segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Jonestown: últimas considerações.

Como Jonestown foi possível? Raciocinemos, caro leitor. Vejamos algumas respostas possíveis, considerando o que já foi dito.

Alguns podem alegar que a tragédia aconteceu porque um número razoável de ingênuos perdeu o juízo e seguiu um louco: “são malucos”, dizem. Essa hipótese só explica o mundo da fantasia, não o mundo humano real, concreto, complexo, multifacetado e incerto. Vou chamar essa visão fantasiosa de “Teoria etérea sobre o ser humano” e explico as razões:

O filósofo Aristóteles afirmou que existia um quinto elemento que formava os céus. Diferentemente das coisas sublunares que eram, no antigo debate grego, compostas por ar, fogo, terra e água, os céus eram feitos por uma substância que não era gerada; uma substância, portanto, incorruptível e inalterável: era o éter. Daí, diz Aristóteles, decorria uma crença muito antiga de que o céu era a morada dos deuses, pois, supõe-se, divindade nenhuma é submetida à deterioração. Hoje sabemos que o éter, tal qual idealizou Aristóteles, não passa disso mesmo: uma mera visão ideal do mundo. “Idealizar” significa, ao menos, “criar na imaginação” e “fantasiar”.

O éter aristotélico não passava de uma fantasia. Do mesmo modo, há uma visão etérea sobre o ser humano, extremamente consolidada nos meios populares. Tal concepção afirma que o homem foi [1] criado e [2] que é uma criatura feita de modo apartado da natureza. Logo, somos etéreos. Isso implica que: o homem só erra ou porque quer, ou porque suas ações decorrem de problemas mentais. O animal nem erra e nem acerta: age influenciado pelos instintos. (É bom lembrar que se opor a Teoria etérea sobre o ser humano, como faço, não implica se comprometer com a tese de que os comportamentos humanos são isentos de responsabilidade. Evidentemente que esse é outro assunto, desvinculado da crítica que apresento).

Nos textos anteriores observamos que o instinto gregário é um poderoso motor invisível das ações humanas, contrariando fortemente a visão eterial. Pessoas podem agir de modo diferente do que agiriam. Como explicar esta aparente contradição? Ora, não foi por acaso que o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) disse que “o homem é um ser de circunstância”. Menosprezamos o impacto da vida social, do gregarismo, do viver juntos, do peso das situações e circunstâncias que surgem das interações com os outros. Esse menosprezo nos leva a explicar as ações humanas sempre em termos do “EU”, apesar dos efeitos devastadores e primitivos do “NÓS” (quantas pessoas vivendo em estado de total solidão, feito um eremita, usariam maquiagem ou fariam a barba?).

O comportamento do ser humano é sujeito às influências grupais e pode até apresentar resultados que nos provocam perplexidade, mas não nos deixemos enganar: a maioria esmagadora das nossas ações nada tem haver com doenças mentais e isso se aplica ao caso da Guiana. Desse modo, atribuo à inocente “Teoria Eterial” um caráter apressado e popularesco. Comportamentos ordinários, corriqueiros e banais nos dão uma impressão de que há uma “normalidade” nas ações humanas. A partir disto, e tomado pela crença de que os humanos são seres criados (e criados a parte, portanto isentos de influxos naturais), formamos uma imagem ideal das ações humanas. Uma imagem assustadoramente intrigante, ao supor que o homem é separado do reino animal.

Outra hipótese: a crença religiosa é a culpada. Também aqui essa resposta não me satisfaz, embora entenda que a fé religiosa é um dos mais poderosos elementos de adesão emocional no processo de formação de grupos. Pode ser que a religiosidade tenha lá o seu papel, pois indubitavelmente o ensino religioso se faz por doutrinação e qualquer forma de doutrinação é, por excelência, um processo acrítico, um mecanismo de aceitação. Certamente que a doutrinação era algo farto no Templo do Povo. Porém, não era a fé em forças sobrenaturais que mantinha aquele grupo coeso.

Perceba que ao longo dos textos sobre Jonestown eu fiz questão de grafar a palavra “reverendo” com letra maiúscula, apenas para indicar que a divindade essencial na seita Templo do Povo era o próprio Jim Jones. Havia pouco de transcendentalidade no culto, algo tipicamente das correntes Neopentecostais. Assim, é necessário separar o que decorre da doutrinação daquilo que surge da crença específica em algo além de uma experiência possível (o trancendental). Cultos de doutrinação podem ser não-religiosos, como o Nazismo, e também religiosos. Portanto, a construção do fanatismo não está necessariamente ligada ao elemento transcendental.

O que faz dos fanáticos o que são não é o elemento afim, mas as condições grupais. O elemento afim dá a identidade do grupo, mas não faz com que as pessoas sejam extremadas. Penso que ninguém ousaria dizer que o motivo do terrorismo do IRA (católicos), dos protestantes do Ulster e da Al Qaeda (islâmicos), seja a fé em si. Parece haver algo mais, não é mesmo? Precisamente por haver algo mais é que não se tem notícias de grupos terroristas agindo pelo ateísmo (sim, o grupo terrorista alemão Baader-Meinhorf era ateu, mas não reivindicavam o ateísmo e nem, muito menos, agiam em nome do ateísmo como bandeira ou como desculpa para a barbárie). É claro, concedo de imediato a tese de que a fé religiosa é um elemento de adesão emocional extremamente poderoso. Todavia, isso não promove a amplificação de tendências ao extremismo, ao menos por si só. Portanto, quer seja religioso, quer seja não-religioso, o comportamento humano é suscetível à modelagem social, podendo ou não chegar ao paroxismo da barbaridade.

A tragédia de Jonestown foi resultado de uma combinação de fatores sociais, vinculados a outro mecanismo social: a formação de grupo. Nordestinos são assassinados no centro de São Paulo, em decorrência de ataques covardes de Skinheads, por processo social semelhante ao que possibilitou o destino do Templo do Povo (quer dizer, não o ataque em si, mas o processo de formação de grupo que termina nesses atos bárbaros). Mesmo grupos reduzidos de pessoas podem levar indivíduos a fazerem o que seus pais duvidam, como o caso de cinco jovens de classe média-alta que, em 1997, atearam fogo no índio pataxó, Galdino dos Santos; e também o fato ocorrido no Rio de Janeiro, em que cinco moradores de condomínios de luxo espancaram uma empregada doméstica, no ano de 2007.

A condição grupal, dependendo da combinação de fatores sociais, corre o risco de levar o indivíduo ao fanatismo (no sentido bem específico de adesão cega). O perigo do fanatismo ronda qualquer grupo social. O Templo do Povo foi um exemplo de adesão cega. Alguns membros relataram que havia sinais de que a história daquele grupo não iria terminar bem, mas, humanamente, continuaram. Nem sempre os sinais trágicos do estado de manada são visíveis; e, quando são visíveis, nem sempre somos capazes de romper com a rede social. Apenas sabemos que, uma vez em andamento, poucos são capazes de recuar e sair da corrente que conduz o rebanho, como observou um estudo clássico em 1895, chamado “Psicologia das Multidões”, de Gustave Le Bon (1841-1931), que influenciou ninguém mais, ninguém menos do que Sigmund Freud (1856-1939).

A influência de grupo, tal qual foi descrita em várias ocasiões, nos oferece uma ideia do que o ser humano é capaz de fazer em determinadas circunstâncias, como Jonestown. Contudo, permanecerá um enigma de como exatamente a tragédia do Templo do Povo foi possível, pois toda explicação sobre o comportamento humano é incompleta. Afinal, nós somos o ser que investiga a si próprio e isso certamente contamina a nossa explicação. E se é possível tirar alguma lição do macabro evento, talvez seja esta: cuidado com o estado de rebanho, pois muitas ovelhas podem caminhar voluntariamente para o abatedouro sem, ao menos, se dar conta ou desconfiar das doces e persuasivas palavras do lobo mau (sempre coberto de lã). Neste caso, já será tarde demais para voltar.

O que nos torna humanos?

Paulo Henrique Castro.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Jonestown: parte IV.

Pessoas formam grupos por afinidades. O grupo, por sua vez, influencia o comportamento do indivíduo de um modo mais intenso do que supúnhamos. As pessoas formam vínculos e constroem o que são (sua identidade) a partir dessas ligações (que podem ser nexos políticos, parentais, religiosos, bairristas, étnicos, preferências musicais e esportivas, costumes, vícios, sentimentos, ofícios, ou qualquer elemento em comum). Foi esse aspecto espantoso das relações sociais que apresentei no texto anterior. Há outros aspectos extremamente relevantes que também precisam ser elucidados para impedir uma análise superficial.
Como pode ser lido no texto II sobre o massacre, o Reverendo Jones isolou os membros do Templo do Povo do resto do mundo. Essa condição de isolamento intensifica a identidade grupal (esse conceito, “identidade grupal”, foi explicado no texto III), em um fenômeno que ficou conhecido na área de Psicologia Social como “Implosão Social”:
os vínculos externos enfraquecem, até que o grupo socialmente desaba para dentro, e cada pessoa se relaciona apenas com outros membros do grupo. Isoladas da família e de antigos amigos, as pessoas perdem o acesso a contra-argumentos. O grupo agora oferece identidade e define a realidade. Como o culto desaprova ou pune as divergências, o aparente consenso ajuda a eliminar as dúvidas remanescentes.[1]
É possível afirmar, a partir dos fatos elencados, que os membros do Templo do Povo sofreram os efeitos deste fenômeno denominado “implosão social”. O grupo teve os seus vínculos externos enfraquecidos e a única fonte de identidade grupal decorria das convicções pré-existentes há anos e reforçadas pelo poder de persuasão do pastor (que foi observado no texto II). Veremos que essa intensificação da identidade do grupo, sem acesso a opiniões divergentes, foi um dos fatores mais importantes para a incrível adesão ao suicídio e complacência com o horrível homicídio de crianças.
Na véspera da tragédia, dia 17 de novembro de 1978, uma comissão do congresso americano, liderada pelo deputado Leo Ryan e por alguns jornalistas, foi à Jonestown a fim de esclarecer o que estava acontecendo com cidadãos americanos no meio da selva guianense. A posição do congresso americano era clara: uma vez que não se tem notícias dos cidadãos que foram para a Guiana e já que o próprio Templo do Povo estava sob investigação em São Francisco, era necessário averiguar se os membros da seita eram mantidos naquele país contra a sua vontade. Evidentemente que a visita não agradou ao líder religioso, que vinha alimentando e disseminando entre os fiéis a crença delirante de que o mundo estava se preparando belicamente para invadir Jonestown. O estado de isolamento, ou melhor, a implosão social serviu exatamente para que os fiéis da seita aderissem sem reservas à ideia estapafúrdia de Jones.
Logo assim que a aeronave da comissão aterrissou em Jonestown, o ambiente ficou tenso. Inicialmente, seguindo as instruções de Jones, o deputado e os jornalistas foram bem recebidos, mas a mensagem do Reverendo para seus fiéis era: “não digam nada, pois eles são mentirosos”. Muitas entrevistas foram feitas e os membros da seita diziam que estava tudo bem, que não estavam ali contra a sua vontade e que poderiam partir quando quisessem. Todavia, a comissão não estava satisfeita e percebeu que algo estava errado.
No dia seguinte, a atmosfera de tensão só piorou, mesmo porque alguns membros da seita manifestaram a sua vontade de ir embora, inicialmente por meio de bilhetes escondidos e depois explicitamente. A comissão abordou Jones, a fim de comunicar que algumas pessoas voltariam para os EUA no avião do congresso. O Reverendo ficou visivelmente decepcionado e tentava, à custa de muito esforço, convencer os dissidentes para não ir. Em determinado momento, Jones fez um apelo para a comissão: “Eu imploro, vão. Por favor, vão embora!” Infelizmente, o deputado Leo Ryan não tinha a menor noção do perigo que estava correndo e do seu triste fim. Como revelou uma testemunha posteriormente, o deputado insistia que estava protegido pelo “escudo do congresso americano”, prepotência que iria lhe custar caro.
Naquela manhã fazia um belo sol, mas, como disseram os sobreviventes, algo de sombrio estava no ar. Por volta das 11h30min o céu ficou escuro e uma incrível tempestade tropical desabou. Um dos sobreviventes, falando sobre a assustadora tempestade, disse que sua impressão era a de que o diabo havia chegado à Jonestown em pessoa.
Visivelmente transtornado com a notícia de que algumas pessoas da seita iriam embora, Jones tentou convencê-los a ficar. Como seu esforço foi em vão, o Reverendo escolheu uma macabra alternativa: permitiu que as pessoas fossem para o avião com a comitiva do congresso, mas ninguém chegou a embarcar. Um grupo de fiéis armados matou covardemente os jornalistas, os membros que iriam partir e o deputado Leo Ryan, em uma emboscada junto ao avião. Três pessoas sobreviverem se fingindo de mortas, entre elas a assessora do deputado.
Enquanto isso, pelos microfones espalhados em Jonestown foi anunciada uma reunião no pavilhão central e todos os membros deveriam estar lá. Jones anuncia a morte do deputado e diz que o ato tinha sido necessário para proteger o grupo. “[...] Eles irão torturar nossas crianças. Irão nos torturar. Não podemos permitir. Se não conseguimos viver em paz, morreremos em paz”, justificou Jim Jones, em um palanque no pavilhão, se referindo ao que acabara de fazer com os “intrusos hostis”.
Em seguida, Jones tenta persuadir o grupo de que a única saída seria o suicídio coletivo. Teriam que tomar a decisão e disse: “se alguém tem algo contra, por favor, fale agora.” Por que o grupo optou pelo suicídio coletivo e o assassinato de suas crianças? Por que, neste momento, as pessoas não repudiaram com veemência essa proposta esdrúxula de escolher a morte?
Em diversas ocasiões em que um grupo coeso tem que tomar uma decisão, como nesse momento crucial no pátio, curiosamente o debate não ajuda a esclarecer a realidade e muito menos nos orienta para tomar uma decisão lúcida, como afirma o especialista em psicologia social, David G. Myers. Ocorre um fenômeno inverso: o debate não esclarece pontos de vista alternativos, mas intensifica as opiniões iniciais partilhadas pelo grupo (o que se convencionou chamar de “polarização de grupo”). E a crença de que um suicídio coletivo seria a melhor maneira de dar uma lição ao mundo em caso de ataque externo à Jonestown estava, há tempos, sendo cultivada por Jones no Templo do Povo. Devemos lembrar também que os membros da seita não tinham acesso ao mundo exterior, como foi dito no início deste texto. As convicções dos fiéis foram forjadas de modo progressivo pelo líder religioso e intensificadas pela implosão social. A maioria estava muito crédula de que o mundo estava contra Jonestown. Jim Jones alimentava a ideia de que só em Jonestown os membros do Templo do Povo poderiam ser felizes. Certa vez disse: “Os EUA querem o exílio dos negros e dos indianos. Inglaterra também. Eles querem os imigrantes fora do país em 6 meses. A minha posição é clara: deem nos a liberdade, ou a morte.”
Ora, tente imaginar um grupo incomunicável, vivendo em uma pacifica comunidade agrícola, com casa, comida, trabalho, remédios; diariamente sendo bombardeados com a propaganda de Jones sobre um mundo podre e em guerra. Quem iria querer sair dali? Observe as palavras de uma fiel, Laura Johnston Kohl, sobre viver em Jonestown, olhando em retrospecto e aos prantos por lembrar-se da tragédia:
Nunca acreditei no paraíso, não fui educada assim. Mas quando fui para a Guiana, quando via o nascer do sol, pensei que pudesse haver um paraíso em terra. Agora já não consigo acreditar nisso.”
Outro aspecto da influência de grupo que deve ser considerado para nós compreendermos a fatídica decisão dos membros do Templo do Povo é o chamado “pensamento de grupo”, isto é: “O modo de pensar em que as pessoas se empenham quando procuram a concordância torna-se tão dominante em um grupo coeso que tende a prevalecer sobre a avaliação realista de cursos de ação alternativos.” [2]
Em um dado grupo coeso, as pessoas tendem a suprimir a dissidência para manter a harmonia do grupo, a tendenciosidade do grupo. Isso pode aumentar se houver um líder que indique a decisão que deve ser tomada, se o grupo for amigável e se houver um isolamento de opiniões discordantes das do grupo (três aspectos, já mencionados, presentes naquela reunião no pavilhão, em Jonestown). Esse fenômeno psicossocial conduz o grupo para uniformidade de pensamento, bem como para superestimar o poder e o direito do grupo (não é difícil imaginar também como isso pode levar a uma tragédia). Myers elucida 8 características do pensamento de grupo:
[1] Ilusão de invulnerabilidade: os membros do grupo desenvolvem um otimismo excessivo que impede a identificação de sinais de perigo;
[2] Crença inconteste na moralidade do grupo: os membros do grupo consideram apenas as regras morais do grupo interno, ignorando as questões éticas e morais do grupo externo;
[3] Racionalização: para cada crença e tomada de decisão, os membros do grupo defendem cada vez mais as suas convicções com toda sorte de justificativas e explicações;
[4] Visão estereotipada do oponente: o grupo externo é encarado de forma caricatural (“maus demais”, “burros demais”, “fracos demais” etc.);
[5] Pressão do conformismo: para cada dúvida levantada por um membro do grupo, sua posição é repelida pelos demais e até ridicularizada;
[6] Autocensura: as divergências são, no seio do grupo, desconfortáveis. Assim, mesmo os que têm opiniões divergentes tendem a se calar;
[7] Ilusão de unanimidade: cria-se uma atmosfera de consenso, a partir do silêncio de opiniões divergentes;
[8] Guarda-costas mentais: alguns membros do grupo são empenhados defensores das idéias e decisões majoritárias, se comportando como agentes repressores.
Considerando estas observações, voltemos aos momentos finais que antecederam a tragédia. Paramos no seguinte ponto:
Jones tinha perguntado no pavilhão: “se alguém tem algo contra, por favor, fale agora.” Na verdade tinham sim, pessoas que discordavam daquela posição. Porém, foram engolidas pela forte influência grupal. Uma mulher chamada Christine Miller se opôs na hora (como se sabe a partir das fitas de áudio que foram gravadas no momento da reunião no pavilhão e encontradas após o massacre). Miller questionava a morte como uma saída para o conflito com o “inimigo” (releia o que foi dito sobre a concepção que um integrante de grupo interno tem sobre os membros do grupo externo, no texto anterior). O diálogo entre ela e o Reverendo, na frente de quase mil pessoas foi o que se segue:
Miller: — Quando nós nos destruímos, estamos derrotados. Nós deixamos os inimigos nos derrotar. Eu olho para todos os bebês e penso que eles merecem viver.
Jones: — Eu concordo. Mas acima de tudo eles merecem paz.
Miller: — Todos nós viemos à procura de paz. É tarde demais para a Rússia? (Essa era uma das alternativas para o suicídio coletivo, oferecida ao longo do tempo pelo persuasivo pastor: em caso de ataque, ir para a Rússia comunista).
Jones: — Me perguntou sobre a Rússia e neste momento estou fazendo uma ligação para lá. O que mais sugere? Christine, sua vida foi prolongada até hoje, por minha causa.
Neste momento em que Jones ridiculariza Christine Miller, espantosamente escuta-se ao fundo da gravação gritos frenéticos de louvor e de apoio ao Reverendo. Depois, ninguém mais se manifestou contra. Um grupo armado de fiéis cercou o pavilhão, Jim Jones dá a ordem para que as crianças morram primeiro, algumas mães dão o veneno voluntariamente para seus filhos e outros menores são arrancados dos braços de algumas mães para serem envenenados. É possível ouvir desesperadores gritos e choros de mulheres, enquanto Jones diz em tom de advertência, repreensão e ironia: “Mães, mães, mães, não façam isso. Troquem as suas vidas pelas de suas crianças, mas não façam isso.” Depois foi a vez dos adultos tomarem o veneno e o relato dos sobreviventes, quanto a não resistência das pessoas, é impressionante. Ao contrário, a maioria bebeu o sulco envenenado com convicção (como já descrevi no texto I sobre o caso). Poucos fugiram para a selva. Mesmo considerando o número menor de fieis armados, não houve luta, não houve resistência. E devemos lembrar que as pessoas que estavam armadas eram, antes de tudo, fiéis do Templo do Povo. Não era uma milícia oriunda de fora do grupo, de tal modo que é importante deixar claro que o papel das armas no momento da decisão foi mínimo, senão nulo. Muitos corpos foram encontrados no interior das casas, nas plantações, nas camas, bem longe daqueles poucos fiéis que estavam com armas. No final, foram contabilizados 909 corpos, muitos deles deitados e abraçados no chão (como se estivessem esperando a morte).
(Continua)
Paulo Henrique Castro.

[1] Myers, p. 150.
[2] A definição de ‘pensamento de grupo’ é de Irving Janis, citada por Myers (2000, p. 170).

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Jonestown: parte III (continuação).

O que esperamos das pessoas? Imagine uma praça em um dia de sol. Muitas árvores, crianças brincando sorridentes, jovens correndo com suas bicicletas, adultos conversando sobre o último capítulo da novela ou sobre futebol, guardas caminhando sem preocupação, um homem lê o seu jornal, alguns senhores jogam baralho e a vida segue. Nada nessa imagem irá nos espantar, pois esperamos das pessoas exatamente cordialidade, respeito, prudência, coragem, generosidade, temperança e outras tantas virtudes. E a vida segue.

Entretanto, ninguém espera naquela praça crianças enfiando o dedo nos olhos das outras, jovens apostando corrida de bicicleta em alta velocidade perto de idosos, guardas confabulando sobre propinas, uma fofoca injuriosa no banco da praça, senhores trapaceando no jogo de baralho e, a vida segue.

A nossa perplexidade diante de acontecimentos como a tragédia de Jonestown, em parte, tem origem em uma visão romântica e ficcionista da constituição humana; do que esperamos dos outros, do que somos e do que o ser humano é capaz de fazer. Do mesmo modo que esperamos acordar vivos amanhã, também não paramos para pensar que a insensatez faz parte da constituição humana. A condição do homem, além da fachada de normalidade, também é demencial. No entanto, preferimos esperar por comportamentos exclusivamente sensatos de uma criatura insensata por natureza. Se escrevo sobre Jonestown, é porque aceito a afirmação de Edgar Morin de que os casos extremos nos permitem compreender melhor o ser humano:

A escravidão, o campo de concentração, o genocídio e, finalmente todas as desumanidades são reveladoras da humanidade.” [i]

Enquanto imergidos no cotidiano, ocupados, como diria o filósofo Martin Heidegger, agimos a partir da crença de que há uma ordem normal no comportamento humano: somos racionais e, portanto, coisas como Jonestown são anomalias isoladas, da qual nada se assemelha ao que vivemos cotidianamente. Ledo engano. Jocosa farsa. Muito do que aconteceu no massacre da Guiana está relacionado com as pequenas e gradativas influências sociais que incidem sobre a personalidade dos indivíduos que, na maior parte das vezes, nos fazem agir irracionalmente (de modo emocional).

Para compreender o massacre de Jonestown, precisamos entender como o nosso comportamento é profundamente marcado pela influência de grupo, por nosso estado gregário primitivo, pela nossa identidade social, enfim aspectos relevantes que são esquecidos em casos como o ocorrido com a seita do Templo do Povo, na Guiana. Olhamos para a humanidade do homem como algo pronto, acabado, muito bem elaborado, até que uma tragédia nos acorda para o lugar desse primata, peculiarmente gregário, entre os bichos.

O Templo do Povo era um grupo social e todos nós pertencemos a um grupo na sociedade. Como o grupo molda a opinião e o comportamento individual de determinado membro? Como aderimos aos grupos? Nós precisamos pertencer a um grupo?

Em primeiro lugar, viver em grupo se deve ao fato de que herdamos o gregarismo da ancestralidade primata (instinto gregário – isto é: “que vive em bando”). Em segundo lugar, o estado gregário provocou uma forte necessidade de afiliação (Charles Darwin já havia notado o efeito esmagador da solidão, comentando o estado de prisioneiros naquilo que hoje chamamos de “solitária”. Não há saída: precisamos viver com alguém[ii]). Cito as palavras do psicólogo social David G. Myers (uma das fontes teóricas que estou usando para refletir sobre Jonestown):

Nós humanos somos uma espécie que vive em grupos. A história ancestral nos prepara para nos alimentarmos e nos protegermos – para vivermos – em grupos. Os seres humanos aplaudem seus grupos, matam por seus grupos, morrem por seus grupos. Definimos a nós mesmos por nossos grupos [...]. Nosso autoconceito – a definição que temos de nós mesmos – contém não apenas a identidade pessoal (o senso de atributos e atitudes pessoais), mas também a identidade social.” [iii]

Apesar de o cotidiano próximo nos iludir com a sensação de pleno controle sobre nossos comportamentos, a personalidade não é uma ilha (com a licença da metáfora). Acreditamos que nossas crenças e convicções não são construídas, abaladas e afetadas pelos outros, mas a verdade é que somos mais “Maria-vai-com-as-outras”, do que gostaríamos de admitir. E isso se dá não porque somos “fracos”, mas porque somos animais sociais abertamente suscetíveis a sofrer a influência dos que nos cercam, feito uma manada.

Em termos mais técnicos[iv], o nosso autoconceito (a percepção individual de quem nós somos) é formada a partir de dois componentes básicos: [1] identidade pessoal (os atributos ou traços individuais) e [2] pela identidade social (etnia, sexo, religião, profissão, ser mãe, ser pai, ser filho, músico, atleta etc.).

Acontece que ser membro da religião X (ou qualquer outro grupo social, ser torcedor do time de futebol Z, pertencer à etnia Y etc.), implica simultaneamente estabelecer o que você é e quem não é como você. Segundo Myers: “A definição do grupo a que você pertence – sua raça, religião, sexo, curso acadêmico – implica uma definição de quem você não é. O círculo que inclui ‘nós’ (o grupo interno) exclui ‘eles’ (o grupo externo).” [v] (Observe como um torcedor de futebol diz: “hoje NÓS vamos ganhar.” O curioso é que ele não é jogador do time, os próprios jogadores do time, a comissão técnica e o presidente do clube nem sequer o conhece, mas o torcedor tem esse sentimento primitivo de pertencimento ao grupo. Ele é membro do grupo).

A nossa identidade social, portanto, estabelece o nosso círculo (que inclui quem pertence ao grupo) ao mesmo tempo em que estabelece quem não pertence ao nosso círculo (os que são diferentes). De acordo com o já mencionado psicólogo do Hope Collge, a formação de grupos se dá a partir do seguinte processo mental:

[1º.] Categorização: em diversas circunstâncias estamos incluindo/excluindo os outros (e nós mesmos) em categorias: “sou brasileiro”, “sou tricolor”, “ele é professor”, “ela é mãe”, “ela é hindu”, “eu sou católico”, “ela é flamenguista”, “ele é negro”, “sou roqueiro”, “ele é gringo”, “ela é favelada”, “ele é vereador” etc. Porém, essa rotulação não é necessariamente pejorativa, conquanto seja a base para muitos preconceitos. De qualquer forma, categorizar é parte do processo mental humano em lidar com os outros e com nós mesmos.

[2º] Identificação: as pessoas se identificam com as outras e, assim, formam o “nós”. Isso se dá muitas vezes com base em pequenos detalhes (basta estar em um bar e ver um desconhecido vestido com a camisa do time de coração e haverá uma grande probabilidade de um bom bate-papo). Em outros casos, a identificação entre as pessoas ocorre por meio de vários aspectos: brasileiro, católico, carioca, tijucano, alvinegro.

[3º.] Comparação: comparamos o grupo interno (ser católico) com o grupo externo (ser evangélico). Ocorre, então, a “tendenciosidade do grupo interno”, que supõe por um lado afeição recíproca e, por outro, aversão por quem não pertence ao grupo imediato (xenofobia). O psicólogo Steven Pinker denomina esse limite entre os que pertencem ao grupo de “círculo moral”. Quem é membro do círculo é avaliado positivamente (“bom”, “inteligente”, “prestativo”, “pacífico”, “correto”, “digno” etc.). Todavia, aquele que julgamos ou acreditamos não pertencer ao círculo, são avaliados negativamente (“inútil”, “preguiçoso”, “interesseiro”, “sujo”, “burro”, “inferior”, “indigno”, “perigoso” etc.).

Pode parecer inocente, mas as coisas não param por aí. Ser membro de um grupo social envolve também uma poderosa vulnerabilidade aos influxos comportamentais do grupo, que podem levar as pessoas desde simples vaias ou gritos entusiasmados, quando a nossa torcida começa a cantar e a aplaudir em um estádio de futebol, ou mesmo insultar o árbitro, até atos de intolerância, ódio, explosões de fúria coletiva, linchamentos, brigas de torcida e chacina étnica.

Segundo Myers[vi]:

Por causa das identificações sociais, conformamo-nos às normas do grupo. Fazemos sacrifícios pela equipe, pela família, pela nação. Detestamos os grupos externos. Quanto mais importante for a nossa identidade social e mais forte a ligação que sentimos por um grupo, mais reagimos com preconceito a ameaças do outro grupo. Nomes como sérvio, tâmil, curdo e estoniano representam identidades de grupo interno pelas quais as pessoas se mostram dispostas a morrer.”

Em outras palavras, em grupo e pelo grupo somos sutilmente e de modo extremamente poderoso influenciados pelo comportamento de horda de tal modo que, sem se dar conta, fazemos muito do que não faríamos sozinhos, tendemos a abandonar os freios inibitórios (as restrições corriqueiras), chegando a perder o senso de responsabilidade individual, em um estado psicológico chamado de “desindividualização”, isto é, diminuímos a percepção de autoconsciência, de individualidade. Não somos “um”, somos o grupo. Quando desindividualizadas, as pessoas têm maior facilidade de agir sem pensar, reagindo mais prontamente ao que o grupo faz (Myers). Sim, caro leitor: somos mais “Maria-vai-com-as-outras” do que gostaríamos de admitir. Pense em como você se comporta quando está entre pessoas que você aprecia e se identifica; pense no seu círculo de amizade, no seu grupo familiar, no seu grupo religioso, nos seus colegas de trabalho. O nosso próprio modo de ser é afetado para o grupo e pelo grupo. A nossa identidade se confunde com a identidade do bando, pois ser demasiadamente diferente do grupo é ser esquisito; e ser “esquisito” significa que o grupo irá se encarregar de te condenar ao ostracismo (somos banidos e esquecidos no limbo). A vida social é um mercado de mendicância e a esmola é sermos parte de um círculo. Como disse Gazzaniga e Heatherton:

Uma motivação humana dominante é se ajustar ao grupo. [...] O desejo de se ajustar ao grupo e evitar ser ostracizado é tão grande que, em algumas circunstâncias, as pessoas se comportam de uma forma que elas mesmas condenariam em outro momento. O poder da situação social é muito maior do que a maioria das pessoas acredita, o que talvez seja a lição mais importante que a psicologia social possa nos ensinar.”[vii]

Sobre esse comportamento grupal, que os estudiosos alertam, cometemos dois erros: [a] temos uma crença muito difundida de que comportamento de horda é coisa tipicamente de adolescente; [b] acreditamos que somos imunes a influência do grupo ao qual pertencemos, pois isso é coisa de gangue e o nosso grupo não é uma gangue. Todavia, como demonstra a psicologia social, não só necessitamos pertencer a um grupo ao longo da vida, mas somos também extremamente suscetíveis às influências da facção a que pertencemos, chegando mesmo a fazer coisas que não faríamos sozinhos. Myers comenta que dificilmente um fã de rock gritaria delirantemente em um concerto em que estivesse assistindo sozinho. Pensando no comentário, tento imaginar alguém sozinho em um estádio de futebol xingando o árbitro. Uma vez membro de um grupo social, as influências intra-específicas são inevitáveis.

Pois bem. O Templo do Povo era um grupo coeso: majoritariamente pobres, negros, idosos e pessoas de pouca instrução formal, oriundas de determinada camada da sociedade americana, que tinham em comum um forte sentimento de rejeição social e de exclusão, indubitavelmente um dos mais fortes elementos de identidade grupal. Jonestown amplificou ainda mais a identidade do grupo, isolados, trabalhando juntos, sem distinção de classe, em uma rotina diária de partilha. Como disse o filho adotivo do Reverendo, Jim Jones Jr.: “Quando não se tem nada, somos parte de Jonestown, somos acionistas de Jonestown se formos afro-americanos. Dava-lhes a oportunidade de fazer parte da criação de uma utopia.”

Lá na Guiana os membros da seita encontraram seu lar, fortificaram a identidade de grupo e sedimentaram os laços de afiliação. Portanto, é visível que os aspectos apresentados sobre a formação social de grupos, a influência interna e a identidade grupal, atuaram na tragédia em Jonestown. Os membros do Templo do Povo queriam terra para plantar, queriam casa, cama e comida; queriam viver entre pessoas que não se importavam com a cor da pele e que comungavam fortemente a ideia de partilha. Queriam viver entre iguais, em uma grande família; e, como vimos, vivemos e morremos pela família. Por isso Jim Jones foi aplaudido e recebeu gritos de apoio, antes de ordenar que as pessoas tomassem veneno em Jonestown, quando disse: “Se não podemos viver em paz, morreremos em paz”.

[continua]

Paulo Henrique Castro.


[i] Morin, E. O Método 5. A Humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2003; p. 18.

[ii] Tenho pleno conhecimento da seguinte objeção: “mas, muitas pessoas vivem sozinhas”. Quanto a isso só tenho a dizer o seguinte: pesquise sobre os efeitos da solidão na saúde das pessoas; verifique o percentual de pessoas que vivem em estado de total isolamento no mundo e o compare com aquele das pessoas que vivem em grupos; por fim, verifique o sucesso das redes sociais (não por acaso denominadas desse modo).

[iii] Myers, op. Cit.; p. 192.

[iv] Cf. D. Myers.

[v] Cf. D. Myers, p. 192-193.

[vi] Myers, p. 193.

[vii] Gazzaniga, Michel S.; Heartherton, Todd F. Ciência Psicológica. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 450.

sábado, 19 de novembro de 2011

Jonestown: o carisma do líder (continuação do texto anterior).

A ideia de suicídio coletivo já tinha sido anunciada por Jim Jones. Era uma espécie de carta na manga, para uma eventual intromissão de quaisquer elementos externos à Jonestwon. A mórbida decisão teve início a partir de um incidente: como nenhum familiar americano recebia notícias dos membros do Templo do Povo que foram abruptamente morar na Guiana, a opinião pública nos EUA, que já estava ciente dos meios como o pastor tomava os bens e arregimentava os fiéis, começou a bater na porta do Congresso americano e aí o caldo começou a entornar.
Não era um campo de concentração, mas havia muita dificuldade de sair de Jonestown. Para começar, tratava-se de uma colônia no meio de uma densa floresta tropical, 480 km selva adentro, que só se tinha acesso por avião. De fato, uma vez em Jonestown, só se podia sair no avião de Jim Jones. Mas por que não ocorreram focos de resistência e até insurreições, a exemplo do que ocorreu até em campos de concentração? Jones se serviu de diversas estratégias propagandistas. Primeiro, isolou o grupo de qualquer contato com o mundo exterior, nem com familiares mais próximos os moradores podiam falar. Nada de televisão, ou telefone, ou carta. O isolamento dificulta a divergência de opiniões. Segundo, havia um sistema de som que só o líder religioso podia usar (ligado 24 horas, o que permitia uma presença constante da voz do Reverendo, ainda que em sua ausência, já que era alimentado com gravações.). Com esse mecanismo, o “pai” do Templo do Povo propagou o medo: o mundo estava contra Jonestown, dizia. Essa era uma mensagem recorrente do pastor. Ele criou um clima de medo contínuo divulgando a falsa informação de que Jonestown estava sob iminente ataque, organizado por forças armadas que queriam destruir a colônia na Guiana.
Também para impedir a fuga de fiéis ou a formação de dissidentes no grupo, o pregador carismático dizia todas as noites, usando aquele mesmo sistema de som, conectados em auto-falantes espalhados entre as moradias: “Estou mandando alguém embora esta noite. Alguém que conhecem, em quem confiam. E eles vão agir como se quisessem ir embora. Mas é um gesto de lealdade. Vocês têm de os convencer a voltar.” Ora, com essa estratégia extremamente sutil e perspicaz, o líder religioso de uma vez só conseguia duas coisas: [1] tornava todos suspeitos (afinal, se alguém se manifestar dizendo querer ir embora, como posso ter certeza se realmente se trata de uma manifestação sincera ou de um enviado de Jones?). Isso criava um clima de insegurança; [2] fabricava vigias voluntários, pois, na melhor das hipóteses, é mais vantajoso avisar ao Reverendo sobre pessoas que “querem” ir embora, do que correr o risco de ser acusado de saber da fuga e não dizer nada. Disse um dos sobreviventes: “a coisa mais proibida de expressar era querer partir.” Assim, o chefe da seita mantinha todos em um “cativeiro voluntário” (a expressão “cativeiro voluntário” é elucidativa por dois motivos: [1] primeiro nos lembra que tudo o que ocorreu teve origem também nos mecanismos de controle do líder religioso, mas não só; [2] segundo, nos permite lembrar, como foi dito no texto anterior, que as pessoas não podem ser interpretadas como crianças que são enganadas colocando um doce na boca. Outros fatores individuais, humanos, e de interação grupal, contribuíram fortemente para o episódio medonho, como iremos explorar no próximo texto). Vamos ficar com a figura do líder religioso.
Líderes podem ser extremamente persuasivos se combinarem meticulosamente quatro conhecidos elementos da comunicação, segundo o psicólogo David Myers: [1] O modo como o comunicador é percebido; [2] o conteúdo da mensagem; [3] o canal e [4] a audiência. Por enquanto, nos interessa o primeiro: o comunicador.
Jim Jones obteve sucesso em controlar pessoas, em parte porque conduziu muito bem quatro aspectos que seduzem uma audiência: credibilidade, competência, confiabilidade e poder de atração. Ninguém que pretenda conduzir um rebanho vai muito longe sem esses ingredientes. Acontece que Jones desde a infância, por ser rejeitado e maltratado pela família, desenvolveu uma aguda sensibilidade em identificar perfis psicológicos marcados pelo desamparo, pela dor e pela rejeição.
A infância do Reverendo foi em Lynn, Indiana, cidade pobre dos EUA. Lugar tipicamente racista na primeira metade do século XX, com uma população em que a maioria dos moradores era constituída por negros pobres e uma minoria branca que dominava e excluía. Anos mais tarde, Jim Jones deu uma declaração esclarecedora sobre o impacto que o contexto social de Indiana teve em sua personalidade: “Vivendo como um rejeitado desenvolvi uma sensibilidade pelos problemas dos negros. Levei um indivíduo negro da cidade para casa e meu pai disse que ele não podia entrar, então eu disse ‘não concordo’ e não vi o meu pai durante muitos anos.” O curioso é que o poder de atração que Jones exercia sobre os negros continuou até o massacre do dia 18 de novembro em Jonestwon: a maior parte dos mortos eram afro-americanos. O Templo do Povo ficou conhecido como uma igreja de negros dirigida por um branco, como relatou um parente de uma das vítimas (Rebecca Moore). Por quê? Ora, Jones sabia o que era ser excluído e rejeitado e escolheu muito bem a sua audiência. Muitos diziam na época que o pastor só tinha de branco a pele. Juanell Smart, membro da seita, disse: “Quando as pessoas ouviam o Jim, não olhavam para ele como sendo um ‘pastor branco’, as pessoas nem olhavam para o Jim como sendo ‘branco’; ela não era ‘branco’, era só o pastor.”
Jones, ainda na cidadezinha de Lynn, instituiu um lema que fixou em uma placa na entrada da Igreja: o de integração racial. Como disse June Cordell (parente de membros da seita), para Jones “não interessava a cor da pele. Ele estava lá para receber todas as pessoas na igreja, deixou bem claro.” Portanto, para uma platéia majoritariamente constituída de excluídos, o discurso era de um excluído contra a exclusão: quer algo mais persuasivo?
Essa percepção que as pessoas tinham de Jones como um “igual” foi decisiva para o seu poder de atração. Como disse Myers: “tendemos a gostar de pessoas que são parecidas conosco.” Portanto, bem cedo Jim Jones ajustou a sua imagem para conquistar determinado auditório: os excluídos, despossuídos e desamparados, como os negros da sua vizinhança em Indiana. O futuro pastor tinha a sensibilidade e o talento para arrebanhar as ovelhas, mas não tinha a instituição social que desse as condições para Jones pôr em prática a sua vocação. Porém, as coisas mudaram quando o futuro reverendo descobriu a Igreja Evangélica em Lynn, que não permitia a presença de negros.
Por volta da década de 1930, Jones, o desamparado, achou acolhimento e inspiração no Pentecostalismo Clássico, que surgiu nos EUA em 1906 e rapidamente se difundiu pelo país. Como é peculiar aos pentecostais, os cultos eram fortemente emotivos e teatrais, com gritos, danças, explosões de louvores coletivos, músicas animadas, pregações eloqüentes dos pastores e rituais de cura no meio da multidão (tudo isso foi muito bem explorado posteriormente pelo astuto líder carismático). Além de agregar tais características nos seus cultos, pode-se dizer que Jim Jones, ao criar o Templo do Povo, foi um dos precursores do chamado Neopentecostalismo, em que o pilar fundamental é a Teologia da Prosperidade (a felicidade é aqui) e a Propaganda da Fé (uso de veículos de comunicação de massa e estratégias sutis para aliciamento de fiéis).
De acordo com o jornalista Tim Reiterman: “Ele [Jones] viu que eles [os pastores] eram acolhedores, viu que os pastores eram figuras paternas e que eles tinham poder sobre as vidas das pessoas.” Jim Jones se tornou pastor, mas não qualquer pastor. Reinventou a Igreja Pentecostal: abriu as portas para os negros e demais excluídos (principalmente idosos); prometeu, com ações efetivas, conforto nesta vida (com dinheiro da igreja, tirava os idosos de asilos e os colocava vivendo com os fiéis); pôs em prática a ideia cristã de partilha, mesclando inclusive aspectos fundamentais do comunismo soviético (até os últimos dias em Jonestown, o Reverendo prometia levar os fiéis para a Rússia da Guerra Fria e exaltava uma sociedade sem classes); tornou os cultos celebrações alegres e extasiantes; suas pregações eram ordens para acolher, agregar, amparar, incluir, aqui e agora; nunca no além morte. Disse certa vez em uma pregação: “Jesus Cristo tinha os ensinamentos mais revolucionários para dizer: alimentem os pobres, vistam os nus, acolham os estranhos, cuidem das viúvas que estão sofrendo.”
Acima de tudo, o pastor fez curas para aumentar a sua credibilidade (que depois a imprensa descobriu serem forjadas, inclusive com o episódio de uma mulher em uma cadeira de rodas que andou, mas não passava da secretária de Jones fingindo ser paraplégica). Como lembrou Grace Stoem, membro da seita: “As pessoas elevaram Jim ao nível de adoração, porque muitos acreditavam que ele havia curado seu câncer, muitos acreditavam que ele tinha salvo os filhos de um acidente. Havia muitos motivos para as pessoas admirarem, amarem, desculpar e ignorar muitas coisas que o Jim fazia.”
Assim, Jim Jones tinha credibilidade, inspirava confiança e era extremamente sedutor porque:
[1] Sabia o que era ser excluído e falava como um, o que lhe dava confiança ao falar (um dos ingredientes da credibilidade, segundo Myers, e convence a audiência);
[2] Defendia a integração racial em uma cidade altamente racista quanto aos negros, mas ele era branco. Um branco defendendo os negros contra outros brancos na primeira metade do século XX. De acordo com Myers: “As pessoas também percebem como sinceros os que argumentam contra seus próprios interesses pessoais. [...] Estar disposto a sofrer por suas convicções – o que Gandhi, Martin Luther King Jr., e outros grandes líderes fizeram – também ajuda a convencer as outras pessoas da própria sinceridade.”
[3] O Reverendo Jim Jones não ficava só no discurso; não permitia que suas palavras se perdessem nas evangelizações: pregava a igualdade e exercia a igualdade (foi o primeiro branco de indiana a adotar um afro-americano e dois asiáticos); pregava fraternidade e promovia ações sociais de amparo e acolhimento. Em Ukiah, cidade a 150 km de São Francisco, o pastor construiu uma comunidade em que as pessoas tinham comida, trabalho e moradia. Serviu-se de uma espécie de “rede de amparo”: “À medida que as pessoas idosas se juntavam, passava um ano e ele as convencia de que já tinham feito tanto pela comunidade e por isso em vez de darem 20% por que não vedem suas casas e dão o dinheiro à igreja? E isso foi o que as pessoas começaram a fazer.” (Deborah Layton, membro da seita). Os idosos se sentiam parte de uma comunidade e não um dejeto jogado em um asilo.
[4] Enquanto o Estado de bem-estar social fracassava após a quebra da bolsa, nos EUA, e a pobreza aumentava, Jones mobilizava as pessoas para dividirem o pouco que tinham com os outros, com discursos fortemente marcados pela ideologia socialista e por um caráter messiânico inconfundível: “Eu represento princípios divinos, igualdade para todos; uma sociedade onde as pessoas partilhem, onde não há ricos nem pobres. Onde não há racismo; onde houver pessoas lutando por justiça e pelo que é certo, lá estarei eu, lá estarei eu envolvido”, disse Jones em um culto, gritando, falando rápido e usando todos os truques de um bom retórico. Como lembrou mais tarde Neva Sly Hargrave, membro da seita: “Ele falava de coisas que estavam no nosso coração. O governo não cuidava das pessoas. Havia pobres a mais lá fora, havia crianças pobres.”
Jim Jones foi uma face do massacre, mas não o único fator. Outro aspecto importante de episódios como este é o comportamento humano em grupo ou quando nos sentimos parte de um grupo (como as torcidas de futebol). Sobre isso falaremos no próximo texto.
Paulo Henrique Castro.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Jonestown: como foi possível o massacre?

Na noite de 17 de novembro de 1978, em Jonestown, vilarejo construído no meio da selva na Guiana, as pessoas de uma comunidade religiosa estavam felizes, catavam, riam e festejavam dançando de modo alegre e tranqüilo. 24 horas depois todos estariam mortos, incluindo bebês, crianças de diversas idades, adolescentes, adultos e idosos. Foram 909 pessoas que cometeram suicídio coletivo, seguindo as instruções do Reverendo Jim Jones.

As crianças menores e os bebês foram os primeiros a morrer. As próprias mães se encarregavam de introduzir o suco de morango misturado com tranqüilizantes, analgésicos e uma dose letal de cianureto, na boca dos pequenos (o que significa dizer que além de suicídio houve também assassinato). O relato de Tim Carter, membro da seita pentecostal e que sobreviveu correndo para o meio da selva tropical, é dramático:

Fui até a parte de trás do pavilhão e vi uma mulher, Rose, chorando, segurando o seu bebê morto. Havia outras pessoas morrendo. [...] Olhei para a direita e vi minha mulher com nosso filho nos braços e veneno sendo injetado na boca dele [por ela]. O meu filho estava morto e estava espumando pela boca.” [1]

Enquanto as crianças se contorciam em convulsões, espumando pela boca e caindo por todos os lados, os adultos tomavam voluntariamente o suco da morte e ouviam as últimas pregações de Jim Jones: “Morram com alguma dignidade. Não morram em lágrimas e agonia. A morte é só mais uma passagem para outro plano.” O Reverendo dizia isso ao ver algumas mães e alguns pais chorando com os filhos mortos no colo.

No áudio gravado no exato momento em que Jones mandava que as pessoas tomassem o veneno, podemos ouvir ao fundo perturbadores gritos de crianças em desespero, diante da visão do horror (as fotos mostram corpos unidos, abraçados, deitados, caídos).

Stanley Clayton, outro sobrevivente do episódio, descreve a morte da família de um modo que podemos perceber a determinação e disposição da esposa para morrer:

A minha mulher veio até mim. Ela não tinha lágrimas nos olhos. Ela estava estupefata. A minha mãe, a minha avó, a minha irmã e o meu irmão, morreram. Ela disse: ‘me leve e me deite ao lado de minha avó. Ela foi até onde estava a bebida com veneno e não hesitou, bebeu e me disse para segurá-la e para levá-la. Foi o que fiz. Ela morreu nos meus braços.”

Como foi possível essa tragédia? O que levou pessoas normais a tirarem a própria vida e a de seus filhos? Como mães podem injetar veneno na boca de seus bebês indefesos? Como um único homem pode ter um poder de persuasão tão forte, a ponto de convencer as pessoas a cometerem o que até Deus duvida?

O mais curioso de tudo é que a tragédia de Jonestown imediatamente nos provoca uma resposta muito comum: são todos loucos crédulos! Se essa fosse a resposta mais razoável para o que ocorreu com aquelas 909 pessoas, já não valeria a pena escrever este texto. O comportamento humano medonho é mais tolerável quando o admitimos como uma aberração. A partir daí tudo fica mais fácil: basta usar o rótulo multi-uso “louco” e podemos dormir tranqüilo com a nossa divina e perfeita humanidade. É nesse sentido que estupidamente aproximamos os loucos das bestas.

Do ponto de vista do acontecimento em si, entretanto, não houve nada de doença mental naquele dia atroz. A questão está aí. Não eram loucos, eram humanos como eu e você: pessoas com fé em algo (natural ou sobrenatural; imediato ou mediato); pessoas que foram persuadidas, mas, ainda assim, pessoas normais agindo por adesão emocional, não por distúrbio psicológico. Gente que sonhava, ouvia música, trabalhava arduamente, era capaz de discernir o certo do errado e olhava pro céu com esperança. Acabaram naquele chão lamacento, com o corpo inerte, arqueado e exposto à tempestade tropical que desabou minutos antes do evento chegar ao seu dramático ato final. Nisso reside a importância filosófica do espantoso evento: O que nos torna humanos?

É fácil desqualificar as outras pessoas e as outras crenças; aliás, é um meio muito usado para justificarmos as nossas próprias posições, nos fazendo cegos, dogmáticos e (o que é mais perigoso): vulneráveis (afinal, loucos são os outros). Essa linha de raciocínio é arriscada, pois pode nos levar a subestimar os cultos de doutrinação, sejam religiosos, políticos ou qualquer outro. Como pôde acontecer tudo aquilo, então?

Também não parece adequado atribuir a culpa exclusivamente ao Reverendo, como se as pessoas fossem frágeis cordeiros caminhando inocentemente para o abatedouro, conduzidas por um homem de poder ilusionista e hipnótico, cujo controle ninguém pode escapar (mesmo o holocausto nazista não é mais analisado como sendo de exclusiva responsabilidade de Adolf Hitler, como demonstrou o premiado estudo de Daniel Goldhagen[2]. Seria mesmo um absurdo achar que Hitler cometeria tantas atrocidades sem o consentimento de alemães comuns). Mais inadequado ainda é dizer que tudo aconteceu do modo que aconteceu, porque Jim Jones era um “falso profeta”. Ora, essa alegação pressupõe que existe um “verdadeiro profeta”, o que nos leva para um centro de debates infrutífero (por razões óbvias). Além disso, uma discussão sobre se o seu profeta é mais veraz do que o meu, esconde o fundamental sobre líderes carismáticos: a persuasão e o controle sobre o rebanho. Desse modo, podemos de saída impugnar a argumentação que se concentra na veracidade de profetas como estratégia de explicação do fatídico dia naquele país que faz fronteira com o Brasil.

Na véspera da tragédia na Guiana, as pessoas estavam muito animadas e entusiasmadas com a vida em Jonestown. A convicção de que o Templo do Povo era a melhor forma de se viver, era extremamente sólida na época e, mesmo depois do massacre, percebe-se na voz de alguns sobreviventes certa nostalgia pelo que foi vivido em Jonestown antes das mortes. Compare três testemunhos (o primeiro gravado antes do massacre e os outros dois em retrospectiva):

[1] “Nunca estive tão contente ou realizado na minha vida. Não consigo descrever. Poderíamos conversar durante todo o dia e nenhuma palavra descreveria a paz, a beleza, o sentimento de realização, de responsabilidade e de camaradagem que há aqui. É fantástico. Não dá para descrever.” Disse Tim Carter, o mesmo que depois viria a perder a esposa e o filho.

[2] “Estou triste porque não deu certo. Parecia tudo tão maravilhoso. E digo isso sobre o dia 18 de novembro [dia do massacre]. Eu senti que havia perdido uma família. E sabia que tinha perdido meus filhos.”

[3] “Éramos pessoas que queríamos mudar algo. É uma pena não ter acontecido. E pode não voltar a acontecer. Mas uma coisa posso dizer: ao menos tentamos. Não ficamos à espera que outras tentassem. Sim, nós tentamos. Sim, foi um fracasso. Sim foi trágico. Mas, ao menos, tentamos [but at least we try].”

Nos três relatos há entusiasmo com a cidade que foi construída no meio da floresta e a tristeza só aparece, evidentemente, em razão das mortes. Mesmo no dia do massacre tudo parecia “maravilhoso”. Em outras palavras, os membros da comunidade não se percebiam como prisioneiros e não identificavam nada de errado na colônia (como veremos, tal percepção era, de fato, muito equivocada). Fica a impressão, nos trechos destacados, de que o massacre foi um episódio acidental, embora Jim Jones já tivesse falado aos fiéis sobre a possibilidade de suicídio coletivo como ato de repúdio ao mundo.

Ao que tudo indica, havia sim uma sólida convicção de bem-estar por viver naquela comunidade agrícola totalmente isolada do resto do mundo (não existia nenhum meio de comunicação disponível para os moradores da colônia e a cidade mais próxima ficava em um raio de 480 km, por meio de uma densa floresta. Só Jim Jones e alguns membros mais próximos do reverendo saiam de Jonestown em um pequeno avião). Não é difícil de imaginar que para um membro do Templo do Povo, Jonestown era o paraíso na Terra: pessoas vivendo em harmonia, criando seus filhos juntos, plantando e vivendo do que se colhia, morando em casas confortáveis com redes na varanda, no meio de uma exuberante floresta tropical.

Então, por que o paraíso se tornou um inferno? Para começar, um alerta (que, de algum modo, já foi anunciado parágrafos acima):

David Myers, professor de psicologia do Hope College Holland, em Michigan, fez o seguinte comentário sobre as respostas fáceis, ao analisar o caso de Jonestown e de outros cultos de doutrinação contemporâneos:

“[...] se atribuirmos os movimentos dos Novos Religiosos à força mística dos líderes ou às fraquezas características dos seguidores, podemos nos iludir com a noção de que somos imunes às técnicas de controle social. Na verdade, nossos próprios grupos – e incontáveis vendedores, líderes políticos e outros persuasores – usam com sucesso muitas dessas táticas em nós. É bem tênue e indistinta a linha entre instrução e doutrinação, esclarecimento e propaganda, conversão e coação, terapia e controle da mente.” [3]

Certamente que não se convence alguém a matar e morrer por uma causa, do dia para a noite. O massacre de Jonestown em 18 de novembro de 1978 foi um longo processo que começou em uma pequena cidade de Indiana, Lynn, no início da década de 1960, nos Estados Unidos. O triste episódio foi possível por diversos fatores que foram se estabelecendo ao longo de vários anos, entre eles fenômenos psicossociais muito bem estudados e conhecidos: [1] culto de doutrinação; [2] polarização de grupo; [3] pensamento de grupo; [4] desindividuação [5] afiliação e círculo moral e [6] responsabilidade difusa.

Nos próximos textos, faço uma análise do massacre a partir daqueles fenômenos psicossociais. Por hora, fico com um trecho de uma carta anônima encontrada no meio daquele mar de cadáveres: “a história deste movimento, desta ação, tem que ser examinada repetidamente.”

Paulo Henrique Castro.


[1] A tragédia foi muito bem documentada com filmagens na hora do ocorrido, gravações de áudio, testemunho de sobreviventes e cartas deixadas no local. Veja o documentário “Jonestown: the life and death of people’s temple”, produzido pela BBC e disponível na internet.

[2] Goldhagen, Daniel Jonah; Os carrascos voluntários de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[3] Myers, David G. Psicologia Social. Rio de Janeiro: LTC, 2000; p. 150.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Instintos.

Corria o ano de 2002. A rede de televisão britânica BBC produz e lança um documentário sobre um tema controvertido: instinto humano[1]. Ao longo do Século XX, esse tema tinha sido alvo de debates acalorados. Para boa parte das ciências humanas (psicologia, antropologia, sociologia, história etc.), a simples menção da palavra “instinto” no mesmo parágrafo que o adjetivo “humano”, era (e ainda é) uma verdadeira heresia, incluindo o risco de ir parar na fogueira. “Humano é uma coisa, bicho é outra”, diziam os clérigos do Humanismo. Mas é duro de engolir a idéia de que os homens são separados dos outros animais, até porque só nos restaria ser incluídos entre os vegetais ou minerais.

Do lado oposto ao dos Humanistas estavam os Etólogos (biólogos que estudam o comportamento animal), principalmente depois que os cientistas Karl von Frisch (1886-1982), Konrad Lorenz (1903-1989) e Nikolas Tinbergen (1907-1988), foram laureados com o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973, justamente por notáveis estudos sobre o comportamento animal. Como qualquer ramo da Biologia, os cientistas que estudavam as condutas dos bichos consideraram com muito bom-senso a descoberta de Charles Darwin (1809-1882) de que os animais (incluindo os humanos) são aparentados.

Assim, chegamos ao longínquo ano de 2002 com um programa de televisão falando sobre “instintos”, muito embora o documentário tenha feito alguns humanistas pré-históricos torcerem o nariz.

Polêmicas a parte, a série da BBC foi dividida em quatro episódios: [1] Sobrevivência, [2] Desejo, [3] Competição e [4] Proteção. Vou relatar neste artigo apenas um dos quatro episódios (por motivo de espaço), com o intuito de divulgação científica, advertindo ao leitor de que há uma montanha de estudos que sustentam os aspectos meramente ilustrativos do documentário. Assim, vamos começar por um tema bem interessante: sexo.

[2] Desejo:

O narrador começa com perguntas sedutoras, junto a imagens de pessoas dançando rumba em um belo salão (aliás, rumba foi uma escolha muito adequada ao tema): “por que são vendidos mais de 20 mil Km de batom por ano?”; “O que é que cada pessoa faz mais de 3 mil vezes na vida?”; “Por que mais de 18 mil litros de loção pós-barba são usados por dia?”; “O que é que nos faz queimar 250 mil calorias ao longo da vida?”; “e o que é que 240 milhões de pessoas vão fazer hoje à noite?” Sim! Todas as respostas estão relacionadas com uma única: a prática sexual. Quando buscamos parceiros a aparência conta? E o cheiro, influencia? Quem é mais seletivo na escolha, homens ou mulheres?

Um experimento reproduzido na Imperial College and Science Museum Labraries, em Londres, testou as reações masculinas e femininas quanto ao sexo casual. Dois atores, um homem e uma mulher, tinham a tarefa de abordar (aleatoriamente) pessoas do sexo oposto, e simplesmente perguntar: quer dormir comigo?

Quem será que mais aceitou a indecorosa proposta, homens ou mulheres? Exatamente. Você acertou em cheio: foram os homens. “Os resultados foram claros: de todas as mulheres abordadas nenhuma disse ‘sim’ ao convite de um estranho.” Enquanto isso, três em cada quatro homens diziam ‘sim’ para um convite sexual de uma mulher desconhecida (a atriz), sem nem ao menos titubear. O que explica essa tamanha discrepância de prontidão sexual? A resposta fácil e nada elucidativa seria a corriqueira: “safadeza!” Entretanto, há outra explicação.

Primeiramente, considere que os humanos criaram civilizações há apenas 10.000 anos e que, do ponto de vista biológico, esse período não foi suficiente para alterar as pressões fisiológicas que interferem no comportamento há tempos. A descoberta dos anticoncepcionais deveria ter radicalmente mudado os costumes (de fato mudou, mas não ao ponto de erradicar inclinações biológicas estabelecidas milhões de anos atrás).

Apesar dos anticoncepcionais eficazes e da maior igualdade, homens e mulheres são radicalmente diferentes na postura quanto ao sexo, e a razão para isso é biológica.” O ponto fundamental é: quem fica grávida é a mulher e isso implica em um ônus adicional: “no tempo em que a mulher leva na gestação de um filho, o homem pode conceber centenas deles.” Veja: ao longo da vida a mulher libera cerca de 400 óvulos, ao passo que o homem em uma única ejaculação libera 360 milhões de espermatozóides (“a maioria dos homens é fértil o dia todo, todos os dias; as mulheres não”. O que será que isso tem haver com vontade de fazer sexo? O que será que isso tem haver com o fato de você encontrar em qualquer banca de jornais revistas pornográficas – apropriadamente chamadas de “revistas masculinas” – destinadas mais aos homens do que às mulheres?). Em média a gravidez leva 40 semanas, o que tem como efeito na mulher o gasto de 80 mil calorias extras. Essa diferença, inegavelmente, interfere no comportamento.

A diferença de grau de investimento na prole (quer para gerar, quer para criar), tem como resultado um comportamento mais seletivo entre as mulheres, mais do que entre os homens. Também a busca por sexo é mais intensa no homem do que na mulher (uma tendência, não um axioma), já que a testosterona é frequentemente liberada na corrente sanguínea dos homens.

Darwin já havia observado as diferenças de estratégias sexuais de machos e fêmeas em diversas espécies, bem como a diferente repercussão física e comportamental. Enquanto os machos disputam as fêmeas se exibindo (como o pavão), ou mesmo lutando até a morte (como os leões-marinhos), as fêmeas buscam características no macho que façam a diferença no que diz respeito à sobrevivência e segurança (dela e da prole). São seletivas. No caso da fêmea humana, de acordo com o documentário da BBC, as características mais importantes em um homem são: ser ousado, tranqüilo, inteligente, que indique intenção de cuidar (incluindo aí segurança e conforto), ser divertido, carinhoso etc. Insistindo no aspecto ‘cuidar’, o documentário menciona o seguinte: um estudo americano descobriu que homens casados ganham 50% mais do que os solteiros. Será que eles ganham mais porque casaram, ou são casados porque ganham mais? Parece que o “bom partido” é rapidamente fisgado. Para os cientistas, isto está ligado ao instinto feminino de buscar e manter parceiros que possam sustentar a família: “no reino animal, um macho com mais recursos muitas vezes é o mais atraente.” Em outras palavras, o macho que tem mais, acasala mais (é uma tendência, não um axioma). Porém, em um primeiro momento da escolha há algo que é preponderante: a aparência. Neste quesito, mais uma vez, os critérios femininos e masculinos são muito diferentes.

De acordo com os biólogos, a forma do corpo está relacionada com a saúde. Homens que tem o corpo em formato de pêra não fazem muito sucesso. Porém, aqueles que possuem uma forma corporal parecida com um triângulo invertido (quadril estreito, ombros largos) provocam mais reações entre as mulheres. Curiosamente, vários estudos, de acordo com o documentário, demonstraram que a forma física de triângulo invertido está relacionada com força física e boa imunidade, o que sinaliza uma composição genética atraente.

Nenhum super-herói até hoje foi retratado com um físico em forma de pêra. Você já parou para pensar nisso? Os humanistas alegam que o sucesso do formato triângulo invertido esta ligado à ditadura da moda, e á indústria do entretenimento. Ora, basta você observar como o corpo masculino era retratado na antiguidade grega e romana, seja na literatura, seja nas esculturas ou na arte em geral, que veremos certo exagero na alegação dos humanistas (Aquiles jamais seria retratado por Homero como um homem barrigudo). Antes da indústria do entretenimento aparecer com o seu suposto “padrão corporal”, o formato de triângulo invertido já fazia sucesso entre as mulheres e o que a indústria fez foi apenas se aproveitar do que já era sabido: em princípio há sim uma preferência feminina por determinado corpo masculino.

O mesmo parece ocorrer no sentido oposto: homens têm preferências marcantes por determinado modelo de corpo feminino. O famoso formato de violão (quadril largo) é mais atraente em qualquer cultura. Além de sinalizar boa imunidade, essa forma de corpo feminino está relacionada com outro fator: fertilidade. Machos de diversas espécies precisam de indicadores físicos no corpo da fêmea para ampliar as chances de fecundação. O quadril largo começa na puberdade, exatamente quando começam os ciclos menstruais, do mesmo modo que as fêmeas de chimpanzés começam a ter os genitais intumescidos a partir do momento em que estão prontas para acasalar. Quanto mais intumescidos forem os genitais de uma fêmea de chimpanzé, mas elas são assediadas pelos machos do bando. As características físicas, portanto, sinalizam que as fêmeas já podem engravidar.

Moral da história: pense bem antes de dizer que “a aparência não conta. O que conta é a beleza interior.” (Claro que a tal “beleza interior” conta, mas a questão aqui é não ser cínico ao afirmar que a aparência não é relevante na escolha de um parceiro (a). Se aparência não contasse, a indústria de cosméticos já teria quebrado, se é que um dia teria existido).

Outro aspecto deste episódio é que a escolha feminina e masculina, no que diz respeito ao sexo, está relacionada ao cheiro do parceiro (a). Mulheres e homens tendem a escolher aqueles que tenham genes diferentes, mas como as pessoas sabem disso se os genes não são visíveis? E qual seria o motivo?

A Universidade de Newcastte, Inglaterra, fez o seguinte experimento: mulheres irão passar duas noites com camisas que serão posteriormente cheiradas por homens desconhecidos. As donzelas que participaram do experimento fizeram exames de sangue para detectar seis genes (todos relacionados com o sistema imunológico). A hipótese dos cientistas é a de que tanto homens, quanto mulheres escolhem parceiros que tenham genes diferentes. E um dos indicadores para saber a diferença é o cheiro natural exalado pelo corpo do sexo oposto. Pois bem. Após impregnar as camisas com seus cheiros naturais por duas noites seguidas, as camisetas foram postas imediatamente em sacos plásticos lacrados, identificados e conservados em um freezer.

Dispostos em frascos, as camisetas deveriam ser cheiradas pelos homens individualmente (eles também se submeteram a exames de sangue, claro). A tarefa era simples: cheirar e colocar em uma ordem de preferência. O resultado foi espantoso! A ordem de preferência refletia a disparidade genética, isto é, os homens escolheram preferencialmente os cheiros vinculados as mulheres com genes diferentes. Incrível, não? (Talvez seja importante repensar o uso excessivo de perfumes... vai que confunde.)

O que ocorre com o corpo no momento da atração sexual? Pupilas dilatam, o cérebro libera uma onda incrível de dopamina (substância que promove a sensação de bem-estar), feromônios são secretados no suor, aumentando o poder de atração sexual; com a liberação de altas taxas de adrenalina, ocorre um desvio da irrigação sanguínea do estômago (provocando a típica “sensação de frio na barriga”, que é descrita pelos apaixonados); o sangue irriga os lábios e os órgãos genitais e, por fim, quando o corpo está totalmente preparado para fazer sexo, esse estado provoca uma conhecida dificuldade de se concentrar em outra coisa.

Depois de tudo que foi dito, resta um último tópico: a infidelidade feminina e o ciúme masculino. Somando os aspectos sociais, culturais e biológicos, há pouca dúvida para o fato de que o homem é mais infiel do que a mulher. Mas isso evidentemente não implica que mulheres não sejam infiéis. “Estudos no mundo todo mostram que em média uma a cada dez crianças está sendo criada por um homem que não sabe que não é o seu pai legítimo.” Ora, como essa tragédia foi descoberta? As estimativas foram feitas baseadas em casos estranhos de filhos que tinham doenças hereditárias dominantes (em que ambos os genitores forçosamente tem que ter o alelo defeituoso para que a criança tenha a doença), mas os exames laboratoriais demonstravam que o pai não tinha os genes, apenas a mãe. Isso significa que ela pulou a cerca e pulou em seu período fértil.

Robert Trivers, o premiadíssimo professor de Harvard, foi um dos primeiros a estudar investimentos parentais: homens e mulheres diferem quanto ao seu empenho em criar a prole. Geralmente os machos de mamíferos não são bons pais e cabe à fêmea o encargo na criação da cria. Criar filhos de outros machos então? Raríssimo. Exige um investimento que a maioria dos machos não está disposta a pagar. Em função disso, o ciúme feminino está ligado, ao menos no caso dos humanos, ao abandono; e o ciúme masculino está ligado fortemente ao sexo. “Em termos de evolução, é desastroso para o macho criar a prole de outro, pois recursos valiosos são desperdiçados investindo em genes que não são os seus. E por esse motivo os homens têm forte inclinação instintiva para o ciúme sexual.”

Outro dado: “O ciúme sexual masculino é um instinto que se faz presente em qualquer cultura. Um estudo europeu sobre homicídios aponta o ciúme sexual como motivação em quase um terço dos casos analisados.”

Volto para as questões iniciais: “por que são vendidos mais de 20 mil Km de batom por ano?”; “O que é que cada pessoa faz mais de 3 mil vezes na vida?”; “Por que mais de 18 mil litros de loção pós-barba são usados por dia?”; “O que é que nos faz queimar 250 mil calorias ao longo da vida?”; “e o que é que 240 milhões de pessoas vão fazer hoje à noite?”

O que nos torna humanos?


[1] Fonte: Instintos. O lado selvagem do comportamento humano. Produção BBC, 2002. Distribuição nacional Editora Abril, 2005.

domingo, 2 de outubro de 2011

“Volver”

Retorno. Pedro Almodóvar, cineasta espanhol, escreveu e dirigiu um filme magnífico, que retrata as voltas e giros da vida, nossas experiências e lembranças, nossos fantasmas e demônios.

“Volver” estreou na Europa em 2006 e foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. Seu refinado roteiro expõe um tema marcante sobre a condição humana: a vida é linear ou feita de ciclos? Há quem acredite que a existência é como uma linha no tempo, sem retornos. Sim, de fato a vida não tem “bis”, o que lhe confere um tom dramático. Porém, o passado não é o que fica para trás. O passado é o que está em nós, o que nos acompanha encalacrado em nosso inconsciente, quieto, mas ativo em sua simultaneidade temporal.

Uma marca onipresente do filme é o vento, com seus rodamoinhos, suas curvas, sua força e aparente invisibilidade. Ciclos. Calmaria e retorno. O vento leva, mas volta com assuntos mal-resolvidos, como coisas que deixamos de fazer e que queríamos tanto ter realizado. Longe de se tratar de simples nostalgia, “Volver” trata dos eventos que ocorrem nas camadas mais profundas da mente humana. Fantasmas, mas vivos do que supúnhamos.

Se os feitos não realizados são fantasmas que, vez por outra, surgem, há outros tantos tipos de retornos. A saudade é um deles. Às vezes tão doída que é melhor não olhar para a foto, não ter uma peça de roupa e não ir aos lugares outrora freqüentados pelo objeto de saudade (esses lugares costumam ficar encantados). A saudade nos revela a pequenez da existência humana, ao mesmo tempo em que nos lembra nossa grandeza... Ciclos... Intermináveis ciclos. Poderíamos ser criaturas de um tipo que não percebesse a ausência daquilo que mais prezamos. Mas, não! Foi-nos dado o sabor quer doce, quer amargo de lembrar que perdemos algo; ora para sempre, ora por dias, ou por alguns instantes.

Arrependimento. A protagonista do filme, Raimunda, interpretada por Penélope Cruz, se ressente em seu silêncio mordaz por não ter dito à mãe o que gostaria de dizer. Há tempo ainda? Podemos contar com a chance de dizer o não dito? Somos criaturas de arrependimentos. Mesmo aquele que adora dizer que não se arrepende de nada na vida, talvez esteja querendo mesmo é dizer que se arrepende por ter se arrependido tanto.

Segredos. Raimunda tem um segredo intocável e muito bem guardado (haverá coisa que guardamos com tanto zelo do que um segredo?). A física está errada: segredos têm peso. Raimunda nos revela isso muito bem. E como tudo o que carregamos sozinhos é acompanhado da ânsia de os jogarmos fora, um dos momentos mais comoventes do filme de Almodóvar é o ajuste de contas de Raimunda com a filha: a protagonista não tem culpa, então por que carregou por tanto tempo pedras nas costas? Vergonha. É necessário jogar as pedras fora, dividir o peso, mas a vergonha é um freio poderoso.

A vergonha de Raimunda me fez lembrar o famoso Mito de Giges de Platão: um sujeito encontra um anel mágico que lhe dá o poder de ficar invisível. Pois bem. Giges faz tudo o que é proibido, exatamente porque a invisibilidade tirou-lhe o que há de mais humano no homem: a capacidade de sentir vergonha diante do olhar alheio.

Há um ponto em comum entre os filmes de Almodóvar e a filosofia de Thomas Hobbes: reconhecer que as pessoas reais e concretas, de carne e osso, não podem ser divididas como se fossem de dois times opostos: o bem e o mal (o chamado “moralismo maniqueísta”).

O interessante de “Volver” é que Raimunda vai e vem (bem como o mundo dela também se move nesse percurso de retornos), porque, sob o olhar de Almodóvar, ela é humana e não divina. Ciclos, apenas ciclos.

sábado, 24 de setembro de 2011

A Infidelidade de Jasão e a vingança de Medeia.

Esta é uma história de juras de amor, traição, ciúmes, profunda decepção e amargura com a vida. Uma história que nos revela os desvãos da alma humana.

Tudo começou há muito e muito tempo quando o famoso herói Jasão ficou sabendo, ainda jovem, que ele era herdeiro do trono da cidade de Iolco, tomada por seu tio Pélias.

Jasão fora treinado desde a infância pelo centauro Quíron (uma criatura meio homem, meio cavalo). Já adulto, Jasão era forte, veloz e destemido. Invejado pelos homens e desejado pelas mulheres. A missão do herói era reaver o trono daquele reinado, que lhe pertencia por direito e estava nas mãos do usurpador.

Ao chegar a Iolco, Jasão foi logo reivindicar o reino. Pélias, então, lhe fez uma pergunta:

— Quem é digno de ocupar o trono? Jasão deu uma resposta estranha:

— Aquele que trouxer o Tosão de ouro.

Ora, pegar o carneiro com lã de ouro seria uma árdua tarefa. Para começar, Jasão teria que navegar para outra cidade, Cólquida. O desafio exigiu o chamado de 50 outros heróis: os Argonautas, assim denominados porque a nau chamava-se Argos.

Jasão embarcou com seus companheiros em uma aventura cheia de perigos. Após uma longa jornada chegaram ao seu destino e foram recebidos pelo rei Eetes, que tinha uma bela e astuciosa filha: Medéia.

Não é demais dizer que o rei não gostou nem da presença e muito menos das intenções de Jasão e os Argonautas, principalmente quanto ao intento de pegar o Tosão de ouro. Tentando impedir a realização do feito, de modo dissimulado, Eetes impôs uma condição: Jasão teria que vencer duas provas para sair da Cólquida com a lã de ouro. A primeira era domar dois touros que tinham os cascos de bronze; a segunda, usá-los para arar um campo e semear os dentes de um dragão. É aí que entra Medeia.

Apaixonada ao ver Jasão pela primeira vez, a princesa esperou a manhã do dia seguinte e revelou os planos malévolos de seu pai: da venta dos touros saiam fogo e do campo a ser arado surgiriam infinitos guerreiros. Jasão não teria chance alguma. Para os touros, Medéia preparou ungüentos que os afugentariam. Quanto aos guerreiros, bastaria Jasão usar da artimanha de jogar uma pedra no meio deles e pronto. Os guerreiros iriam lutar uns contra os outros para pegar a pedra.

Jasão ficou muito impressionado com a presteza da princesa, afinal, ela estava traindo o próprio pai. Em troca, o herói prometeu cumprir o pedido de Medeia: casar-se com ela e levá-la para a Grécia. Amor à primeira vista.

Jasão conseguiu vencer os touros e os guerreiros. Também com a ajuda de Medeia, pegou o carneiro com lã de ouro. Embarcaram, desta vez com a princesa a bordo, enfrentando toda sorte de perigos (em que o papel de Medeia foi decisivo) e retornaram para Iolco.

Jasão conquistou o trono, mas não por muito tempo. Ele e Medeia foram exilados e tiveram que se refugiar em Corinto, cidade grega. Viveram felizes durante dez anos, na corte do rei Creonte. Tiveram dois filhos, mas Jasão vivia atormentado com o fato de que nenhum deles poderia se tornar rei, pois Medeia não era grega e na Grécia antiga ninguém que não fosse puro heleno ocupava o trono.

Tomado pela ganância e vaidade, Jasão decide assumir definitivamente o seu escondido relacionamento com Glauce, filha de Creonte, princesa de Corinto. Só uma grega poderia lhe dar filhos de sangue grego.

Apenas as palavras de Eurípedes para descrever o sofrimento de Medeia: “Agora tudo lhe é odioso, e aborrece-a o que mais ama [...]. Jaz sem comer, o corpo abandonado à dor, consumindo nas lágrimas todo o tempo, desde que se sentiu injuriada pelo marido, sem erguer os olhos, sem desviar o rosto do chão. Como uma rocha ou uma onda no mar, assim escuta os amigos, quando a aconselham.” [1]

Por que o homem que ela amou à primeira vista, por quem abandonou a pátria e traiu o próprio pai, rei Eetes, fez o que fez? Na Grécia, para uma mulher estrangeira, com filhos e sem um pai, o destino era o exílio e consequentemente a penúria. Além da dor por ter perdido o grande amor, da vergonha pela traição, Medeia teria que sair da Grécia. Pior ainda: não poderia mais voltar para sua terra natal, a Cólquida, onde salvou a vida de Jasão e lhe permitiu pegar o Tosão de ouro. Estava condenada à mendicância. Como iria sustentar os filhos? O rei Creonte decretou o exílio de Medeia, a despeito das comoventes súplicas da mulher traída. Foi humilhada pelo rei, agora sogro de Jasão. Gritava inconsolável Medeia:

Ai! Desgraçada de mim e dos meus males. Ai, ai de mim, que fim será o meu?[2]

Ai! Ai! O fogo do céu me trespasse a cabeça. De que vale ainda viver? Ai, ai! Quem me dera deixar a vida odiosa, pela morte libertada![3]

Os lamentos da princesa da Cólquida são constantes ao longo da narrativa. Eurípedes traduz com perfeição o estado emocional desestabilizado e a decepção terrivelmente amarga de Medeia. Um estado tão grande de desgosto, que a pobre mulher só sente vontade de viver por um motivo: vingar-se de Jasão, Glauce e Creonte.

Jasão retorna ao lar, não para acalentar Medeia, mas para convencê-la de que a melhor coisa é sair da Grécia, o que a deixa ainda mais furiosa. O diálogo que se segue entre os dois na obra de Eurípedes é dramático[4]. Ela o ironiza, o maldiz, chama-o de “bandido dos bandidos” e, em um dos pontos mais importantes da psicologia do traído: cobra a conta por anos de dedicação e reclama por ter recebido em troca desprezo. Eis o traço fundamental do universo emocional de alguém traído: o dano exige alguma forma de reparação, mesmo que seja apenas na fantasia, isto é, imaginar que o traidor também tenha prejuízos.

Certamente que a condição de Medeia pode ser traduzida usando os versos da música “Atrás da porta”, de Chico Buarque[5]:

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Só pra mostrar que ainda sou tua.

É curioso que a tragédia grega retrate a dor da traição feminina e não da masculina. O comportamento de Jasão é tipicamente próprio do homem que trai. Do ponto de vista masculino, a traição não parece ser revestida deste drama do abandono, tão bem ilustrado por Eurípedes e Chico Buarque. Há um momento em que Jasão diz: “[...] ainda que tu me odeies, jamais eu seria capaz de te querer mal.” [6] Porém, em outra passagem, Medeia, adorando pelo avesso, diz: “Odeia-me. Também eu detesto o azedume da tua voz.” [7]

As palavras ditas por Jasão, citadas no parágrafo anterior, representam a versão antiga da expressão contemporânea: “vamos terminar, mas seremos bons amigos.” Nada mais agressivo para uma mulher traída. Ao que tudo indica as reações masculinas e femininas, quanto a traição, parecem ser vividas de modos bem distintos. Jasão não vê drama algum, ao passo que Medeia deseja a morte. A experiência da perda amorosa por traição, a troca feito mercadoria, é intensa e indelével no universo feminino e encarada de maneira muito diferente para os homens (na condição de traído ou traidor). Há um momento em que Medeia pergunta para Jasão: “Crês que isso é pequena calamidade para uma mulher?” Eis uma questão que vale a pena ser pensada: como o abandono é encarado por homens e mulheres? Aparentemente, a mágoa acompanha por mais tempo a mulher abandonada do que o homem abandonado.

O texto original de Eurípedes também é claro em outro aspecto: nada da vingança de Medeia foi por impulso. De fato ela fica cega para o mundo inteiro, como se o amor fosse o meio pelo qual Medeia pudesse enxergar a vida em si. Era o amor o que fazia aquela mulher ver significado na vida; ver, por assim dizer, as cores da existência. Nada mais. Não há momentos de desespero ao longo da peça, o que é intrigante. Sem dúvida nenhuma podemos afirmar que a fúria ardilosa de Medeia (bem como a sua notória ânsia de vingança), estava intimamente ligada com a frustração de ter investido tanto naquele amor, arcando com renúncias e custos altíssimos, tais como: a perda do laço afetivo com o pai, o abandono da terra natal, dispor suas habilidades e préstimos a um homem que, no entanto, lhe pagou com a torpe traição, vergonha e humilhação. Medeia calcula passo a passo a sua meticulosa e traiçoeira vingança. Logo, não há na tragédia o que hoje chamamos de “crime passional”.

Após um monólogo interessante em que Medeia apresenta em detalhes o seu macabro plano[8], a princesa termina proferindo duras palavras e expressando uma determinação espantosa e ao mesmo tempo clara em suas intenções:

Vamos. De que me vale viver? Não tenho pátria, não tenho casa, não tenho refúgio para esta calamidade. Errei uma vez, quando abandonei a casa paterna, confiada nas palavras de um grego, que, com a ajuda do deus, sofrerá a nossa justiça. Porque não tornará a ver com vida doravante os filhos que de mim teve, nem gerará nenhum da noiva recém-casada, porque será forçoso que essa má tenha má morte com os meus venenos. Ninguém me suponha fraca e débil, nem sossegada; outro é o meu caráter: dura para os inimigos, benévola para os amigos. Porque de tais pessoas a vida é gloriossíssima.” [9]

O alvo da vingança de Medéia é Jasão e Glauce (pela traição) e Creonte (por ter decretado o exílio), mas porque os “filhos adorados” têm que morrer? Responde Medeia: “Nada morderá mais rijo no coração de meu marido.” [10] Está aí a representação grega, em seu formato mais extremado, claro, do sentimento avassalador que acompanha os amantes traídos: a necessidade irascível de reparação. Isso parece dizer que o amor é uma forma de contrato. Talvez seja mesmo difícil, na vida real, que alguém passe tanto tempo se dedicando ao amado (a) e, sabendo-se traído (a), não manifeste cobrança e a conseqüente exigência de reparação ao dano, em uma medida inferior ao extremo narrado na tragédia, eu insisto[11].

O plano de Medeia começa a se concretizar: ela manda a empregada chamar Jasão, sob o pretexto de pedir desculpas. “Rogo-te, Jasão, que perdoe-me as minhas palavras.” — diz Medeia. O que se segue é um dos mais emblemáticos episódios de dissimulação da literatura ocidental! Medeia convence Jasão em não exilar os filhos e, ele próprio, cuidar da criação das crianças. Pede ainda, em sinal de bom grado, que permita que os filhos levem ao palácio real alguns presentes (adereços de ouro) para a noiva, Glauce.

Os presentes (contendo veneno) foram dados e os filhos trazidos de volta para se despedirem da mãe. Medeia hesita em matá-los. Indecisa, digladia-se com sentimentos conflitantes: o amor materno e a desmedida ânsia de vingança. Neste momento, surge o mensageiro com a notícia da morte de Glaucia e Creonte: “um espetáculo pavoroso”. Segue-se o desfecho: Medeia mata os filhos e os oferece em um banquete para Jasão, que os come sem saber. Quando Medeia revela o conteúdo do banquete (e toda trama friamente calculada), só resta a Jasão o desespero: “Ai de mim, que a boca querida dos filhos eu queria, desgraçado, agora beijar.” Será que o sofrimento de Jasão foi suficiente para saciar a vingança de Medeia? Ela responde: “Não chores ainda; aguarde a velhice...

Será, então, a ânsia de vingança decorrente da dor da perda amorosa por traição, algo deveras imperecível? O que nos torna humanos?

Paulo Henrique Castro


[1] Eurípedes. Medeia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 4ª. Edição, 2008; p. 45.

[2] Idem, p. 49.

[3] Idem, p. 51.

[4] Leia os versos entre 445-625.

[5] Além da música “Atrás da porta”, Chico Buarque, junto com Paulo Pontes, escreveram uma peça baseada na tragédia de Eurípedes: “Gota d’água” (também o nome de uma música de Chico que se aplica a Medeia).

[6] Verso 460.

[7] Verso 1370.

[8] Entre os versos 765-810.

[9] Idem, p. 79-80.

[10] Idem, p. 80.

[11] Na vida real, algo de similar ocorreu no famoso caso da “Fera da Penha”, no Rio de Janeiro, envolvendo amor, ciúmes, traição, vingança e assassinato de uma menina.

domingo, 4 de setembro de 2011

A vida pode ser uma obra de arte? Considerações sobre a estética da existência.

A palavra ‘estética’ foi criada por Alexander Baungarten (1714-1762), para designar a área de conhecimento filosófico que teria como objeto de estudo as faculdades sensitivas humanas em relação ao ato de captar a beleza, o belo e as formas artísticas[1]. ‘Estética’, assim, tornou-se um termo usado para designar uma parte especifica da filosofia que estuda o belo e a arte.
Acontece que Baungarten não inventou o termo por acaso. O filósofo alemão serviu-se de modo intencional do prefixo grego αϊσθη- (aisté), que forma um amplo conjunto de palavras em grego, destinadas a designar as atividades próprias dos órgãos dos sentidos humanos (tato, paladar, audição, olfato e visão). Por exemplo, αϊσθησις (aistésis) quer dizer:
(1) Sensação: [a] a totalidade de informações sensíveis que mobiliza afetos e emoções; [b] qualquer elemento sensorial específico.
(2) Sentido: [a] faculdade de sentir, sofrer alterações sensoriais; particípio passado do verbo sentir; [b] a recepção das sensações e a consciência das sensações; [c] sinônimo de sensação ou conjunto de sensações; [d] faculdade de perceber uma modalidade específica de sensações (calor, ondas sonoras, sabor, textura etc.), que correspondem a um órgão determinado, cuja estimulação da início ao processo interno da recepção sensorial; [e] o próprio órgão dos sentidos, o receptor.
Outro exemplo é o substantivo αϊσθήριον (aistérion), que quer dizer “sensório”: [a] relativo à sensibilidade (faculdade de receber informações sobre as mudanças no meio interno e externo); [b] o órgão dos sentidos, o centro de recepção das sensações; próprio para a transmissão de sensações. Por fim, outra palavra grega da mesma família fonética e semântica, αίσθητός (aistétos), que pode ser traduzida pelo termo “sensível”, isto é: [a] aquilo que tem a capacidade de sentir; [b] aquilo que pode ser percebido pelos sentidos; [c] quem tem a capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar.
Pois bem. Do exposto, podemos inferir que Baugarten não usou a palavra ‘estética’ de modo fortuito. O filósofo tinha em mente a idéia de que as obras de arte e a própria criação artística são provocações, exercícios e explorações do tato, da audição, do paladar, do olfato, da visão, em uma só palavra: do corpo. A arte é provocação dos sentidos; portanto, das emoções. É na arte que o corpo é revirado, contorcido, forçado a expurgos e explosões. Penso, por exemplo, no filme do cineasta francês Louis Malle (1932-1985), “Perdas e Danos”, e só o que me vem ao corpo (não só à cabeça) é o poder desestabilizador de uma paixão, do convite contraditório daquilo que é proibido, das pedras que carregamos nas costas sem pedir, das conseqüências dos atos impensados (“impensados”, porque são apenas sentidos). Do que é feita a vida? A “doce vida” (Felline).
A estética funda a própria existência humana: ver, não é somente ver formas e figuras, mas, sim, ver paisagens; cheirar, não é somente “captar propriedades que têm certos corpos de emanar partículas voláteis capazes de afetar os órgãos olfativos”, mas, sim, perceber o cheiro de um filho que já se foi, impregnado nas roupas deixadas no armário; tocar, não é somente “identificar informações sobre textura, consistência, peso e temperatura de um corpo”, mas, sim, acariciar; ouvir, não é somente “captar pelos órgãos da audição uma vibração que se propaga no meio elástico com uma dada freqüência”, mas, sim, se emocionar com uma música ou uma simples declaração de amor; por fim, o paladar não é somente “a função de captar e identificar gostos pela língua e transmiti-los pelos nervos gustativos até o cérebro”, mas, sim, o degustar de sabores. Assim, o ser humano está condenado a perceber o mundo de forma quase encantada. Tal qual um quadro representa algo (que pode ser belo, feio ou sublime), as representações mentais que começam com a experiência sensorial, são retratos arrebatadores da vida.
Acresce o seguinte: “estética” quer dizer que o mundo nos afeta. Essa, entretanto, não é uma idéia nova. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), descreveu esse fenômeno no § 29 de sua obra fundamental (“Ser e Tempo”). Heidegger designou essa condição humana de sempre estar afetado de Befindlichkeit (“tonalidade afetiva”; “sentimento de situação”; “disposição”), isto é, o homem é o único ente que está em condição de ser afetado pelos outros entes que vem ao seu encontro no mundo. Isso significa dizer que o ser humano não é apático (a própria apatia já é uma forma de não ser apático); estamos sempre em sintonia com o mundo, disposto, afetado. Daí Heidegger escolher termos que nos permitissem compreender a nós mesmos como criaturas que imprimem tonalidade ao que é percebido. Os acontecimentos não são, na analítica existencial de Heidegger, fatos brutos, eventos dados. O homem é “ser-no-mundo” (In-der-welt-sein) e, desse modo, a existência uma categoria estética. Por isso que a morte nos assusta: ela põe em relevo a beleza da vida que nos será arrancada sem licença. A vida tem essa grandiloquência que as antigas tragédias gregas imortalizaram (leia ou veja a Trilogia Tebana, de Sófocles). O trágico é essa percepção de que vivemos como em uma gangorra, entre a felicidade e a infelicidade.
Pensando na filosofia de Heidegger, Michel Foucault (1926-1984) disse certa vez: “por que uma luminária e uma casa podem ser uma obra de arte e a vida não?” Será tal questão um convite para que você faça da sua vida algo de sublime? Certamente que ficar em casa assistindo Faustão, esperando que a sorte caia no seu colo, não parece uma opção artística. E a diferença de gostos? Ah, os gostos! Quase ia me esquecendo. “Gosto não se discute”, vão dizer os defensores petrificados do Domingão. Então raciocinemos: é claro que a indagação de Foucault possui um caráter político (interpretando a pergunta no contexto da obra do filósofo francês). Sim, gosto não se discute. Mas quem disse que a liberdade é uma questão de gosto? Quem tem coragem de dizer que a vida pode ser bela na escravidão? Para ficar mais claro, expresso a indagação de Foucault com um trecho de uma música dos Mutantes:
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Eis o fato: a liberdade é sublime (“sublime” é uma categoria estética acima do belo). Portanto, viver livre é o extremo da obra de arte.
Paulo Henrique Castro.

[1] Cf. Lalande, 2001.