domingo, 26 de junho de 2011

Origem da discórdia entre os Homens.

A ciência está perto de consolidar uma trivialidade: o comportamento humano é comportamento animal. Estranho que a ciência tenha que provar algo tão intuitivamente óbvio, não? Imagine você que em pleno século XXI ainda persiste a espantosa e esdrúxula crendice de que o homem é apartado das bestas (termo usado na Idade Média para designar os animais não-humanos). Nossos atos são eivados de emoções como medo, raiva e ciúme, usando o mesmo circuito neural que qualquer primata.
No final do texto apresentarei uma chocante coletânea de relatos narrados por pessoas que, por motivo torpe, tiraram a vida de alguém. Uso os relatos meramente para ilustrar o tema que será abordado, mas não para argumentar baseando-me em exemplos. Antes, porém, a devida fundamentação teórica.
Retomo o pensamento do filósofo Thomas Hobbes, já discutido neste blog em algumas postagens. O tema agora é a explicação oferecida pelo pensador inglês para o problema da discórdia humana. Quero lembrar de imediato três coisas: [a] como é um debate de interesse científico-filosófico, fica excluída qualquer consideração mágico-religiosa que, aliás, está muito distante do meu cardápio intelectual, para ser bem franco; [b] discórdia aqui significa rixa, briga, inimizade, estado de litígio, estado bélico, rancor por ciúmes, conflito com potencial letal ou com vistas a gerar deliberadamente prejuízo, dano, estrago, perda e destruição. Exemplo: a discórdia pode ser a própria guerra ou uma simples discussão de trânsito; uma briga em um bar ou um linchamento; discórdia também pode ser um desejo íntimo de que o outro se dê mal, embora o indivíduo nada faça efetivamente algo para que o outro sofra prejuízos. Portanto, “discórdia”, aqui, não quer dizer “falta de concordância a respeito de algo”, como no caso em que pessoas discordam se Deus existe ou não, se o PT é corrupto ou não, se o governo do FHC foi melhor do que o do Lula ou não etc. [c] em Filosofia concisão é quase um crime. Lembro das palavras de Jacques Derrida, em entrevista à Folha: “Para um filósofo é muito difícil falar pouco das coisas”. Como o espaço de uma postagem em um blog deve ser o mais breve possível, um tema tão controvertido como a discórdia humana evidentemente será tratado com certa precariedade. Deixo a advertência para quem se interessar pelo assunto: muitos aspectos da discórdia humana estão omitidos nesta pequena apresentação. Dito isto, passo ao filé mignom:
O ex-diretor do Centro de Neurociências Cognitiva do MIT, hoje professor de Harvard, Steven Pinker, disse que a filosofia de Hobbes (construída no longínquo século XVII) foi atualmente redescoberta pela Biologia Evolucionista, pela Teoria dos Jogos (ramo elegante da matemática, muito usado nas Ciências Sociais para analisar o comportamento social humano) e pela Psicologia Social, entre outras áreas. Tudo indica que as explicações hobbesianas representam um retrato fiel dos atos humanos, isto é, daquilo que somos realmente, da nossa natureza e não de uma pintura inventada na Europa Cristã de uma criatura ideal, quase angélica ou, o que da no mesmo, de uma criatura que é má por causa da Queda. De fato a análise de Hobbes é crua, fria e pessimista, abandonando o homem a sua própria sorte.
Quais são as causas da discórdia entre os homens? Uso as palavras de Hobbes: “De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais da discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória [ou honra].” [1]
[1] Competição: uma vez que os humanos disputam recursos (alimento, parceiros sexuais, status social, moradia, trabalho, territórios, riquezas, armas etc.) e que os próprios bens adquiridos podem servir de recursos tanto para obter outros, quanto para a manutenção dos que já se tem; e, uma vez que o ser humano é insaciável[2], as disputas assumem um contorno dramático, promovendo discórdia. Ora, seria uma indelicadeza lembrar ao leitor tantos fatos históricos antigos, já bastante conhecidos, em que os homens se matam por causa de recursos, dos mais variados possíveis. Em período recente, entre 1990 e 2006, ocorreram 910 conflitos de guerra[3]. Como lembra Dam Smith, embora a efetivação da violência em larga escala seja multifacetada, “Apenas dois fatores são necessários para que uma guerra ocorra – uma desavença e um propósito significativo pelo qual lutar.”[4] Muitos conflitos começaram por disputas em torno do preço de algum produto. Se referindo à pobreza, Smith afirma: “Quanto mais subsistem os recursos naturais dos países, maior a competição entre eles e mais fraca a capacidade do país de suprir as necessidades de seus habitantes. Isso promove o desgosto, uma sensação de injustiça e frustração. Trata-se do solo fértil para políticos ambiciosos articularem a insatisfação, para dar voz a um senso de injustiça, ainda que compartilhem ou não os mesmos sentimentos de seus seguidores.”[5]
O ser humano, portanto, compete para “ficar no lucro”. Já que ninguém quer “ficar no prejuízo”, ocorrem conflitos.
[2] Desconfiança: somos iguais em constituição. Por exemplo, todos nós sentimos medo. Como demonstra Hobbes, podemos diferir quanto ao objeto do medo, mas ainda assim o ser humano sente medo. Essa emoção faz parte da base que nos constitui como animais. Se uns tem medo de altura e outros medo do escuro, isso não passa de “objeto do medo” não da capacidade em si de sentir. O mesmo se dá com a cobiça. Muitas vezes cobiçamos o que o outro tem. Como diz Hobbes: somos criaturas que nos comparamos. Isso gera insegurança, pois posso supor que alguém pode não só cobiçar, mas tomar o que eu tenho. Guerras ocorreram por simples desconfiança, já que “a melhor defesa é o ataque”. Quando você sai de casa você se certifica de que fechou tudo, desconfiando que alguém possa entrar. Hobbes gostava de lembrar que o muros e muralhas eram a prova da desconfiança humana. Fico imaginando Hobbes tomando conhecimento sobre as “guerras preventivas” norte-americanas.
[3] Glória ou Honra: você está caminhando na calçada. No sentido contrário vem outra pessoa e esbarra no seu ombro e continua andando, sem sequer olhar para trás. Como você se sente? Eu respondo para você: você se sente desonrado, fica pensando: quem é esse sujeito que nem sequer me pede desculpas? Pois é. Segundo Hobbes, a discórdia surge por qualquer ninharia, como um sorriso sarcástico, uma palavra, uma opinião diferente, “e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido às suas pessoas, quer indiretamente aos seus parentes, amigos, nação, profissão ou ao seu nome.” [6]
De acordo com o filósofo inglês, a sensação de desonra nos leva ao forte desejo de vingança, que o autor define do seguinte modo: “O desejo de causar dano a outrem, a fim de o levar a lamentar qualquer dos seus atos, chama-se Ânsia De Vingança.”[7] Em outra passagem Hobbes define a vingança como “retribuição do mal com o mal[8] A visão do pensador é a de que a Lei dos homens é a seguinte: “Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris[9], isto é, “Com ferro fere, com ferro será ferido”. Desonra e desejo de vingança andam juntas.
Pinker fez o seguinte comentário sobre a afirmação de Hobbes de que a honra é um motor poderoso para a discórdia[10]:
A observação de Hobbes de que os homens brigam por causa de ‘uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente e qualquer outro sinal de menosprezo’ é tão verdadeira hoje quanto era no século XVII. Desde que começaram a ser registradas estatísticas sobre criminalidade urbana, a causa mais freqüente de homicídio tem sido ‘discussão’ – o que os boletins policiais classificam como ‘altercação de origem relativamente trivial; insulto, praga, empurrão etc.’ Um detetive de homicídios em Dallas comenta: ‘o assassinato resulta de bate-boca sobre coisas bobas. Os ânimos esquentam. Começa uma briga, e alguém acaba esfaqueado ou baleado. Trabalhei em casos onde os autores do crime estavam discutindo sobre um disco de dez centavos em uma jukebox ou sobre uma dívida de um dólar de um jogo de dados’.”
De acordo com o balanço anual do Instituto de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro[11], só no primeiro semestre de 2009 foram registrados 19.775 casos de lesão corporal culposa em brigas de trânsito. Uma fechada, uma buzina; forçar a passagem ou simplesmente piscar o farol serve de estopim para uma briga e até para um homicídio. O mesmo balanço registrou 3.198 casos de homicídios dolosos, também só no primeiro semestre daquele ano.
O ser humano é tão melindroso com sua honra que a pura e simples antipatia por alguém (“não fui com acara dele”) pode resultar em bate-boca, briga e homicídio.
Leia a seguir o relato de algumas pessoas condenadas por homicídios[12]:
[1] “Eu não fui com a cara do cidadão e ele não foi com a minha. A gente estava no boteco, os dois tinham bebido. Ele disse que eu não era homem. Mostrei para ele que eu era homem, sim. Fui para riba dele. Eu não queria matar, só brigar. Tanto que estava com o meu ‘trinta e oito’ e não usei. Ando com ele desde os 11 anos, quando ganhei do meu pai. O velho disse: ‘Nunca trespasse o direito dos outros, mas também nunca traga desaforo para casa’. Na briga, o cara puxou a faca e me furou. Tomei a faca e enfiei no peito dele. Morreu na hora. Dou graças a Deus por ter matado. Se não mato, ele me mata. Não penso mais nisso. Passou, passou.”
[2] “Matei minha ex-mulher porque ela levava muitos namorados para casa onde vivia com minhas filhas. Não foi por ciúme, mas sim porque ela estava dando mau exemplo para as meninas. A gota d’água foi quando fui pagar a pensão para minha filha e vi minha ex-mulher saindo de lá com outro macho. Passei a noite inteira acordado. O pensamento de matar ficava martelando na minha cabeça. Foi a pior noite da minha vida. No dia seguinte, fui até a casa dela de manhãzinha. Ela me viu e se assustou. Falei assim: ‘Lembra que a gente ia acertar aquela conta?’. Dei logo três tiros na cabeça. Foi como matar um animal. Se pensasse melhor, não teria feito isso.”
[3] “Matei um amigo de infância porque ele me bateu na cara. Ninguém quer apanhar na cara. O sangue da gente dá uma reviravolta. O homem não é nascido para apanhar na cara. Na minha festa de aniversário, esse rapaz ficou com ciúme porque uma ex-namorada dele estava querendo ficar comigo e me deu um tapa no rosto. Depois, fui até o meu quarto e peguei uma arma. Quando ele me viu, começou a correr, mas não deu tempo. Foi um tiro só, na nuca. Eu respeitava a amizade dele até o momento em que ele me agrediu. No mesmo instante que vi o corpo caído já tinha percebido que tinha acabado com a vida dele e com a minha.”
[4] “Esfaqueei meu marido e matei minha melhor amiga porque descobri que os dois tinham um caso. Fiz isso para lavar minha honra. Cheguei em casa e peguei ela com ele na minha cama. Fui para o bar na hora, desolada. Quando voltei para casa, ele estava só, chorando aquele choro falso. Fiquei com muita raiva. Dei seis facadas nele, mas ele não morreu. Saí de lá e fui para uma festa, onde encontrei a menina. Dei duas facadas nela. Ela implorou, mas eu deixei o ódio falar mais alto. Assisti a ela agonizar. Senti prazer em ver ela se debatendo. Hoje, vejo que não valeu a pena. Não sou uma assassina.”
Então, pensando em tudo que foi dito, eu quero saber em qual ponto sobre a discórdia que Hobbes estava errado?
Paulo Henrique Castro.

[1] Hobbes, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes. 2003, p. 108.
[2] Veja o texto que publiquei neste blog, Homo Passionalis: insaciável por natureza, sobre a afirmação hobbesiana de que os homens são insaciáveis.
[3] Smith, D. Atlas dos Conflitos Mundiais. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2007.
[4] Idem.
[5] Idem, p. 9.
[6] Idem nota 1.
[7] Idem, p. 52.
[8] Cf. p. 131.
[9] Idem, p. 113.
[10] Pinker, S. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras. 2004, p.442.
[11] Balanço das Incidências Criminais e Administrativas No Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Segurança, disponível na Internet.
[12] Relatos coletados pelo jornalista Kalleo Coura em reportagem da revista Veja de 17 de novembro de 2010.

domingo, 19 de junho de 2011

Não se pode não querer aquilo que se quer.

Na obra Leviatã, Thomas Hobbes (1588-1679) é muito claro quanto à concepção antiga e medieval sobre a racionalidade: simplesmente é inaceitável compreender a vontade (ato de querer) como um apetite racional. Por que? É o que veremos na seqüência a partir de algumas considerações sobre a noção de liberdade em Thomas Hobbes.
Com a Revolução científica do século XVII, surgiu uma forte crença de que os fenômenos físicos poderiam ser explicados recorrendo às leis do movimento, daí o termo mecanicismo, que indica:
Toda doutrina que recorra à explicação mecanicista. Entende-se por explicação mecanicista a que utiliza exclusivamente o movimento dos corpos, entendido no sentido restrito de movimento espacial. Nesse sentido, é mecanicista a teoria da natureza que não admite outra explicação possível para os fatos naturais, seja qual for o domínio a que eles pertençam, além daquela que os interpreta como movimentos de corpos no espaço.” [1]
O mecanicismo é uma concepção marcada por duas características, segundo Abbagnano: [i] negação do finalismo (não há objetivo ou plano nos eventos da natureza); [ii] causalidade necessária (ou determinismo): tudo que existe possui uma causa.
Sem sombra de dúvidas a filosofia de T. Hobbes pode ser classificada como um Materialismo Mecanicista: para explicar o mundo nós só precisamos examinar a matéria e o movimento dos corpos. Nesse contexto diz Hobbes: a vida não passa de um movimento dos membros cujo início ocorre em alguma parte interna. Tal perspectiva vale tanto para homens como para os outros animais.
Hobbes classifica o movimento animal em dois grupos: [i] movimento vital: circulação do sangue, pulsação, respiração, digestão, nutrição, excreção etc.; [ii] movimento voluntário: andar, falar, gesticular, mover os membros entre outros. O movimento voluntário serve par fortalecer o movimento vital, isto é, tem um valor de sobrevivência; e começa com a memória sobre onde, como, e o que. A própria memória é um resíduo das nossas sensações, que são, por sua vez, movimentos provocados nos órgãos do animal pela ação das coisas em nosso corpo (tato, audição, paladar, visão, olfato).
Se um cão fica acorrentado, então ocorreu um impedimento externo com relação aos movimentos do animal. Se não ocorrer impedimento (externo) algum, ou melhor, se ocorrer ausência de impedimentos externos, segue-se que o animal irá se mover da maneira que se move normalmente. O cão pode buscar a comida em vários pontos até se saciar. A ausência de impedimentos externos é, para Hobbes, propriamente a liberdade (ou independência).
Agora suponha que o animal seja impedido de se mover, impedindo-o de agir como habitualmente faz. Admita também que esse impedimento é uma doença ou qualquer impedimento próprio da constituição do animal. Nesse caso, o que lhe falta não é a liberdade, mas simplesmente a capacidade de se mover.
Diante de outras opções possíveis de ação ocorre uma série de pensamentos sobre o que fazer (deliberação). Este processo é constituído pela alternância de paixões conflituosas sobre fazer ou se abster de fazer, e também sobre as conseqüências de fazer ou da omissão do ato. Temos medo de fazer, hesitamos e calculamos (razão) sobre o impacto da ação. Enquanto se delibera sobre qual, entre as opções possíveis, será a ação mais adequada a ser escolhida, o curso da ação está em aberto. Porém, quando o processo de deliberação chega ao fim (vontade), manifestado na consumação do ato, o curso da ação está fechado. Assim, a idéia de opções possíveis implica: [i] possibilidade de ação em aberto; [ii] possibilidade de ação fechada, quando a opção X foi escolhida, a vontade seleciona então o ato visível.
Poderíamos falar de quatro tipos de liberdade: [i] liberdade de querer: quando desejamos algo ou não gostamos de algo (“Pedro quer brincar, mas está na hora de ir para a escola”); [ii] liberdade de escolher: quando se pode escolher algo sem que a preferência seja coagida (“Pedro pode escolher para sobremesa ou sorvete ou salada de frutas”); [iii] liberdade de fazer: quando efetivamente podemos realizar uma ação escolhida sem impedimentos externos (“Pedro pegou o sorvete”); [iv] liberdade de poder: quando se diz que há liberdade a partir da constituição do indivíduo (“Pedro pode tomar sorvete porque não esta mais doente”).
Hobbes admite apenas como liberdade [ii] e [iii]. Não há liberdade de querer, já que não se pode não querer aquilo que se quer (embora seja possível fazer ou não fazer aquilo que se quer); não há liberdade de poder, uma vez que é inadequado afirmar que alguém perdeu a liberdade por estar doente. Sendo assim, só há liberdade de escolher fazer algo ou se abster de fazer (praticar ou evitar ação), e há liberdade de fazer (quando não ocorre impedimento externo). A liberdade de fazer está ligada as condições objetivas da ação: ou há impedimentos externos, ou não. Se há impedimentos externos, não tenho liberdade de fazer; se não há impedimentos externos, tenho liberdade de fazer. Também a liberdade de fazer é limitada pela ordem dos motivos: algumas preferências são mais fortes do que outras.
Segundo Hobbes, em uma passagem muito peculiar, se compararmos com a tradição filosófica, “[...]liberdade é escolher o que temos vontade, mas não escolher a nossa vontade[...]”[2].
Trata-se de uma nova forma de compreender a condição humana. O querer ocorre como um fluxo inevitável, governado por nossas paixões. O indivíduo só não faz o que quer, porque há impedimentos externos; porém, lhe é negado ter a liberdade de querer ou não querer o que se quer. Isso pode ser observado no momento em que se delibera sobre algo extremo e a oscilação de medos, desejos e aversões podem ser tão conflitantes a ponto de gerar sofrimento no indivíduo.
Conta uma antiga lenda grega[3], que a guerra de Tróia começa quando a mulher do Rei Menelau, Helena, fugiu com um hóspede, o príncipe Páris. O insulto era duplo, o Rei traído e um deus ultrajado (Zeus era o protetor da hospitalidade). Tamanho insulto exigiu uma vingança à altura: invadir Tróia.
Coube ao irmão do Rei Menelau, Agamêmnon, ser o comandante dos gregos na guerra, sem saber do terrível destino que uma velha maldição lhe reservava.
No dia da partida para a guerra, duas águias apareceram diante do palácio de Menelau e devoraram uma lebre prenha. O episódio foi interpretado como se as aves fossem Menelau e Agamêmnon e a lebre fosse Tróia. Curiosamente, esse acontecimento deixou a deusa Ártemis (amiga dos animais) ressentida.
Quando as tropas estavam embarcadas e já no mar de Áulis, a deusa, então, retardou a navegação da esquadra grega com uma perigosa calmaria e impôs uma exigência para que as naus partissem: ou Agamêmnon matava a sua jovem filha virgem em sacrifício da deusa, ou toda a esquadra ficaria ali. Qualquer decisão do comandante seria danosa. Se não sacrificar Ifigênia, Agamêmnon condenará todos os seus subordinados à morte, já que não podiam nem atracar e nem partir. Por outro lado, matar a própria filha era um peso que o grande guerreiro grego não poderia suportar. O que fazer? Nas palavras de Ésquilo: “a decisão foi obra de um instante”. Ifigênia foi sacrificada e Agamêmnon amargou o seu terrível infortúnio.
As tragédias gregas foram escritas antes que a filosofia fosse sistematizada e todas continham dilemas morais, isto é: “Estamos freqüentemente diante de escolhas morais difíceis. Entre duas ações que é impossível realizar ao mesmo tempo não chegamos a saber qual a opção que constitui nosso dever, que é moralmente obrigatória [...]”[4]. Diante de duas obrigações que não podem ser, ao mesmo tempo, satisfeitas, um agente se vê preso a um dilema. Somos livres?
Ser racional, em parte, significa querer o que é certo e ser livre para querer o que é certo. Porém, para Hobbes, não é possível não querer o que se quer.
Paulo Henrique Castro.

[1] Abbagnano, Dicionário de Filosofia. São Paulo Martins Fontes. p. 653.
[2] English Works of Thomas Hobbes. Editora Bibliolife, Vol. V, p. 113.
[3] Oréstia, de Ésquilo (525 a. C. – 456 a. C.)
[4] Dicionário de Éica e Filosofia Moral.

domingo, 12 de junho de 2011

Deus: a explicação de Espinosa.

Baruch de Espinosa nasceu em Amsterdam em 1632 e foi um dos mais importantes filósofos da história da Filosofia. Faleceu em 1677, deixando uma obra original, controvertida e provocante.
De família judia, em 27 de julho de 1656 Espinosa é excomungado pela Comunidade Judaica. Segundo Marilena Chauí, especialista na obra do holandês, o seguinte trecho consta na ata de excomunhão do filósofo:
Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa... Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta. Maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa... Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele.”[1]
São palavras fortes. O que Espinosa poderia ter dito a ponto de provocar sentenças tão furiosas e intolerantes por parte de iguais seres humanos? É o que veremos a seguir.
Em primeiro lugar, Espinosa não era ateu. O problema não estava em ser descrente, mas no tipo de crença que o filósofo apresentava aos seus leitores. Espinosa acreditava em Deus, mas não no Deus da tradição judaico-cristã. A concepção espinosana de Deus era Panteísta. Porém, não era um Panteísmo sobrenatural: o Universo e tudo o que nele encontramos, do Sol aos mares; de um grão de areia aos animais, tudo é Deus. Seria apenas uma forma poética de falar da divina providência, com seus habituais atributos (ser bondoso, onipresente, onisciente, onipotente, pessoal, com vontade e intenções etc.)? De modo algum, senão Espinosa não teria sido excomungado. Deus é a Natureza, com todas as suas Leis inexoráveis. (Em cada passagem que ocorrer a palavra “Deus”, substitua mentalmente pela palavra “Natureza” e você terá um choque.)
Só Deus existe em si e por si é concebido[2]. Uma árvore não existe em si, já que para explicar a sua formação dependemos da existência de outras coisas (água, terra, caule, fotossíntese, clorofila, luminosidade e outros elementos). Também não podemos conceber a árvore fora dessa cadeia de coisas relacionadas entre si, pois a concepção da árvore dependerá da concepção das outras coisas. Portanto, se examinarmos os objetos ao nosso redor, somente Deus pode [a] existir em si e [b] por si ser concebido. Caso se encontre um objeto que satisfaça [a] e [b], então este objeto será aquilo que Espinosa chamou de substância. Ora, como só a noção de Deus preenche os dois requisitos, só existe uma única substância: Deus. Alguém poderia objetar: “mas posso pensar que Deus teve um início no tempo e, portanto, deriva de alguma coisa que o explicaria (o que acaba por romper com [a] e [b]).” A resposta de Espinosa seria: Deus é eterno, incausado. O passo seguinte seria perguntar para o filósofo como pode algo ser eterno? Mais ainda: se nós, um grão de areia e uma árvore não somos uma substância, o que somos então?
Assim como os homens, as montanhas, as nuvens, a água, uma árvore é um modo de Deus, ou seja, aquilo cuja existência depende da substância para ser concebido. Já que uma árvore depende de outras coisas para existir, como observamos anteriormente, ela não existe por si mesma, mas liga-se aos outros modos de Deus. Considerando esse nexo entre os modos, temos que admitir que nada pode ser livre já que está conectado à outra coisa. Porém, só Deus é livre, uma vez que existe pela necessidade interna da sua própria natureza, isto é, Deus, por ser eterno, existe por si. Neste momento, parece bastante elucidativo usar a Lei de Conservação das Massas, formulada por Antoine de Lavoisier (1743-1794), meramente para tornar compreensível o que Espinosa pensava sobre Deus e seus modos: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Deus sempre existiu, é infinito, suas modificações aparecem e desaparecem, mas, no final das contas, é o Cosmos que em si existe e permanece, com toda a sua dramática vastidão.
Como pode, voltando um pouco, Deus ser eterno, mas seus modos sofrerem modificações? Espinosa recorre à noção de causa imanente e causa transitiva. Uso as palavras de Marilena Chauí para explicar tais conceitos extremamente complexos do vocabulário espinosano[3]:
Na causalidade imanente, o efeito não se separa da causa, pois é apenas uma expressão dela; na causalidade transitiva, causa e efeito são duas realidades perfeitamente determinadas, isoláveis e isoladas, porque a causa se separa do efeito logo após produzi-lo.”
Assim, uma árvore é causada transitivamente, isto é, seu surgimento é um efeito das próprias Leis de Deus. Mas a Natureza, a despeito de suas modificações perturbadoras, segue por si e em si. Ao menos foi o que pensou um filósofo herético: Baruch de Espinosa.
Paulo Henrique Castro.

[1] Chauí, M. Vida e Obra in Espinosa. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997; p. 05, Col. Os Pensadores.
[2] Cf. Espinosa. Ética. Demonstrada à maneira dos Geômetras. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997; Col. Os Pensadores.
[3] Chauí, M. A Nervura do Real. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, nota 39.

domingo, 5 de junho de 2011

Notas sobre o amor (parte 2).

 
§01. Em um texto muito antigo, a Origem dos Deuses, o poeta grego Hesíodo conta que no início só tinha o Caos, um estado indeterminado e primitivo do Universo, em que nada era distinguido. Depois surgiu a Terra e o subterrâneo, o Tártaro. Antes mesmo de surgir o Firmamento, o Oceano, a Noite e o Dia, nasce o mais belo dos Deuses: o Amor que, como disse Hesíodo, “dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade”.
§02. No diálogo “O Banquete”, Platão argumenta que o Amor não é um Deus, posto que os Deuses são plenos, sem nada carecer. Mas, o Amor não! O Amor é mendigo, vive às portas pedindo, suplicando, sempre pobre. Qual andarilho esfarrapado, descalço e faminto, dissemina o pólen da carência no peito dos mortais. Por outro lado, segue a análise de Platão, o Amor é decidido e enérgico, “no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita”; é um caçador terrível, deixando suas vítimas encurraladas, servindo-se de engenhosas estratégias de captura; é mago e feiticeiro, recurso pelo qual pega as suas presas em soberbas armadilhas; sempre disposto, traz consigo o entusiasmo por tudo que é belo e bom. Por que a natureza do Amor oscila entre a carência e a plenitude? Platão explica narrando um dos mais belos mitos sobre o Amor: “Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar [...], penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis porque ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou.”
§ 03. Da narrativa de Platão surge a imagem do amante que ora mendiga, ora se vê pleno, em um movimento que empobrece e enriquece, se perde e se encontra, sem a certeza de nada ter, nada possuir. Feito pêndulo, não pode se assegurar sobre o que realmente tem, muito menos ter garantias de um dia jamais perder o que supostamente tem. A incerteza que resulta desse movimento perturbador é, talvez, o que alimente a busca incessante pelo ser amado. Em um momento não quer, pois já se vê saciado com o belo e com o bom. Em outro, no entanto, rasga-se em penúria, pois é filho de Pênia, a pobreza. Ora, mas Pênia não é tão pobre em recursos assim. Sua estratégia foi extremamente bem-sucedida. Portanto, é no momento em que não temos que surgem as melhores idéias e o êxito em conseguir decorre da valorização daquilo que não se tem. Em outras palavras: só se dá valor àquilo que não temos ou que perdemos.
§ 04. A ocasião do nascimento do Amor é também uma das mais elegantes e emblemáticas dentre as alegorias de Platão: nada mais, nada menos, Afrodite é a deusa da beleza. Ser concebido no jardim de Zeus, em um banquete entre os deuses para celebrar a própria beleza encarnada? Pode haver momento melhor para se fazer amor (perdoe-me o trocadilho)? Tratando-se do Amor, sentimento eivado de beleza, francamente é uma imagem de deixar perplexo até mesmo o mais amargo dos ex-amantes.
§ 05. Próprio da natureza do amor, segundo Roland Barthes, é a espera. “Estou apaixonado? – sim, pois espero. O outro não espera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamorado não é outra senão: sou aquele que espera.”
§05. Joana já havia verificado a sua caixa de e-mail quatro vezes, isso em duas horas após ter acordado. Colocou o seu celular no último volume e, mesmo sem desgrudar do aparelho, não tirava os olhos do visor, imaginando ter perdido uma ligação ou uma mensagem. Na noite anterior ela tinha brigado feio com o namorado e, com firmeza, tinha deixado claro que não mais o queria.
O telefone, enfim, toca. É ele. Joana deixa tocar três vezes, para não dar bandeira de quem está desesperadamente esperando. Nem mais, nem menos — vai que ele desiste e desliga. É bom não arriscar tanto, pensa. A voz do outro lado pede um encontro. Joana sede. Às 20:00, em ponto, no restaurante do Parque das Ruínas, em Santa Teresa-RJ.
18: 30. Joana já está pronta! Dá os últimos retoques na maquiagem, ouve a música deles, revê foto por foto... Liga para a melhor amiga, pede conselhos dando a entender que está prestando atenção (“sei... hum...”), sempre sem perder o relógio de vista. Mas o tempo parece ter estacionado! Que diabos! Ela não pode chegar primeiro do que ele no encontro (seria dar bandeira demais). Desce do apartamento sem correria. Espera um táxi, deixa passar o primeiro, o segundo, o terceiro e, não agüentando pega o seguinte. Avisa ao condutor que não precisa ir rápido e conta com o trânsito para chegar atrasada mas, quando Joana chega ele ainda não está lá. Joana: “aquela que espera”.
Paulo Henrique Castro.