terça-feira, 13 de março de 2012

Violência: Parte 9.

Era uma manhã como outra qualquer no bloco B, onde dormiam alguns universitários africanos. Os corredores da Casa do Estudante Universitário, da Universidade de Brasília, ainda estavam naquele silêncio matutino, tranquilo, quase sepulcral. Eis que o cenário, de um torpor horripilante que quebrou a rotina, se revelou: uma pichação na parede do corredor dizia: “Morte aos estrangeiros”. Nas portas dos dormitórios dos senegaleses haviam cruzes pintadas com tintas; nas dos quartos dos brasileiros, nenhuma marca. Seria brincadeira ou um macabro anúncio xenofóbico? Corria o ano de 2007; Fevereiro, para ser mais exato. Um mês depois a resposta veio “com tudo” — por assim dizer.

Por volta das 4 horas da madrugada do dia 29 de março de 2007, as portas dos estudantes africanos foram incendiadas. Sabe-se que o incêndio foi criminoso e intencional, porque as labaredas partiram de toalhas encharcadas de gasolina e colocadas exatamente na porta dos universitários africanos (nenhum dormitório de brasileiros foi se quer arranhado). Além disso, os responsáveis pelo ataque tiveram o cuidado de esvaziar todos os extintores que estavam disponíveis no corredor.

Vamos imaginar, para o bem da comunicação, que xenofóbico é aquele que tem aversão por quem é diferente e estranho (de fora do grupo, não membro do grupo, estrangeiro, forasteiro etc.). A violência contra os estudantes da UNB foi investigada como um caso de xenofobia. Prossigo:

Relembre a incrível afirmação do primatologista Frans De Waal, citada no texto anterior: “Inquestionavelmente, os chimpanzés são xenofóbicos”. Ora, isso é de um espanto repugnante; os defensores da tese de que o ser humano é incomparável, se contorcem, esbravejam, repudiam. Alguns abandonam os fatos e se aferram às palavras: passam dias a discutir sobre o significado dos termos usados, e tudo mais de verborrágico que possa existir na imaginação romântica. Acontece que a referência da palavra xenofobia não deixa dúvida nenhuma sobre a conveniência de sua aplicabilidade também aos seguintes casos:

Em 1977, Stella Brewer, preocupada com a conservação da vida natural, tentou reintroduzir um grupo de chimpanzés cativos ao seu habitat natural: as florestas equatoriais africanas. Escolheu o exuberante Parque Nacional de Niokola-Koba, no Senegal.

No entanto, a reintrodução fracassou. Os chimpanzés de Brewer sofreram o diabo, inclusive uma raide noturna por parte dos chimpanzés nativos (lembrando que ‘raides’ são ataques surpresas). Os ataques foram tão violentos e frequentes, que a conservacionista foi obrigada a encerrar a sua tentativa ecológica de congraçamento entre estranhos da mesma espécie[1].

Na Costa do Marfim, desde 1979, os cientistas suíços Christophe Boesch e Hedwige Boesch-Achermann estudam os chimpanzés selvagens na Floresta Taï.[2] Lá, os conflitos entre grupos vizinhos de chimpanzés ocorriam, em média, uma vez por mês. De acordo com o casal de cientistas, as agressões violentas entre os chimpanzés de Taï seguiam o padrão de diversos sítios estudados: raides, patrulha de fronteira e extermínio e agressão letal contra membros de grupos vizinhos de chimpanzés, isto é, grupos estranhos.

Em 1987, na Uganda Ocidental, Gilbert Isabirye-Basuta iniciou seus estudos com uma comunidade de chimpanzés na floresta Kibale. Lá, em 1991 (até 1994), Richard Wrangham se juntou a Gilbert nas investigações e observaram mais uma daquelas cenas grotescas:

Um chimpanzé jovem, com 15 anos, chamado de Ruwenzori, o menor e mais novo do seu grupo, saiu com outros machos em uma patrulha pelos limites do seu território com os de uma comunidade vizinha. Quatro dias depois, o corpo do animal foi encontrado em estado de putrefação na base de uma encosta. Severamente machucado, com mordidas e membros deslocados, Ruwenzori tinha sido mais uma vítima dos ataques furiosos destes animais, cuja representação no imaginário popular é a de bicho de circo, manso e de mentalidade idiotizada.

Por que os chimpanzés planejam, procuram e atacam de modo terribilíssimo outros chimpanzés, porém de grupos diferentes dos algozes? Por que o ser humano planeja, procura e ataca de modo terribilíssimo outros humanos, porém de grupos diferentes dos algozes? “Mera analogia”, dirão os avessos aos estudos biológicos, à maneira daqueles que atormentaram a vida do Prêmio Nobel de 1973, Konrad Lorenz — aliás, o mencionado estudioso do comportamento animal reclamava constantemente sobre esse tipo de argumentação à birra infantil.

No que diz respeito à violência entre chimpanzés, Peterson e Wrangham consideram as evidências claras: a agressão letal — principalmente de machos — contra membros da mesma espécie, porém de grupos separados, é uma característica dos chimpanzés ao longo de toda a África. Um forte padrão comportamental que nada tem haver com a interferência dos homens no curso da natureza, como inicialmente se supôs acerca dos fatos ocorridos no Parque Nacional de Gombe, quando se descobriu o comportamento organizado de violência letal entre os chimpanzés. Nas palavras dos pesquisadores:

A violência de machos que cercam e ameaçam chimpanzés de outras comunidades é tão extrema, que estar no lugar errado, na hora errada e no grupo errado, significa morte.” [3]

Os autores são enfáticos em criticar a visão de que a violência, o assassinato, a xenofobia e a guerra, são traços que se desenvolveram por invenção da humanidade, ou por iniciativa dos seres humanos por terem pecado; ou, ainda, citando a obra de C. Clark (2001: Uma Odisseia no Espaço), que a guerra foi uma ideia implantada na mentalidade humana por extraterrestres. Convenhamos: o ser humano é bem violento e um olhar breve para o Século XX daria um irremediável e eloquente testemunho disso.

É muito comum imaginar a agressão letal como algo exclusivamente humano, não natural, como se o homem estivesse separado do reino animal. Por que os animais são tão bonzinhos? Quando alguém fica sabendo que um animal matou outro da mesma espécie, as respostas são fáceis e de um perdão inatacável: “tinham leões demais na mesma jaula, por isso um matou o outro” (culpa do homem); “maldade do ser humano colocar galos em rinha” (culpa do homem); “um Pit-bull matou o outro, mas também, pudera! Quem manda o homem cruzar espécies?” (Culpa do homem). Etc. etc. Vejam vocês: a natureza é absolvida da acusação de malevolência, o ser humano não. Pode?

Após as descobertas da década de 1960 diversos estudos foram realizados na África e corroboram a descoberta de que chimpanzés machos (como machos humanos) se reúnem em facções e realizam matanças com mutilações e toda sorte de crueldade.

Podemos mesmo fazer comparações entre o comportamento humano e o comportamento de chimpanzés?

[Continua]

Paulo Henrique Castro


[1] Continuo seguindo os relatos de

[2] Estes cientistas lançaram em 2000 uma síntese espetacular de seus estudos em um livro do qual falarei em outro texto. The Chimpanzees of Taï Forest.

[3] P. 21.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Violência: Parte 8.

Magro de dar pena, ele caminhava sem pressa pela estrada de chão batido durante horas. Naquela madrugada de 7 de junho de 1998, o desempregado James Byrd, 49 anos, negro, só queria chegar em casa, em Jasper, Texas, após um longo dia procurando emprego.

Os faróis anunciam a chegada de um veículo, com três homens que, em um daqueles momentos de solicitude beata, param a caminhonete e oferecem carona para James Byrd. Acontece que os integrantes da caminhonete, John William King (branco 39 anos), Lawrence Russel Brewer (branco, 44 anos) e Shawn Allen Berry (branco, 42 anos), nada tinham de benevolentes.

16 km antes de chegar em Jasper, os três homens pararam o veículo, desceram da cabine e puxaram Byrd da carroceria. O espancaram brutalmente. Se já não fosse crudelíssima, a ação medonha continuou: Acorrentaram Byrd pelas pernas no para-choque da caminhonete e saíram em alta velocidade, percorrendo um trajeto de 5 km, o que acarretou o desmembramento do corpo de Byrd. Ainda com o carro em movimento, a cabeça do infeliz bateu em um poste sendo, assim, arrancada em uma cena atroz. Posteriormente a polícia encontrou pedaços do corpo de Byrd em 75 lugares diferentes, inclusive os que foram propositalmente jogados na frente de uma igreja de negros. Anos depois, o caso real de James Byrd virou filme, aliás, com um nome bem apropriado: “A Face do Mal”.

Para quem pensa que este é um caso isolado saiba do seguinte:

Entre 31 de agosto e 08 de setembro de 2001, a Assembleia Geral das Nações Unidas realizou a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa, em Durbam, África do Sul (país que sofreu o inqualificável Apartheid — evento que por si só já demonstraria que casos como o de Byrd não são exceção entre humanos). Lá se reuniram 170 representantes de diversos países, inclusive 16 chefes de Estado, e mais de 1.300 jornalistas; em um total de 18.810 pessoas para debater sobre um grave fato: pessoas agridem, mutilam e matam pessoas que não pertencem ao mesmo grupo racial, social etc.

Na verdade o tema não é novo e desde a fundação da ONU vem sendo bastante discutido. Antes de Durban ocorreram duas Conferências em Genebra, só sobre tal questão, culminando com a proclamação do ano de 2001 como “Ano Internacional de Mobilização Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Conexa”. Ora, por que mais uma conferência sobre “crimes de ódio”? O documento responde o óbvio:

Apesar do facto de a proibição do racismo e da discriminação racial estar profundamente enraizada no ordenamento jurídico internacional em matéria de direitos humanos e dos progressos realizados nesse domínio desde a cria­ção da Organização das Nações Unidas, não há dúvida de que os objectivos das três Décadas de combate ao racismo continuam por atingir, que milhões de seres humanos continuam até aos dias de hoje a ser vítimas de tal flagelo e que, com o surgimento de novas tecnologias e o advento da globalização, novos desafios se colocam neste domínio, exigindo medidas inovadoras e esforços concertados a nível nacional, regional e internacional.[1]

Embora os fatores sociais sejam preponderantes, como admitem diversos cientistas da área de biológicas, não é tão fácil argumentar contra a ideia de que há algo na natureza humana que contribui para a repetição destes comportamentos animais. Ao contrário dos apelos da Antropologia Cultural, a Primatologia insiste na ideia de que as raízes da violência estão no processo evolutivo e que estudar o primata mais próximo do homem, o chimpanzé, nos ajuda a entender esse “flagelo”. Pensando nos dados coletados pela ciência que estuda esses animais, um dos mais importantes cientistas da área — Frans De Waal — chegou mesmo a declarar: “Inquestionavelmente, os chimpanzés são xenofóbicos[2]

Para quem está acompanhando a série de textos sobre violência, aqui apresentados, baseados na obra “Demonic Males”, não há muita dúvida sobre a afirmação de Frans De Waal.

Após estas linhas de uma provocação inquietante, retornarei no próximo texto para os padrões de agressão letal intergrupo, que foram observados entre chimpanzés ao longo da África Central, seguindo a narrativa de Peterson e Wrangham[3]. Por ora, reflita se de fato é o meio social o único fator que provoca o comportamento violento entre humanos. E lembre-se: admitir a influência biológica não implica se comprometer com a tese de que a violência é um comportamento determinado e, por isso mesmo, inescapável.

[Continua]

Paulo Henrique Castro.


[1] Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa. ONU, 2001; p. 11. Disponível na internet.

[2] Waal, Frans De. Eu, Primata: por que somos como somos. São Paulo: Companhia das Letras. 2007, p. 168.

[3] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Violência: Parte 7.

Viviam como família; eram da mesma espécie e se trucidaram com uma crueldade iniludível. Eis o ponto mais assombroso sobre os relatos narrados anteriormente. A intrigante história da comunidade de chimpanzés de Kasekela, que foi apresentada nos últimos seis textos, nos remete à pergunta: por que a violência explodiu?

Vamos pensar assim: uma comunidade pacífica de chimpanzés é observada durante anos. Os primatas foram criados no mesmo ambiente, brincaram juntos, caçavam pequenos mamíferos – os macacos colobus eram vítimas preferidas – e dividiam a carne, às vezes dando na boca; dormiam um em cima do outro, surgiam por trás das árvores e empurravam os distraídos, ao que se seguia uma perseguição amistosa; e faziam “grooming” – um comportamento de catar parasitas no pêlo do outro, alisar a pelagem entre eles, cuja função social é de aproximação entre os animais a fim de formar vínculos sólidos. Já foi mensurado que quanto mais um chimpanzé macho faz ou recebe “grooming”, mais tempo andam juntos pelo território e ampliam a mútua cooperação[1]. Esse panorama, por outro lado, vai se modificando ao ponto de a comunidade se dividir e de surgir agressões letais intragrupais; com um detalhe extremamente importante: os ataques eram raides.

Assim, o desafio para os cientistas era tentar conciliar o fato, de uma perplexidade instigante, de que animais com uma capacidade cognitiva extraordinária (memória maior do que a de um cão; capaz de identificar as inúmeras vocalizações dos membros da própria espécie, o que permite uma interação mais rica e comportamentos sociais complexos; capacidade de estratégias de caça muito sofisticada etc.), tenham chegado ao ponto em que chegou: matar com brutalidade aqueles que tinham ficado em outro grupo. Observe! Só morreu quem não entrou para o grupo dos agressores. Notável. Nas palavras de Peterson e Wrangham[2]: “Como eles poderiam ter matado os seus antigos amigos daquele modo?”.

Se por um lado os primatologistas eram de uma curiosidade desoladora, os antropólogos culturais já tinham as respostas: o homem introduziu bananas que, por sua vez, intensificou a competição entre aqueles animais pacíficos, desencadeando um comportamento de agressão letal, que não era próprio daquela espécie. Em outras palavras: a culpa é do homem.

Não resta a menor dúvida de que se trata de um argumento bastante sedutor, principalmente porque fomos doutrinados para acreditar que o ser humano é uma criação que foi colocada na natureza, inclusive arrancando uma maça de uma árvore que não deveria ter mexido, isto é, a humanidade iniciou a sua história desequilibrando aquilo que lhe era alheio: a natureza. Portanto, o homem sempre altera a natureza, não sendo, ele próprio, parte da natureza. Dito de outro modo: uma menina de Harvard sai do seu conforto em Massachusetts, embrenha-se nas fulgurais florestas equatoriais da Tanzânia, onde o índice de mortalidade infantil é de 104 crianças por mil habitantes e a expectativa de vida é de 45 anos[3], entra no equilibrado, delicado e proibido habitat natural dos chimpanzés, distribui inocentemente bananas a torta e a direita e acaba por interferir no comportamento daqueles animais. Por conseguinte, o episódio só reforça a tese da antropologia cultural: a violência deliberada permanece um traço exclusivo dos seres humanos; animal mata por comida, sexo ou território e jamais assassina os da mesma espécie.

Pois bem. Para a desgraça dos que creem na antiga ideia de que o homem é apartado das bestas o “argumento das bananas” não funciona, pelas seguintes razões:

[1] Pesquisas genéticas com outros chimpanzés de uma região distante do acampamento de Goodall descobriram que antes da distribuição de bananas o grupo Kasekela já estava se dividindo. Logo, as bananas não desencadearam a divisão. Podem ter acentuado a divisão, mas isso também não é o caso, como veremos.

[2] Os chimpanzés de Kasekela que Jane Goodall alimentou com bananas, não são os únicos animais desta espécie a viver em estado selvagem, nem no Parque Nacional de Gombe, nem na Tanzânia e muito menos na África. Era de se esperar, seguindo o “argumento das bananas”, que agressões letais entre grupos, constituídos majoritariamente por machos, fazendo patrulhas de fronteiras e raides, não fossem encontrados em lugar algum. Contudo, mais uma vez a argumentação que defende a interferência do ser humano não convence.

Em primeiro lugar, o próprio grupo de Kasekela, antes da distribuição de bananas, foi vítima de um grupo mais ao sul, Kalande, que era observado por pesquisadores que não eram da expedição de Goodall e, ora veja você, não distribuíram bananas e não mantiveram nenhum contato com os animais de Kalande, apenas observaram. O comportamento de agressão letal seguiu os mesmos padrões que depois foram relatados sobre o grupo de Goodall (o que refuta a tese de que a distribuição de bananas teria, ao menos, acentuado a divisão do grupo).

Em segundo lugar, a cerca de 130 km ao sul de Gombe, no Parque Nacional das Montanhas Mahale, um jovem professor da Universidade de Tókio, Toshishada Nishida, iniciou seus estudos sobre o comportamento dos chimpanzés em 1965 (até os dias de hoje), também de modo independente. Mais uma vez, os registros de pesquisa da equipe do cientista japonês não deixa a menor abertura para o “argumento das bananas”: nas Montanhas Mahale foi observado patrulha de fronteiras, altas taxas de violência contra chimpanzés de grupos vizinhos ou estranhos, furiosos embates entre subgrupos de comunidades vizinhas e raides. As capturas de membros isolados seguiam o mesmo padrão crudelíssimo de violência contra os da mesma espécie. Peterson e Wrangham relatam ainda um dado estarrecedor sobre os registros da equipe de T. Nishida: entre 1969 e 1982 sete machos de uma comunidade que estava sob ataque, desapareceram um por um até que toda a comunidade foi exterminada. Para o cientista japonês não havia dúvida: chimpanzés assassinavam chimpanzés. Será que era uma anomalia comportamental que tinha acometido os inocentes chimpanzés da Tanzânia? Claro que não.

Seja como for, as bananas distribuídas por Goodall nada tinha haver com as agressões letais tão elaboradas. Cães se agridem por um osso, mas não há registro de cães largando o osso e correndo com o seu grupo de machos até pegar o sujeito em emboscadas, arrancando-lhe partes do corpo e o espancando durante longos 20 minutos para, só assim, voltar e descansar. Por outro lado, são fartos os relatos de grupos de machos humanos que perseguem um único indivíduo e o barbarizam, como no caso das brigas de torcida.

[Continua]

Paulo Henrique Castro.


[1] Mitani ET AL. Male affiliation, cooperation and kinship in wild chimpanzees. Animal Behavior, 2000, 59, 885-893.

[2] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996.

[3] Atlas National Geographic. África. São Paulo: Abril Cultural. Vol. II, 2006.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Violência: Parte 6.

Um ano após os pesquisadores terem testemunhado o massacre, narrado anteriormente, o grupo Kasekela fez a sua terceira vítima. Seu nome era Goliath, agora um dos mais velhos animais daquela comunidade, encontrada no Parque Nacional de Gombe no longínquo ano de 1960.

Fartos pêlos da cabeça já esbranquiçados, costelas e a coluna vertebral bem visível, dentes muito fracos e usados – como o ser humano, os chimpanzés perdem os dentes com a idade – a imagem de Goliath era a de um idoso doente e mal alimentado: pele e osso. Estava na casa dos cinqüenta anos, algo muito comum em estado silvestre.

Sabe-se que os chimpanzés idosos, por perderem a força muscular, deixam de subir nas árvores frutíferas e, desse modo, ou se reconfortam com as que caem do pé ou, como já foi registrado, os companheiros mais jovens sobem e trazem frutas frescas que entregam na mão do vetusto.

Para quem vem acompanhando os textos aqui publicados, talvez lembre que Goliath, junto com outro idoso, Hugo, era um dos poucos indivíduos tolerados pelos dois grupos rivais – Kasekela e Kahama – até o ano de 1974. A partir deste período, nem eles tinham trânsito livre. Assim, Goliath se juntou definitivamente ao grupo Kahama, do sul. Como lembrou os autores, Goliath não era uma ameaça para ninguém, a não ser para a impetuosidade irrefreável dos agressores de Kasekela.

Tudo aconteceu assim: após uma patrulha de fronteira, um grupo de chimpanzés de Kesekela parou no topo de uma colina e ali permaneceram sentados. Do cume, olhavam fixamente para o vale Kahama – a extensa área do bando rival. A permanência durou 45 minutos, de acordo com os pesquisadores.

A cerca de 25 metros, distante da colina na qual estavam os curiosos animais, encontrava-se uma silhueta simiesca aparentemente se escondendo: era Goliath. A tragédia teve início porque o pobre idoso foi descoberto pelos olhares atentos dos chimpanzés de Kasekela. Ato contínuo, feito aves de rapina, ou pior; o vulturino bando desceu com fúria o declive, em direção ao alvo. Era tarde demais para fugir e mesmo que houvesse tempo, Goliath não tinha mais o vigor juvenil de outrora para escapar. Só lhe restou se encolher, gritando e cercado por intrusos ensandecidos. Socado, chutado, mordido e, se não fosse o suficiente para uma vítima sem revidar, o suspenderam e o arremessaram. Em seguida, um a um, pulavam no corpo de Goliath, feito crianças em uma cama elástica. Não, você não leu errado: fizeram do corpo ferido de um membro da mesma espécie, um pula-pula. Ora, veja você! Estamos falando de animais que, em um passado bem recente, giravam em torno de uma árvore (um no sentido horário e o outro no sentido contrário) e tocavam suavemente as mãos, sempre que se cruzavam ao circundar o tronco. De onde brotou tanta violência?

O ataque todo durou 18 minutos. Ao final, ainda excitados, os agressores foram embora, arrancando raízes de pequenas árvores, latindo, batendo nos troncos e ainda com os pêlos em pé.

Quanto ao inofensivo Goliath, com um profundo corte nas costas e a cabeça jorrando sangue, tentava se levantar, mas não teve êxito, se esborrachando inconsciente e tremendo, como em convulsões. Não é necessário dizer que ali terminava a longa jornada de Goliath.

Setembro de 1975. Quase todas as fêmeas do grupo Kahama, o qual era o alvo dos ataques, já havia se transferido para o grupo Kesekela (os agressores). Uma fêmea adulta, chamada de “Madam Bee” (Madame abelha), com duas crias fêmeas, “Little Bee” (Abelhinha) e “Honey Bee” (Abelha de Mel), ainda não havia se transferido, embora já tivessem passado bastante tempo com o grupo rival. Talvez não por coincidência, a fêmea adulta foi atacada por quatro machos adultos do grupo rival. Agarraram Madam Bee, batendo, arrastando e pisando nela. Deram-lhe socos até não agüentar mais e cair inerte. Após um tempo, conseguiu rastejar durante todo o dia. Morreu cinco dias depois. Suas duas crias foram transferidas para o grupo dos agressores.

Por volta da metade do ano de 1977, todos os seis machos adultos do grupo Kahama tinham sido exterminados em raides: você acha mesmo que isso foi decorrente de comportamentos cegos, como uma formiga que constrói pacientemente o seu formigueiro ou um cão que antes de se deitar gira em torno do próprio rabo? Para o espanto de todos nós e da comunidade científica, os chimpanzés são animais incrivelmente inteligentes, o que lhes permite comportamentos plásticos e, ainda por cima, ardilosos; capazes de avaliações mais acuradas do que supúnhamos – um chimpanzé pode se reunir em bandos de até 150 membros e ainda assim é capaz de reconhecer as intrincadas vocalizações uns dos outros. Ferozes, fazem de suas vítimas retalho. É espantoso sim, pois imaginávamos que só o homem retalhava o seu semelhante, só o homem invadia o território dos membros da sua própria espécie para matar. De uma ingenuidade antropocêntrica, o homem construiu para si a imagem do pedestal. Mas, deixemos a teoria para depois.

O único macho do grupo Kahama era um adolescente de 17 anos, que antes da divisão do grupo inicial, era um filhote que brincava com os, agora, violentos machos do grupo Kesekela. Foi batizado pelos cientistas com o nome “Sniff”. O jovem chimpanzé também tem a sua história, não menos horrenda que a dos demais.

Em 11 de novembro de 1977, Sniff foi capturado por seis machos do grupo kesekela. Como nos outros casos narrados por Wrangham e Peterson, os agressores surgiram com velocidade, extrema violência e excitação; latindo, arrancando galhos, arremessando pedras, socando os troncos, pêlos arrepiados, agarraram Sniff e o morderam “cruelmente” (a usar a expressão dos autores): fazendo feridas na boca, na testa, no nariz e nas costas. Não só: quebraram-lhe uma das pernas. Um macho agressor, Goblin, bateu sucessivas vezes no nariz severamente machucado do adolescente. Sniff, de acordo com o relato dos pesquisadores, ainda conseguiu perfurar com os dentes um outro adolescente do grupo rival, Serry, que logo foi ajudado por um macho adulto: Satan. Esse chimpanzé de nome sugestivo agarrou Sniff pela nuca e protagonizou um dos episódios mais famosos e comentados entre os primatólogos: bebeu o sangue que jorrava da ferida de Sniff! Para finalizar o que parecia uma cena de filme de terror, tão macabra quanto, Satan e Serry empurraram Sniff colina abaixo – de fato uma cena diabólica. “Sniff foi visto um dia depois, mutilado, quase incapaz de se mover. Depois disto, ele não foi mais visto e presumivelmente estava morto.” [1]

Ao final do ano de 1977, o grupo Kahama já não mais existia: fêmeas transferidas e machos exterminados. Afinal, como a ciência explica esse fato estarrecedor? Quais as implicações destas descobertas para a compreensão que temos de nós mesmos?

[Continua]

Paulo Henrique Castro


[1] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996, p. 17.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Violência: Parte 5.

Por que atacar membros da mesma espécie? Como animais que possuem uma capacidade de memória talvez maior do que a do homem, podem atacar brutalmente os membros de sua própria comunidade, que outrora brincavam juntos, comiam juntos e dormiam juntos? Mas não se deixe enganar: estávamos em 1974 e a comunidade de chimpanzés encontrada por Jane Goodall em Gombe, no ano de 1960, já não era coesa. A divisão estava estabelecida e era extremamente rígida, o que significa dizer que um membro de certo bando não tolera quem é de outro – mas como um negócio desses pode acontecer com animais? Seria defesa de território?

Como nota Richard Wrangham, a defesa de território é algo muito comum entre diversas espécies, “[...] mas os chimpanzés de Kesekela estavam fazendo mais do que defendendo. Eles não esperavam ser alertados pela presença de intrusos.” [1]

Nestas incursões, diz o cientista de Harvard, a patrulha se movia diretamente para atravessar os limites entre os territórios, percorrendo quase dois quilômetros adentro na área do grupo vizinho e, muito interessante, não se alimentavam nestas incursões. Sempre que encontravam um membro sozinho daquele território estranho, o atacavam com requinte de crueldade – como vimos no texto anterior e veremos novamente, logo abaixo. Segundo Wrangham:

Assim, eles pareciam estar procurando encontros no espaço territorial vizinho. Essas expedições eram diferentes de mera defesa, ou mesmo patrulhas de fronteiras. Eram raides.” [2]

Antes de prosseguir, cabe um esclarecimento: muitos primatologistas usam o termo “raide” (“raid”). “Raide” é um termo de uso militar e significa: “ataque de surpresa por grupo militar móvel (p. ex. comandos, blindados, submarinos etc.) em território inimigo, visando a danificá-lo ou destruí-lo, capturar prisioneiros etc.” [3]

Para os primatologistas os ataques são intencionais e com fins específicos: destruir o inimigo no território dele. Os chimpanzés não ficam “passeando” pela floresta e, de súbito, começam um a morder o outro feito cachorro, porque um pisou no território do vizinho ou não respeitou o poste demarcado. O comportamento destes animais não é algo como um robô cego. E é isso que é mais intrigante, pois, sendo animal, esperaríamos comportamentos bem toscos. A seguir, leia atentamente sobre outro caso e pense nas raides:

Após o ataque que vitimou Godi, outro medonho incidente aconteceu: em uma incursão pelo território vizinho (Kahama), três machos adultos e uma fêmea, também adulta, do bando Kasekela, fizeram mais uma vítima. Identificado pelos cientistas como “Dé”, o animal foi violentamente agredido pelos quatro invasores. Dé não estava sozinho, mas seus companheiros eram uma fêmea bem jovem, um macho adolescente e um único macho adulto, todos agitadíssimos e constantemente ameaçados pelo bando de Kasekela. Os companheiros de Dé apenas observaram.

No momento em que Dé foi avistado pelos algozes, já não havia tempo para fuga ou outra reação. Subitamente os agressores alteraram o ritmo, se deslocando com frenética velocidade través da densa floresta, tipicamente com os sinais de ataque, latindo, mostrando os longos e afiados caninos, pêlos eriçados, arrancado galhos pela frente, emitindo o “hoot” (u, u, u, u, u, u,...) e Dé foi cercado.

Gigi, a única fêmea do grupo invasor (Kasekela) gritou ameaçadoramente. Os três machos se aproximaram de Dé, cuja sorte estava lançada. O relato do que aconteceu em seguida é impressionante:

Cercado, Dé parou de se agitar, sentou e se encolheu todo, apenas emitindo guinchos. Pode ter sido uma boa defesa inicial, pois é comum que os chimpanzés comecem arrancando os dedos das mãos e dos pés do adversário – as unhas dos chimpanzés são longas, mais rígidas do que as dos homens e extremamente afiadas. Tanto as mãos, quanto os pés desses primatas, são usados com a mesma destreza, ao contrário do homem (é como se o chimpanzé, ao arrancar os dedos do inimigo, estivesse desarmando-o).

Depois de algumas pancadas, Dé tentou escapar escalando uma árvore e pulando para outra, onde foi surpreendentemente cercado de novo. Fugiu para as partes mais altas da árvore, com os agressores nos seus calcanhares; bem na extremidade lateral se refugiou em um galho, cuja espessura não suportou o peso do animal, que foi lançado em queda livre.

No chão e sem esboçar reações bruscas, Dé foi atacado mais uma vez: um dos machos de Kesekela agarrou o moribundo pela perna, o arrastou e o lançou abaixo, por uma ribanceira. As coisas não pararam por aí, de modo algum. Os agressores machos foram atrás e continuaram a bater em Dé. Não demorou muito e Gigi juntou-se aos machos na sessão de espancamentos, socando com o pés e com as mãos em todas as partes, inclusive nas já visíveis feridas, do já combalido Dé. Para finalizar, a vítima foi arrastada novamente, recebendo várias mordidas, em que nacos de carne eram cuspidos, enquanto a pele das pernas era arrancada pelas unhas-navalhas dos que lhe seguravam os membros inferiores.

O ataque todo durou 20 longos minutos de sofrimento, de acordo com Wrangham. Depois que os agressores se saciaram e foram embora, sem a excitação inicial, menos agitados e sem tensão, Dé continuava vivo, porém com feridas espantosas e gemendo, feito um cão, quando é mal-tratado pelo dono. Dois meses depois, Dé foi visto pelos pesquisadores: estava mutilado e ainda gravemente ferido. Após isso, nunca mais foi visto.

[Continua]

Paulo Henrique Castro


[1] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996, p. 14.

[2] Idem.

[3] Dicionário Houaiss da língua Portuguesa. Rio de Janeiro: editora Objetiva, 2001; p. 2378.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Violência: parte 4.

No texto anterior, observamos que os chimpanzés se deslocavam do centro de sua área, em um ciclo de quatro dias, e percorriam as fronteiras de seu território. Em silêncio, paravam, ouviam e pareciam checar algo. Não faziam os deslocamentos de forma desorganizada: o macho alfa ia à frente, andavam em fila indiana e com movimentos mais lentos do que o costume. Quando o bando escutava os grunhidos da comunidade vizinha, emitiam guinchos roucos, feito rosnado, cujo efeito era outras vozes entre os dentes, igualmente roucas, vindo da vizinhança.

Certa feita, os cientistas observaram um bando destes primatas de Kasekela fazendo patrulha pelos limites do território deles. Súbito, deram conta de que outro grupo vizinho de chimpanzés estava por perto, porém com menor número de indivíduos. O grupo maior se lançou em uma perseguição por meio quilômetro atrás do menor. Visivelmente excitados, a caça continuou pelo território dos perseguidos e o resultado de casos como esse nos descreveremos detalhadamente, mais abaixo.

Vários episódios de perseguição foram registrados pelos pesquisadores. Em alguns registros havia captura e morte. Em outros, os grupos de chimpanzés se encontravam em densos locais da floresta, o que dificultava a avaliação do número de integrantes do bando rival, por parte dos próprios animais. Nas palavras de Wrangham: “a patrulha cometia erros”. Nestas situações, o bando invasor imediatamente voltava correndo, de modo desordenado, para o centro do seu território (em retirada em fuga). Os cientistas tentavam entender o porquê daquelas incursões em terras vizinhas, e mesmo as razões dos deslocamentos cíclicos dos animais pelas bordas. Por que tanta inquietação? Qual seria a razão das rondas sistemáticas? Seria mesmo uma patrulha? As perguntas foram se avolumando, até que o improvável aconteceu.

Sete de janeiro de 1974. Os Pesquisadores observam e acompanham a movimentação de um bando de oito chimpanzés do grupo Kasekela. Eram sete machos (seis adultos e um adolescente) e uma única fêmea sem filhotes, chamada pelos cientistas de Gigi.

À medida que os oito chimpanzés percorriam a fronteira da sua região, ouviram as vocalizações da comunidade vizinha de chimpanzés (Kahama, os do sul). Curiosamente, o bando que ouviu os grunhidos não emitiu nenhum som em resposta. Ficaram em silêncio; aumentaram o ritmo da caminhada, vasculharam os limites da sua área e foram além, avançando sobre o território do bando vizinho de modo muito abrupto.

Enquanto isso, no território da comunidade barulhenta, havia um macho adulto, Godi, pacificamente comendo em uma árvore. Um pouco distante havia seis outros machos pertencente ao mesmo grupo de Godi, que fizeram aquelas vocalizações que o outro bando tinha ouvido. Frequentemente Godi andava com a sua turma, mas, por algum motivo, naquele dia ele estava sozinho (um erro que iria custar a sua vida).

Quando Godi se deparou com o grupo rival dos oito chimpanzés intrusos ele ainda estava em sua árvore. Pulou e correu, mas foi cercado pelos invasores.

Humphrey foi o primeiro a atacar Godi, agarrando-o pela perna. Desequilibrado, Godi caiu de frente, com a face voltada para a lama, e Humphrey pulou sobre ele, imobilizando-o com seus 50 kg e segurando com as mãos os membros superiores da vítima, ao mesmo tempo em que mantinha a perna de Godi presa (os chimpanzés usam os quatro membros com a mesma habilidade, ao contrário do ser humano).

Durante a vigorosa imobilização imposta por Humphrey, os outros intrusos atacaram Godi. Hugo, o mais velho, usando os dentes, arrancou pedaços da carne de Godi. Outro macho deu golpes na altura da escápula e recuou (é necessário lembrar que um chimpanzé adulto é cinco vezes mais forte do que o homem). O adolescente apenas assistiu e Gigi gritava e circulava em torno do ataque, que continuou com mordidas e pancadas.

Após dez minutos, Humphrey soltou a perna de Godi e os outros pararam de bater. Enquanto o animal ferido tirava a sua face da lama, uma enorme pedra foi lançada sobre ele. Haviam feridas impressionantes por todo o corpo de Godi, jorrando sangue. “Ele nunca mais foi visto de novo. Pode ter sobrevivido por alguns dias, talvez uma semana ou duas. Mas ele certamente morreu.” [1]

O grupo de chimpanzés que invadiu o território dos vizinhos, depois do ataque, retornou para os limites da sua área original, dessa vez menos excitados.

Por que Humphrey e sua turma atacaram? Não foi para defender o seu território, considerando que o ataque foi no espaço do grupo vizinho; também não foi por alimento, pois os animais atacaram e foram embora sem se servir de nada para comer; não foi por defesa, dado que eles estavam distantes do território vizinho e não foram atacados; então por quê? E por que usaram de tanta violência (lembre-se do episódio da pedrada, quando Godi já estava jorrando sangue por diversas feridas)? Teria sido um caso isolado? O que era tudo aquilo?

[Continua]

Paulo Henrique Castro.


[1] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996, p.6.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Violência: Parte 3.

Em 1970, Richard Wrangham – antropólogo da Universidade de Harvard – chegou ao Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia, como estudante de pós-graduação, interessado em explicar aspectos sobre o ser humano a partir do enfoque da biologia evolutiva.

Os estudos sobre chimpanzés haviam entrado na agenda dos cientistas do mundo todo, não só pelos esforços pioneiros de Jane Goodall, mas também por causa da tenacidade de um pesquisador japonês da Universidade de Tókio – Toshisada Nishida – que havia iniciado observações ao sul de Gombe em 1965.

No final do texto anterior (“Violência: Parte 2.”), notamos que o grupo de chimpanzés estudados por Goodall, chamado de Kasekela, parecia estar se dividindo (isso em 1966). De fato, a dissensão estava a caminho e o resultado assustador.

Quando Wrangham chegou, de acordo com seu relato em “Machos Demoníacos” [1], já era evidente a separação da comunidade, que resultou em dois bandos: os que vinham do norte (Kasekela) e os que vinham do sul (agora denominados de “Kahama”, nome da região mais ao sul do acampamento).

A sociedade dos chimpanzés é estruturada hierarquicamente (sempre tem um macho que lidera – o “macho alfa”); portanto, é um agrupamento patriarcal, em que o comportamento dos membros do grupo está intimamente ligado aos comportamentos de um chefe macho. Dentro do bando surgem subgrupos estabelecidos por fortes vínculos entre os machos (“male-bonded”), e de forma patrilinear, isto é, os laços seguem pelo lado do pai (“patrilineal kin group”). As fêmeas não formam subgrupos e seus vínculos mais fortes são com as crias. Os machos, na maior parte do tempo, se concentram em suas facções. Essas informações são importantes para entendermos o que virá.

Pois bem. O que era harmonia tornou-se conflito. Lembremos que Jane Goodall, para observar melhor os animais, atraia-os com bananas e os identificou com nomes a fim de favorecer o monitoramento das relações entre os animais. Como era agora, após a divisão do grupo, o momento em que a provisão era distribuída?

Do seguinte modo: indivíduos de um grupo não interagiam com os do outro bando (quem era do sul, só interagia com os do sul e vice-versa – houve uma exceção que falaremos mais adiante); ficavam em espaços visivelmente separados (como se houvesse uma linha desenhada no chão, demarcando os lados), e os animais ficavam extremamente tensos – tal como sabemos os sinais que indicam o iminente ataque de um cão, é possível também saber quando um chimpanzé está em via de atacar: arrancam e arrastam pequenas árvores, batem em troncos, esgarçam os lábios e mostram os longos e afiados caninos, como se fosse uma careta; os pêlos do corpo inteiro eriçam, latem e emitem o típico som chamado pelos especialistas por “hoot” (uma longa sequência, gradativamente acelerada, de “u, u, u, u, u, u...”); andam e ficam em posição ereta; arremessam pedras, tocos e galhos.

Os pesquisadores observaram também que ambos, Kahama (do sul) e Kasekela (do norte), tinham machos alfa: no primeiro era “Charlie” e no segundo “Humphrey” (isso indicava a divisão definitiva do grupo inicial). Curiosamente apenas dois indivíduos, um de cada grupo rival, mantinham contato e até atravessavam para os lados opostos: Hugo (do norte) e Goliath (do sul). É interessante dizer que eles eram os mais velhos entre todos e brincavam juntos desde que Jane Goodall havia chegado à Tanzânia em 1960.

Intrigado com aquele “racha” no grupo principal, Richard Wrangham, com outros pesquisadores e assistentes de campo, passou a seguir ambos os grupos pela densa floresta adentro. Foram vários dias até chegar à área de cada bando, bem como para mapeá-la. Identificaram os limites e a parte central, na qual os animais permaneciam por mais tempo.

Os cientistas acompanharam o grupo Kesekela (do norte) e notaram que a cada ciclo de quatro dias uma facção (“party” – termo utilizado pelos primatologistas para designar os subgrupos temporários), de cerca de meia-dúzia de chimpanzés machos (em alguns episódios com a presença de uma ou duas fêmeas) se deslocavam vigorosamente ao longo dos limites do espaço territorial (“range”). Caminhavam em silêncio, mas são animais tipicamente muito barulhentos; paravam de vez em quando e alguns ficavam em posição bípede, virando a cabeça na direção do menor ruído (principalmente quando o macho alfa, Humphrey, fazia). Sempre na borda do território. Estariam fazendo patrulha? Era forma de demarcação do território? Um fato, porém, bem cedo revelou aos cientistas que não se tratava de uma demarcação de território, como cães que urinam nos postes. Se tratava de algo mais elaborado.

[Continua]

Paulo Henrique Castro.


[1] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996

sábado, 28 de janeiro de 2012

Violência: Parte 2.

Esta é a história da violência entre dois grupos africanos: Kasekela e Kahama, na Tanzânia. Uma história impressionante que pode nos esclarecer, dentre outras coisas, as raízes de um tipo específico de violência: a xenofobia, certa aversão e ataque aos que não pertencem ao mesmo grupo social.

Acompanhe esse relato incrível, perturbador e intrigante, publicado por Dale Peterson e Richard Wrangham, na obra “Machos Demoníacos”[1], lembrando sempre que a história é muito mais rigorosa, em termos científicos, do que o estilo de um texto de divulgação, cujas linhas o leitor percorre. Podemos começar?

Era uma vez uma jovem que, aos dezoito anos, foi enviada para estudar chimpanzés na Tanzânia. Pouquíssimo se sabia sobre esses primatas, naquele longínquo ano de 1960.

Às margens do grande lago Tanganica, com uma exuberante floresta equatorial, vastas palmeiras e mangues, a bela jovem americana se instalou com alguns assistentes em um vilarejo chamado Kasekela, no Parque Nacional de Gombe. Saía todos os dias em expedições para encontrar os grandes primatas. Conseguiu achá-los, observou, fez registros fotográficos e diversas anotações; classificou, identificou e nomeou um grupo de 37 chimpanzés.

Os animais encontrados por Jane Goodall viviam pacificamente, comiam frutas de diversos tipos, cochilavam de dia e dormiam de noite, eram incrivelmente inteligentes, cuidavam de seus filhotes com zelo; as crias, aliás, puxavam uns aos outros, pulavam de galho em galho, empurravam uns, arrastavam outros, em resumo: faziam aquilo que hoje chamamos de “macaquices”. Para estabelecer maior contato, possibilitando acuradas observações, Jane Goodall passou a oferecer bananas ao grupo de chimpanzés, agora batizado com o nome de Kasekela. Deu certo.

Corria o ano de 1966 e aquela imagem de uma bela jovem branca, alimentando animais muito semelhantes ao homem, em uma floresta deslumbrante, parecia mesmo o retrato do “paraíso perdido” (nome, não por acaso, dado ao primeiro capítulo da obra “Machos Demoníacos”). O mundo pedia paz e as imagens registradas por Goodall sugeriam certa nostalgia, evocava, talvez, o estado primitivo do homem: primatas inteligentes vivendo sem conflito em um ambiente farto de comida. Bastava trocar a banana pela maça e a imagem não poderia ser mais sugestiva. Confirmava-se, com essa imagem poética, a chamada “teoria do bom selvagem”, defendida no século XVIII pelo eminente filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e cujo conteúdo afirma que o homem nasce bom, mas é a sociedade que o corrompe e o impele para o mal. Evidentemente que essa não era a ideia que Goodall formava, mas a antropologia cultural estava para Rousseau, assim como Cristo está para o cristianismo.

Desse modo, com os dados de Jane Goodall, os antropólogos passaram a defender ainda mais a convicção de que o homem é – nas palavras de Rousseau – “moldável pelo meio” e que, portanto, a origem da violência está exclusivamente na organização da sociedade, jamais na natureza dos humanos (até porque quem tem natureza são os animais; o homem tem cultura). Não há violência entre os animais mais próximos do homem, pensavam; logo, a discórdia era uma invenção singular do ser humano. Cedo demais para tal conclusão.

Os chimpanzés do Parque Nacional de Gombe são estudados há 50 anos (existem outros tantos sítios de estudos sobre chimpanzés em diversos locais da África Central). E já em 1966, Goodall começou a registrar algo de estranho com o grupo de chimpanzés de Kasekela: para buscar as bananas alguns chimpanzés chagavam sempre do sul, ao passo que outros vinham do norte e os dois subgrupos não mais se misturavam. Mantinham certa distância, não interagiam mais (sabe-se que estes animais estabelecem vínculos afagando uns aos outros e catando parasitas nos pêlos – o chamado “grooming”). Quem era do sul, interagia apenas com quem vinha do sul. O mesmo com os do norte. Era intrigante, pois todos, tanto do sul, quanto do norte, eram membros do grupo inicial observado ao longo daqueles seis anos (todos devidamente identificados). Inicialmente não era assim, então o que estava acontecendo? Não era aleatório, pois sempre se tratava dos mesmos indivíduos, cada um com o seu subgrupo. O grupo estava se dividindo? Em caso afirmativo, por que estavam se dividindo e quais seriam as conseqüências para a comunidade como um todo? Como um grupo passou a lidar com o outro? O que veremos é, de fato, assombroso.

[Continua]

Paulo Henrique Castro.


[1] Peterson, D; Wrangham, R. Demonic Males: apes and the origins of human violence. New York: Houghton Mifflin Company, 1996.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Violência: homem-primata.

Fevereiro de 1994. Kampala, capital da República da Uganda, país do centro-leste da África. Enquanto tinham os seus vistos carimbados, dois homens ouviram uma sinistra advertência do funcionário da embaixada ugandense: “vocês serão assassinados!”

Os homens que foram advertidos eram os famosos pesquisadores de primatas, Dale Peterson e Richard Wrangham, este professor de Harvard, aquele escritor e psicólogo.

O aviso do funcionário da embaixada fazia referência ao clima de instabilidade civil na africana região dos lagos. O ápice dos conflitos étnicos, naquele ano, foi o horripilante massacre de tutsis, em Ruanda, que se estendeu pelos países vizinhos como o Burundi e a República Democrática do Congo (antigo Zaire), deixando um saldo de três milhões de mortos.

Peterson e Wrangham narram parte do triste episódio africano[1]: cerca de 10.000 mil corpos flutuavam sob o rio Kagera, na Uganda. Alguns sem cabeça, outros sem braços ou pernas, muitos mutilados por facões e machados; outros carbonizados, pois foram queimados quando ainda vivos e depois jogados no rio. Crianças, mulheres, homens e idosos, todos da etnia tutsi. Os corpos arrastados pela correnteza vieram do país vizinho: Ruanda. De acordo com um relato de um fazendeiro que ajudou a recolher os corpos, como nos conta Peterson e Wrangham, uma das cenas mais medonhas foi ter retirado o corpo de uma mulher. Ela não tinha nenhum ferimento, nem de bala, nem de machado. Provavelmente morreu afogada, fugindo dos assassinos e o afogamento pode ter ocorrido por um motivo: a mulher tinha os cinco filhos agarrados ao seu corpo: um em cada braço, um em cada perna e um agarrado nas costas. Lamentável cena de horror.

Quando nos depararmos com cenas de horror, provocadas pelo próprio homem, é muito comum ouvir: “o ser humano é perverso... nenhum outro animal é capaz disso”; ou “o homem age feito bicho”. Implícito nestes ditos está a crença de que o ser humano é apartado das bestas e que a violência é algo ensinado pelo meio cultural, não tendo nada haver com a própria condição de sermos animais. O psicólogo Steven Pinker denominou tal crença sobre a violência humana de “dogma central” das ciências humanas, extremamente popularizada entre não cientistas, e que é entendida pelos dogmáticos do seguinte modo: “A violência é um comportamento ensinado pela cultura, ou uma doença infecciosa endêmica em certos ambientes.” [p; 418]

Pois bem. Daí começa a ladainha: “Escuta, é só o homem que comete esse tipo de barbárie sim! Um bicho só ataca o outro por comida, território ou para acasalar, nunca gratuitamente e nunca um membro da sua própria espécie.”

Em primeiro lugar, quem afirma que o homem não agride por comida, território ou por parceiros sexuais, perdoe-me, mas precisa urgentemente ler jornais e livros de história (quase ia esquecendo a internet); em segundo lugar, a tese de que animais não agem violentamente de modo gratuito, idílica, aliás, começou a ser derrubada desde 1960, com os estudos na área de Primatologia.

A partir de agora, passo a explicar em várias postagens os achados de Dale Peterson e Richard Wrangham exatamente para fazer circular informações que contrariam fortemente o Dogma Central, essa incrível idéia de que o meio determina exclusivamente o comportamento humano (defendida por grandes filósofos, como J-J. Rousseau e J. Locke).

Os primatologistas que nos ocuparemos, Peterson e Wrangham, batizaram a teoria por eles formulada com um nome curioso: “Machos Demoníacos”, por interessantes razões que veremos na sequência.

[Continua]

Paulo Henrique Castro


[1]Peterson, D; Wrangham, R. Demonic Males: apes and the origins of human violence. New York: Houghton Mifflin Company, 1996.