é que 240 milhões de pessoas vão fazer hoje à noite?” Sim! Todas as respostas estão relacionadas com uma única: a prática sexual. Quando buscamos parceiros a aparência conta? E o cheiro, influencia? Quem é mais seletivo na escolha, homens ou mulheres?

Um experimento reproduzido na Imperial College and Science Museum Labraries, em Londres, testou as reações masculinas e femininas quanto ao sexo casual. Dois atores, um homem e uma mulher, tinham a tarefa de abordar (aleatoriamente) pessoas do sexo oposto, e simplesmente perguntar: quer dormir comigo?

Quem será que mais aceitou a indecorosa proposta, homens ou mulheres? Exatamente. Você acertou em cheio: foram os homens. “Os resultados foram claros: de todas as mulheres abordadas nenhuma disse ‘sim’ ao convite de um estranho.” Enquanto isso, três em cada quatro homens diziam ‘sim’ para um convite sexual de uma mulher desconhecida (a atriz), sem nem ao menos titubear. O que explica essa tamanha discrepância de prontidão sexual? A resposta fácil e nada elucidativa seria a corriqueira: “safadeza!” Entretanto, há outra explicação.

Primeiramente, considere que os humanos criaram civilizações há apenas 10.000 anos e que, do ponto de vista biológico, esse período não foi suficiente para alterar as pressões fisiológicas que interferem no comportamento há tempos. A descoberta dos anticoncepcionais deveria ter radicalmente mudado os costumes (de fato mudou, mas não ao ponto de erradicar inclinações biológicas estabelecidas milhões de anos atrás).

Apesar dos anticoncepcionais eficazes e da maior igualdade, homens e mulheres são radicalmente diferentes na postura quanto ao sexo, e a razão para isso é biológica.” O ponto fundamental é: quem fica grávida é a mulher e isso implica em um ônus adicional: “no tempo em que a mulher leva na gestação de um filho, o homem pode conceber centenas deles.” Veja: ao longo da vida a mulher libera cerca de 400 óvulos, ao passo que o homem em uma única ejaculação libera 360 milhões de espermatozóides (“a maioria dos homens é fértil o dia todo, todos os dias; as mulheres não”. O que será que isso tem haver com vontade de fazer sexo? O que será que isso tem haver com o fato de você encontrar em qualquer banca de jornais revistas pornográficas – apropriadamente chamadas de “revistas masculinas” – destinadas mais aos homens do que às mulheres?). Em média a gravidez leva 40 semanas, o que tem como efeito na mulher o gasto de 80 mil calorias extras. Essa diferença, inegavelmente, interfere no comportamento.

A diferença de grau de investimento na prole (quer para gerar, quer para criar), tem como resultado um comportamento mais seletivo entre as mulheres, mais do que entre os homens. Também a busca por sexo é mais intensa no homem do que na mulher (uma tendência, não um axioma), já que a testosterona é frequentemente liberada na corrente sanguínea dos homens.

Darwin já havia observado as diferenças de estratégias sexuais de machos e fêmeas em diversas espécies, bem como a diferente repercussão física e comportamental. Enquanto os machos disputam as fêmeas se exibindo (como o pavão), ou mesmo lutando até a morte (como os leões-marinhos), as fêmeas buscam características no macho que façam a diferença no que diz respeito à sobrevivência e segurança (dela e da prole). São seletivas. No caso da fêmea humana, de acordo com o documentário da BBC, as características mais importantes em um homem são: ser ousado, tranqüilo, inteligente, que indique intenção de cuidar (incluindo aí segurança e conforto), ser divertido, carinhoso etc. Insistindo no aspecto ‘cuidar’, o documentário menciona o seguinte: um estudo americano descobriu que homens casados ganham 50% mais do que os solteiros. Será que eles ganham mais porque casaram, ou são casados porque ganham mais? Parece que o “bom partido” é rapidamente fisgado. Para os cientistas, isto está ligado ao instinto feminino de buscar e manter parceiros que possam sustentar a família: “no reino animal, um macho com mais recursos muitas vezes é o mais atraente.” Em outras palavras, o macho que tem mais, acasala mais (é uma tendência, não um axioma). Porém, em um primeiro momento da escolha há algo que é preponderante: a aparência. Neste quesito, mais uma vez, os critérios femininos e masculinos são muito diferentes.

De acordo com os biólogos, a forma do corpo está relacionada com a saúde. Homens que tem o corpo em formato de pêra não fazem muito sucesso. Porém, aqueles que possuem uma forma corporal parecida com um triângulo invertido (quadril estreito, ombros largos) provocam mais reações entre as mulheres. Curiosamente, vários estudos, de acordo com o documentário, demonstraram que a forma física de triângulo invertido está relacionada com força física e boa imunidade, o que sinaliza uma composição genética atraente.

Nenhum super-herói até hoje foi retratado com um físico em forma de pêra. Você já parou para pensar nisso? Os humanistas alegam que o sucesso do formato triângulo invertido esta ligado à ditadura da moda, e á indústria do entretenimento. Ora, basta você observar como o corpo masculino era retratado na antiguidade grega e romana, seja na literatura, seja nas esculturas ou na arte em geral, que veremos certo exagero na alegação dos humanistas (Aquiles jamais seria retratado por Homero como um homem barrigudo). Antes da indústria do entretenimento aparecer com o seu suposto “padrão corporal”, o formato de triângulo invertido já fazia sucesso entre as mulheres e o que a indústria fez foi apenas se aproveitar do que já era sabido: em princípio há sim uma preferência feminina por determinado corpo masculino.

O mesmo parece ocorrer no sentido oposto: homens têm preferências marcantes por determinado modelo de corpo feminino. O famoso formato de violão (quadril largo) é mais atraente em qualquer cultura. Além de sinalizar boa imunidade, essa forma de corpo feminino está relacionada com outro fator: fertilidade. Machos de diversas espécies precisam de indicadores físicos no corpo da fêmea para ampliar as chances de fecundação. O quadril largo começa na puberdade, exatamente quando começam os ciclos menstruais, do mesmo modo que as fêmeas de chimpanzés começam a ter os genitais intumescidos a partir do momento em que estão prontas para acasalar. Quanto mais intumescidos forem os genitais de uma fêmea de chimpanzé, mas elas são assediadas pelos machos do bando. As características físicas, portanto, sinalizam que as fêmeas já podem engravidar.

Moral da história: pense bem antes de dizer que “a aparência não conta. O que conta é a beleza interior.” (Claro que a tal “beleza interior” conta, mas a questão aqui é não ser cínico ao afirmar que a aparência não é relevante na escolha de um parceiro (a). Se aparência não contasse, a indústria de cosméticos já teria quebrado, se é que um dia teria existido).

Outro aspecto deste episódio é que a escolha feminina e masculina, no que diz respeito ao sexo, está relacionada ao cheiro do parceiro (a). Mulheres e homens tendem a escolher aqueles que tenham genes diferentes, mas como as pessoas sabem disso se os genes não são visíveis? E qual seria o motivo?

A Universidade de Newcastte, Inglaterra, fez o seguinte experimento: mulheres irão passar duas noites com camisas que serão posteriormente cheiradas por homens desconhecidos. As donzelas que participaram do experimento fizeram exames de sangue para detectar seis genes (todos relacionados com o sistema imunológico). A hipótese dos cientistas é a de que tanto homens, quanto mulheres escolhem parceiros que tenham genes diferentes. E um dos indicadores para saber a diferença é o cheiro natural exalado pelo corpo do sexo oposto. Pois bem. Após impregnar as camisas com seus cheiros naturais por duas noites seguidas, as camisetas foram postas imediatamente em sacos plásticos lacrados, identificados e conservados em um freezer.

Dispostos em frascos, as camisetas deveriam ser cheiradas pelos homens individualmente (eles também se submeteram a exames de sangue, claro). A tarefa era simples: cheirar e colocar em uma ordem de preferência. O resultado foi espantoso! A ordem de preferência refletia a disparidade genética, isto é, os homens escolheram preferencialmente os cheiros vinculados as mulheres com genes diferentes. Incrível, não? (Talvez seja importante repensar o uso excessivo de perfumes... vai que confunde.)

O que ocorre com o corpo no momento da atração sexual? Pupilas dilatam, o cérebro libera uma onda incrível de dopamina (substância que promove a sensação de bem-estar), feromônios são secretados no suor, aumentando o poder de atração sexual; com a liberação de altas taxas de adrenalina, ocorre um desvio da irrigação sanguínea do estômago (provocando a típica “sensação de frio na barriga”, que é descrita pelos apaixonados); o sangue irriga os lábios e os órgãos genitais e, por fim, quando o corpo está totalmente preparado para fazer sexo, esse estado provoca uma conhecida dificuldade de se concentrar em outra coisa.

Depois de tudo que foi dito, resta um último tópico: a infidelidade feminina e o ciúme masculino. Somando os aspectos sociais, culturais e biológicos, há pouca dúvida para o fato de que o homem é mais infiel do que a mulher. Mas isso evidentemente não implica que mulheres não sejam infiéis. “Estudos no mundo todo mostram que em média uma a cada dez crianças está sendo criada por um homem que não sabe que não é o seu pai legítimo.” Ora, como essa tragédia foi descoberta? As estimativas foram feitas baseadas em casos estranhos de filhos que tinham doenças hereditárias dominantes (em que ambos os genitores forçosamente tem que ter o alelo defeituoso para que a criança tenha a doença), mas os exames laboratoriais demonstravam que o pai não tinha os genes, apenas a mãe. Isso significa que ela pulou a cerca e pulou em seu período fértil.

Robert Trivers, o premiadíssimo professor de Harvard, foi um dos primeiros a estudar investimentos parentais: homens e mulheres diferem quanto ao seu empenho em criar a prole. Geralmente os machos de mamíferos não são bons pais e cabe à fêmea o encargo na criação da cria. Criar filhos de outros machos então? Raríssimo. Exige um investimento que a maioria dos machos não está disposta a pagar. Em função disso, o ciúme feminino está ligado, ao menos no caso dos humanos, ao abandono; e o ciúme masculino está ligado fortemente ao sexo. “Em termos de evolução, é desastroso para o macho criar a prole de outro, pois recursos valiosos são desperdiçados investindo em genes que não são os seus. E por esse motivo os homens têm forte inclinação instintiva para o ciúme sexual.”

Outro dado: “O ciúme sexual masculino é um instinto que se faz presente em qualquer cultura. Um estudo europeu sobre homicídios aponta o ciúme sexual como motivação em quase um terço dos casos analisados.”

Volto para as questões iniciais: “por que são vendidos mais de 20 mil Km de batom por ano?”; “O que é que cada pessoa faz mais de 3 mil vezes na vida?”; “Por que mais de 18 mil litros de loção pós-barba são usados por dia?”; “O que é que nos faz queimar 250 mil calorias ao longo da vida?”; “e o que é que 240 milhões de pessoas vão fazer hoje à noite?”

O que nos torna humanos?


[1] Fonte: Instintos. O lado selvagem do comportamento humano. Produção BBC, 2002. Distribuição nacional Editora Abril, 2005.

domingo, 2 de outubro de 2011

“Volver”

Retorno. Pedro Almodóvar, cineasta espanhol, escreveu e dirigiu um filme magnífico, que retrata as voltas e giros da vida, nossas experiências e lembranças, nossos fantasmas e demônios.

“Volver” estreou na Europa em 2006 e foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. Seu refinado roteiro expõe um tema marcante sobre a condição humana: a vida é linear ou feita de ciclos? Há quem acredite que a existência é como uma linha no tempo, sem retornos. Sim, de fato a vida não tem “bis”, o que lhe confere um tom dramático. Porém, o passado não é o que fica para trás. O passado é o que está em nós, o que nos acompanha encalacrado em nosso inconsciente, quieto, mas ativo em sua simultaneidade temporal.

Uma marca onipresente do filme é o vento, com seus rodamoinhos, suas curvas, sua força e aparente invisibilidade. Ciclos. Calmaria e retorno. O vento leva, mas volta com assuntos mal-resolvidos, como coisas que deixamos de fazer e que queríamos tanto ter realizado. Longe de se tratar de simples nostalgia, “Volver” trata dos eventos que ocorrem nas camadas mais profundas da mente humana. Fantasmas, mas vivos do que supúnhamos.

Se os feitos não realizados são fantasmas que, vez por outra, surgem, há outros tantos tipos de retornos. A saudade é um deles. Às vezes tão doída que é melhor não olhar para a foto, não ter uma peça de roupa e não ir aos lugares outrora freqüentados pelo objeto de saudade (esses lugares costumam ficar encantados). A saudade nos revela a pequenez da existência humana, ao mesmo tempo em que nos lembra nossa grandeza... Ciclos... Intermináveis ciclos. Poderíamos ser criaturas de um tipo que não percebesse a ausência daquilo que mais prezamos. Mas, não! Foi-nos dado o sabor quer doce, quer amargo de lembrar que perdemos algo; ora para sempre, ora por dias, ou por alguns instantes.

Arrependimento. A protagonista do filme, Raimunda, interpretada por Penélope Cruz, se ressente em seu silêncio mordaz por não ter dito à mãe o que gostaria de dizer. Há tempo ainda? Podemos contar com a chance de dizer o não dito? Somos criaturas de arrependimentos. Mesmo aquele que adora dizer que não se arrepende de nada na vida, talvez esteja querendo mesmo é dizer que se arrepende por ter se arrependido tanto.

Segredos. Raimunda tem um segredo intocável e muito bem guardado (haverá coisa que guardamos com tanto zelo do que um segredo?). A física está errada: segredos têm peso. Raimunda nos revela isso muito bem. E como tudo o que carregamos sozinhos é acompanhado da ânsia de os jogarmos fora, um dos momentos mais comoventes do filme de Almodóvar é o ajuste de contas de Raimunda com a filha: a protagonista não tem culpa, então por que carregou por tanto tempo pedras nas costas? Vergonha. É necessário jogar as pedras fora, dividir o peso, mas a vergonha é um freio poderoso.

A vergonha de Raimunda me fez lembrar o famoso Mito de Giges de Platão: um sujeito encontra um anel mágico que lhe dá o poder de ficar invisível. Pois bem. Giges faz tudo o que é proibido, exatamente porque a invisibilidade tirou-lhe o que há de mais humano no homem: a capacidade de sentir vergonha diante do olhar alheio.

Há um ponto em comum entre os filmes de Almodóvar e a filosofia de Thomas Hobbes: reconhecer que as pessoas reais e concretas, de carne e osso, não podem ser divididas como se fossem de dois times opostos: o bem e o mal (o chamado “moralismo maniqueísta”).

O interessante de “Volver” é que Raimunda vai e vem (bem como o mundo dela também se move nesse percurso de retornos), porque, sob o olhar de Almodóvar, ela é humana e não divina. Ciclos, apenas ciclos.