terça-feira, 13 de março de 2012

Violência: Parte 9.

Era uma manhã como outra qualquer no bloco B, onde dormiam alguns universitários africanos. Os corredores da Casa do Estudante Universitário, da Universidade de Brasília, ainda estavam naquele silêncio matutino, tranquilo, quase sepulcral. Eis que o cenário, de um torpor horripilante que quebrou a rotina, se revelou: uma pichação na parede do corredor dizia: “Morte aos estrangeiros”. Nas portas dos dormitórios dos senegaleses haviam cruzes pintadas com tintas; nas dos quartos dos brasileiros, nenhuma marca. Seria brincadeira ou um macabro anúncio xenofóbico? Corria o ano de 2007; Fevereiro, para ser mais exato. Um mês depois a resposta veio “com tudo” — por assim dizer.

Por volta das 4 horas da madrugada do dia 29 de março de 2007, as portas dos estudantes africanos foram incendiadas. Sabe-se que o incêndio foi criminoso e intencional, porque as labaredas partiram de toalhas encharcadas de gasolina e colocadas exatamente na porta dos universitários africanos (nenhum dormitório de brasileiros foi se quer arranhado). Além disso, os responsáveis pelo ataque tiveram o cuidado de esvaziar todos os extintores que estavam disponíveis no corredor.

Vamos imaginar, para o bem da comunicação, que xenofóbico é aquele que tem aversão por quem é diferente e estranho (de fora do grupo, não membro do grupo, estrangeiro, forasteiro etc.). A violência contra os estudantes da UNB foi investigada como um caso de xenofobia. Prossigo:

Relembre a incrível afirmação do primatologista Frans De Waal, citada no texto anterior: “Inquestionavelmente, os chimpanzés são xenofóbicos”. Ora, isso é de um espanto repugnante; os defensores da tese de que o ser humano é incomparável, se contorcem, esbravejam, repudiam. Alguns abandonam os fatos e se aferram às palavras: passam dias a discutir sobre o significado dos termos usados, e tudo mais de verborrágico que possa existir na imaginação romântica. Acontece que a referência da palavra xenofobia não deixa dúvida nenhuma sobre a conveniência de sua aplicabilidade também aos seguintes casos:

Em 1977, Stella Brewer, preocupada com a conservação da vida natural, tentou reintroduzir um grupo de chimpanzés cativos ao seu habitat natural: as florestas equatoriais africanas. Escolheu o exuberante Parque Nacional de Niokola-Koba, no Senegal.

No entanto, a reintrodução fracassou. Os chimpanzés de Brewer sofreram o diabo, inclusive uma raide noturna por parte dos chimpanzés nativos (lembrando que ‘raides’ são ataques surpresas). Os ataques foram tão violentos e frequentes, que a conservacionista foi obrigada a encerrar a sua tentativa ecológica de congraçamento entre estranhos da mesma espécie[1].

Na Costa do Marfim, desde 1979, os cientistas suíços Christophe Boesch e Hedwige Boesch-Achermann estudam os chimpanzés selvagens na Floresta Taï.[2] Lá, os conflitos entre grupos vizinhos de chimpanzés ocorriam, em média, uma vez por mês. De acordo com o casal de cientistas, as agressões violentas entre os chimpanzés de Taï seguiam o padrão de diversos sítios estudados: raides, patrulha de fronteira e extermínio e agressão letal contra membros de grupos vizinhos de chimpanzés, isto é, grupos estranhos.

Em 1987, na Uganda Ocidental, Gilbert Isabirye-Basuta iniciou seus estudos com uma comunidade de chimpanzés na floresta Kibale. Lá, em 1991 (até 1994), Richard Wrangham se juntou a Gilbert nas investigações e observaram mais uma daquelas cenas grotescas:

Um chimpanzé jovem, com 15 anos, chamado de Ruwenzori, o menor e mais novo do seu grupo, saiu com outros machos em uma patrulha pelos limites do seu território com os de uma comunidade vizinha. Quatro dias depois, o corpo do animal foi encontrado em estado de putrefação na base de uma encosta. Severamente machucado, com mordidas e membros deslocados, Ruwenzori tinha sido mais uma vítima dos ataques furiosos destes animais, cuja representação no imaginário popular é a de bicho de circo, manso e de mentalidade idiotizada.

Por que os chimpanzés planejam, procuram e atacam de modo terribilíssimo outros chimpanzés, porém de grupos diferentes dos algozes? Por que o ser humano planeja, procura e ataca de modo terribilíssimo outros humanos, porém de grupos diferentes dos algozes? “Mera analogia”, dirão os avessos aos estudos biológicos, à maneira daqueles que atormentaram a vida do Prêmio Nobel de 1973, Konrad Lorenz — aliás, o mencionado estudioso do comportamento animal reclamava constantemente sobre esse tipo de argumentação à birra infantil.

No que diz respeito à violência entre chimpanzés, Peterson e Wrangham consideram as evidências claras: a agressão letal — principalmente de machos — contra membros da mesma espécie, porém de grupos separados, é uma característica dos chimpanzés ao longo de toda a África. Um forte padrão comportamental que nada tem haver com a interferência dos homens no curso da natureza, como inicialmente se supôs acerca dos fatos ocorridos no Parque Nacional de Gombe, quando se descobriu o comportamento organizado de violência letal entre os chimpanzés. Nas palavras dos pesquisadores:

A violência de machos que cercam e ameaçam chimpanzés de outras comunidades é tão extrema, que estar no lugar errado, na hora errada e no grupo errado, significa morte.” [3]

Os autores são enfáticos em criticar a visão de que a violência, o assassinato, a xenofobia e a guerra, são traços que se desenvolveram por invenção da humanidade, ou por iniciativa dos seres humanos por terem pecado; ou, ainda, citando a obra de C. Clark (2001: Uma Odisseia no Espaço), que a guerra foi uma ideia implantada na mentalidade humana por extraterrestres. Convenhamos: o ser humano é bem violento e um olhar breve para o Século XX daria um irremediável e eloquente testemunho disso.

É muito comum imaginar a agressão letal como algo exclusivamente humano, não natural, como se o homem estivesse separado do reino animal. Por que os animais são tão bonzinhos? Quando alguém fica sabendo que um animal matou outro da mesma espécie, as respostas são fáceis e de um perdão inatacável: “tinham leões demais na mesma jaula, por isso um matou o outro” (culpa do homem); “maldade do ser humano colocar galos em rinha” (culpa do homem); “um Pit-bull matou o outro, mas também, pudera! Quem manda o homem cruzar espécies?” (Culpa do homem). Etc. etc. Vejam vocês: a natureza é absolvida da acusação de malevolência, o ser humano não. Pode?

Após as descobertas da década de 1960 diversos estudos foram realizados na África e corroboram a descoberta de que chimpanzés machos (como machos humanos) se reúnem em facções e realizam matanças com mutilações e toda sorte de crueldade.

Podemos mesmo fazer comparações entre o comportamento humano e o comportamento de chimpanzés?

[Continua]

Paulo Henrique Castro


[1] Continuo seguindo os relatos de

[2] Estes cientistas lançaram em 2000 uma síntese espetacular de seus estudos em um livro do qual falarei em outro texto. The Chimpanzees of Taï Forest.

[3] P. 21.