domingo, 24 de abril de 2011

Revolução Darwiniana: o impacto devastador de uma descoberta.

 
“Minha admiração pela magnífica idéia de Darwin não tem limites.”
Daniel Dennett, filósofo inglês e professor emérito da Tufts University.
 
Em 12 de junho de 1754, o filósofo Jean-Jacques Rousseau[1] reclamou do fato de que o conhecimento sobre o homem era o mais útil, porém o menos avançado entre todos os conhecimentos humanos. Queixou-se ainda:
A anatomia comparada progrediu muito pouco até hoje, as observações dos naturalistas ainda são muito incertas para que se possa, sobre tais fundamentos, estabelecer a base de um raciocínio sólido; assim sem ter recorrido aos conhecimentos naturais que temos sobre esse ponto e sem levar em consideração as mudanças que se deram na conformação tanto interior quanto exterior do homem, à medida que aplicava seus membros a novos usos e se nutria com novos alimentos, eu o suporei conformado em todos os tempos como o vejo hoje: andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como o fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu.” [2]
A reclamação de Rousseau era legítima. O conhecimento que se tinha na época sobre os aspectos biológicos referentes ao homem era incerto, escasso e insuficiente para se estabelecer “raciocínios sólidos” sobre a natureza humana. Então, na época, o filósofo de Genebra tinha boas razões para investigar o homem considerando-o apartado da natureza. A suposição do filósofo era, assim, analisar o ser humano a partir do que “via”, abstraindo qualquer repercussão ou legado paleológico. Rousseau faleceu em 2 de julho de 1778 e, infelizmente, não teve tempo de assistir o advento da Biologia e principalmente a obra de um certo naturalista britânico: Charles Darwin (1809-1882).
Provavelmente Rousseau teria revisto o seu ponto de vista a partir da Teoria da Evolução das Espécies, pois em filosofia é corrente um velho conselho de boas maneiras: antes de julgar a obra de um autor, algumas regras de “etiqueta intelectual” devem ser satisfeitas com todo rigor e lisura:
[1] O que o autor disse?
[2] Por que disse o que disse?
[3] Como disse o que disse?
[4] O que poderia ter dito, MAS NÃO DISSE?
[5] O que nunca poderia ter dito?
Enquanto tais critérios não forem satisfeitos, convêm ao interlocutor perguntas, questões, dúvidas, mas nunca objeções. São regras de boa educação. Falar por “ouvir dizer” é uma coisa; afirmar e negar por “ouvir dizer” é outra.
Entretanto, quando o assunto é a origem do homem, coisas tais como: a cegueira religiosa, o medo de se deparar com um Universo vazio de sentido ou a ignorância pura e simples, turvam a visão do mais educado dos intelectuais. É curioso e perturbador que alguém diga: “nunca li Darwin, mas ele estava errado em dizer que o homem veio do macaco”. Há dois erros na afirmação anterior: [1] se não conheço a obra de um cientista, como posso rejeitá-la ANTES de examinar com atenção e escrúpulo o seu legado intelectual? Somente apelando para a tacanhez do pensamento; [2] como esclarecemos em uma publicação anterior, neste blog, o homem não veio do macaco e tão pouco Darwin disse tal asneira. É necessário uma boa dose de fundamentalismo, desinformação e torpor mental para repetir como mantra, hoje, em pleno século XXI: “nunca li Darwin, mas ele estava errado em dizer que o homem veio do macaco”.
Em uma obra monumental sobre História da Filosofia, D. Antiseri e G. Reale escreveram[3]:
A teoria da evolução representou, no século passado [XIX], fenômeno análogo ao que, alguns séculos antes, acontecera na astronomia com Copérnico: verdadeira revolução científica, fecunda de grandes desdobramentos, não apenas no campo da biologia. Com o evolucionismo desapareceu a imagem milenar do homem, imagem encarnada na teoria fixista, que falava de espécies fixas e imutáveis, existentes desde a sua criação. E se, com Copérnico, a revolução astronômica reorganiza a ordem espacial, dando à Terra e ao homem lugar bem diferente de antes no universo, com Darwin, a revolução biológica reorganiza a ordem temporal do homem. Com Copérnico e com Darwin, em substância, muda a teoria relativa ao lugar do homem na natureza.”
Ora, desafiou Darwin[4] em 1871, se os seres vivos são imutáveis, como explicar que todos os machos de mamíferos, inclusive o homem, possuem mamilos?
A despeito da notória importância da revolução darwiniana na compreensão do lugar do homem no Universo; a despeito do impacto que a descoberta de Darwin causou na nossa vida cotidiana (exemplo: como é possível combater bactérias que provocam graves infecções [Staphylococcus aureus], a tuberculose [Mycobacterium tuberculosis] e vírus como o HIV, sem recorrer à teoria de Darwin?), mesmo assim, muitas pessoas preferem acreditar que Darwin estava errado, o que é surpreendente se pensarmos no advento da internet e seu potencial informativo! Lamentavelmente prevalece o irracionalismo.
Pesquisa do Instituto Gallup em 2001[5]: [i] 45% dos adultos americanos aceitam que “Deus criou os seres humanos tal como eles são hoje em algum momento nos últimos 10 mil anos” e a evolução não teve papel relevante neste processo; [ii] 37% dos entrevistados acreditam que Deus criou o mundo e gerenciou a seleção natural, que, por sua vez, modelou os seres vivos; [iii] apenas 12% aceitou que os seres humanos surgiram no mundo a partir de um longo processo evolutivo, a partir de outras formas de vida pré-existentes. No Brasil, o Ibope Opinião[6], também em 2004, fez a mesma pesquisa e os resultados foram os seguintes, respectivamente: [i] 31%, [ii] 54% e [iii] 9%. Na pesquisa feita no Brasil, a resposta a duas perguntas é ainda mais sintomática: (1) “O (a) Sr (a) acha que a crença de que Deus criou o homem na forma atual, conforme conta a Bíblia, o chamado criacionismo, deve ou não deve ser ensinado nas escolas?” De 2002 entrevistados, as respostas foram as seguintes: [i] deve: 89%; [ii] não deve: 8%; [iii] não sabe: 4%. (2) “Atualmente as escolas ensinam o evolucionismo, a teoria científica que mostra que o homem desenvolveu-se ao longo de milhões de anos, até chegar ao que é hoje. Na sua opinião, a crença de que Deus criou o homem na forma atual, conforme conta a Bíblia, o chamado criacionismo, deve ou não deve ser ensinado nas escolas no lugar do evolucionismo?” A resposta ficou assim: [i] deve: 75%; [ii] não deve: 18%; [iii] não sabe: 7%.
Os números sugerem um retorno a Idade das Trevas; sim, porque este mesmo indivíduo que concorda em retirar o ensino do evolucionismo da escola, finge não saber que as perigosas infecções bacterianas que um dia ele teve ou terá, será tratada com base no ensino da Teoria da Evolução das Espécies por Seleção Natural, de Darwin.
São tantos os comentários distorcidos sobre a Teoria de Darwin, que se formou uma verdadeira boatice em torno da Teoria da Evolução por Seleção Natural. Lendas urbanas (e rurais) são contadas nos quatro cantos do globo: [1] Darwin não teria provado que os animais se modificam; [2] Darwin queria matar Deus; [3] Darwin queria justificar a “luta do mais forte” entre os homens, causando o extermínio dos mais fracos; [3] a Teoria de Darwin não passa de especulação abstrata e, portanto, não passa de mais uma teoria imaginada pelos homens que ousam cutucar as barbas de Deus; e, claro, não poderíamos deixar de mencionar, [4] que o homem veio do macaco. Vou comentar brevemente os aspectos [1] e [3].
Ao ler Darwin (ou “ouvir dizer”, como fazem os discípulos de certos gurus), algumas pessoas cometem a chamada “falácia do espantalho” (um conhecido erro lógico que “[...] ocorre quando a posição de um argumentador é deturpada por ser citada de maneira errada, exagerada ou por sofrer outro tipo de distorção.” [7]). Parece que foi esse o caso ao afirmar que Darwin propunha que a natureza funcionava de acordo com a “lei do mais forte”. Na verdade nem a idéia e nem a expressão “lei do mais forte” ocorrem nos escritos deixados pelo naturalista inglês. Na primeira edição do livro “Origem das Espécies”, Darwin usou o termo “Luta pela Existência” (“Struggle for Existence”) e na 5ª e última edição usou a expressão “Luta pela Sobrevivência” (“Struggle for Survival”). Em todas as edições, Darwin fez questão de deixar claro o que ele queria dizer exatamente pela idéia que desenvolveu:
Eu devo estabelecer como premissa que uso o termo Luta pela Existência em um sentido amplo e metafórico, incluindo a dependência de um ser para outro, como também (o que é mais importante) não somente a vida do indivíduo mais o sucesso em deixar descendentes.” [8]
Tudo o que é vivo depende de recursos para continuar como tal. Uma planta depende de água, uma gazela depende de não topar com um grupo de leoas famintas, uma baleia jubarte depende da temperatura do oceano (muito quente ou muito fria), abelhas dependem do número de membros da colméia etc. Comida, bebida, espaço e conforto são exemplos de recursos.
Recurso é qualquer fator ambiental utilizado diretamente por um ser vivo[9]. Os recursos são esgotáveis e um ecossistema está em constante modificação (entrada e saída de organismos vivos, mudanças climáticas, furacões, terremotos, tempestades, esgotamento de algo que servia como comida ou bebida etc.), o que produz instabilidade.
Aqui e acolá, encontramos na natureza equilíbrios e desequilíbrios de recursos: disputas entre indivíduos de uma mesma espécie; disputa entre espécies (diferentes populações), e o motivo básico é continuar vivo e assegurar a reprodução. Charles Darwin chamou esse estado de “economia da natureza”.
Para Darwin, a “economia da natureza” leva os organismos vivos a uma acirrada “luta pela sobrevivência” (“Struggle for Survival”). O que Darwin quis dizer com essa expressão? Será mesmo que ele quis dizer “que vença o mais forte”? Foi Darwin quem falou de “lei do mais forte”? Nada mais equivocado do que atribuir à Darwin a idéia de que a natureza é gerida por tal “lei do mais forte”.
Os exemplos usados pelo naturalista para explicar o conceito de luta pela sobrevivência são os seguintes: (a) em tempos de fome dois cães podem enfrentar-se por comida e assegurar a sobrevivência. “Luta”, nesse caso, evidentemente pode ser entendida no sentido de combate, mas o mais exato é entendê-la como dependência; (b) uma planta no deserto “luta” por sua sobrevivência, mas, como alerta Darwin, nesse caso, o emprego da palavra “luta” significa “dependência” de umidade; (c) o visco, uma planta parasita, depende da macieira e depende também dos pássaros, que espalham as sementes do visco. Perde-se, desse modo, a idéia esdrúxula de confronto entre o mais forte que esmaga o mais fraco (idéia tão repetida pelos detratores de Darwin, principalmente os fundamentalistas religiosos).
Sem sombra de dúvidas que um leão mais forte, em um combate por uma fêmea pode levar mais vantagem. Todavia, nem para o leão é suficiente ser forte para sobreviver. Há situações em que outros fatores entram em jogo para assegurar a sobrevivência do leão e também de qualquer outro organismo vivo, como cooperar por exemplo. A ênfase dada por Darwin está na condição de dependência entre os seres vivos, dependência em relação aos recursos do seu ambiente.
“Dependência” é uma condição crucial para sobreviver, considerando que a maioria dos organismos vivos interage de uma maneira ou de outra. Se um animal depende do outro, o que fazer para assegurar a sobrevivência? Em muitos casos a estratégia nada tem haver com força, mas com cooperação, como Darwin observou claramente.
Entre as fêmeas da espécie Pan paniscus (um primata muito próximo do homem conhecido como Bonobo), ocorre com maior freqüência comportamentos de amistosidade, como o grooming (um comportamento de catar parasitas um no outro, alisando os pêlos e estabelecendo vínculos sociais) e o G-G rubbing (fricção genital-genital), muito mais do que comportamentos agressivos, de acordo com os estudos de Kano[10]. Uma estratégia vantajosa usada pelos Bonobos para dividir alimentos, como a cana-de-açúcar, e que nada tem haver com “lei do mais forte”. No caso do Bonobo, aliás, o termo mais exato seria: “lei do mais amistoso”.
Vamos verificar agora o outro aspecto que me propus comentar: a idéia de que Darwin não havia provado que os animais se modificam.
Darwin começa o livro “Origem das Espécies” explicando um fato: plantas e animais domesticados pelo homem apresentam mudanças que foram selecionadas para proveito e capricho do próprio homem. Esse é um fato muito conhecido por pessoas em qualquer lugar e desde os egípcios têm-se registros dessa intervenção humana.
Para começar, vejamos um exemplo[11]: quando o Império Romano chegou ao sul do que hoje é a Alemanha, por volta de 74 d.C., fundou uma cidade e deram-lhe o nome de Arae Flaviae. Nesta cidade, usaram cães enormes, de grande porte, mossolóides, usados para proteger o gado e para fins bélicos. Bem, os romanos foram expulsos pelos povos bárbaros, mas o cão ficou e foi submetido a cruzamentos com outros cães locais (como o bullenbeisser), com a mesma característica de grande porte. A cidade mudou de nome, passando a se chamar ‘Rottweil’, e era grande produtora de gado. O comércio com as cidades vizinhas se intensificou, o que exigia segurança no transporte de mercadorias. Os cruzamentos para manter o grande porte do cão tinham duas finalidades: (1) proteger o gado; (2) divertir os moradores em lutas de cães contra touros. Como os comerciantes de gado da cidade eram todos açougueiros, o cão ficou conhecido como ‘o cão dos açougueiros’. Tais comerciantes continuaram a fazer cruzamentos sempre com o interesse de manter e melhorar as características da raça: forte, feroz e inteligente. Hoje chamamos os antigos cães dos açougueiros de ‘rottweiler’, que passou a ser usado como cão policial. As novas necessidades dos humanos em relação aos usos dos cães se adequaram perfeitamente com o interesse de manter a seleção das características antigas da raça. Assim, um rigoroso controle estabeleceu padrões para identificar um excelente exemplar de rottweiler. Como saber se estamos diante de um verdadeiro rottweiler? Os criadores se esforçaram para manter as características físicas e de temperamento: o cão deve ser preto com marcas em marrom avermelhado; robusto, porém silencioso no ataque; altura da cernelha ao chão entre 61 e 68 cm. e peso de 50 kg., para machos; 56 a 57 cm. e peso de 42 kg. entre fêmeas; “stop” bem definido; membros retos e escápula formando 45° (com a linha horizontal). Estas foram algumas das características estabelecidas como padrão para os criadores da raça rottweiler. Há muitas associações de criadores que fazem um controle criterioso para a excelência da raça, com laudos, selos de qualidade para a reprodução selecionada, participação em eventos competitivos etc.
O caso do cão rottweiler é um entre uma infinidade de outros exemplos em que o homem seleciona traços (variações entre os organismos) para os seus próprios caprichos. Podemos indagar: e daí? Ora, embora a seleção artificial seja de domínio do homem há tempos, o mecanismo para as modificações nos organismos só foi elucidado por Darwin em 1859. Os açougueiros sabiam quais traços lhe eram convenientes no rottweiler, mas não as razões que possibilitavam selecioná-las.
O diálogo de Darwin é com a tese criacionista, que afirma que todos os organismos foram criados e são imutáveis (apresentam os mesmos traços desde que foram criados). Ora, uma vez que é observado que certas características podem ser modificadas nos animais, então não podemos mais aceitar a tese de que os organismos vivos são imutáveis. Trata-se de uma constatação simples e, por isso mesmo, esmagadora. O ponto de partida de Darwin foi justamente mostrar que os seres orgânicos domesticados apresentam variações. E mais: tais variações são SELECIONADAS pelo homem. É, afirma Darwin, a natureza que fornece as variações. O homem apenas seleciona as que são úteis e vantajosas para si, como no exemplo do rottweiler. Nas palvras de Darwin: “Os criadores consideram ordinariamente o organismo de um animal comum um elemento plástico, que podem modificar ao seu bel-prazer.”
Termino citando as contundentes palavras do filósofo que apresentei na epígrafe deste texto, Daniel Dannett:
Vou colocar as cartas na mesa. Se tivesse que premiar alguém por uma única boa idéia, esse prêmio iria para Darwin, antes de Newton, Einstein e todos os outros. Em uma só tacada, a idéia da evolução pela seleção natural unifica as esferas de vida, significado e propósito com as esferas de espaço e tempo, causa e efeito, mecanismo e lei física. Mas ela não é apenas uma maravilhosa idéia científica. Ela é perigosa.” [12]
[Dedico este texto para Valmir Barbosa, com muito apreço. Um amigo argentino me disse certa vez, em um café da manhã, que “o pior exílio é o exílio do pensamento”. Ele dizia o quanto era sofrido para ele que o brasileiro só se aproximava para falar de futebol, Maradona e Messi. Como o meu amigo é sociólogo, sentia uma grande fascinação pelo modo como a sociedade brasileira foi gerada e gostava de conversar sobre as peculiaridades do Brasil, mas não encontrava brasileiros que gostassem de falar sobre como o Brasil foi formado! Daí o exílio.
Valmir, nas conversas darwinianas e outras tantas que você e eu compartilhamos, encontro a minha pátria. Parafraseando o meu amigo argentino: “o pior exílio é o exílio do pensamento na sua própria pátria: uma pátria de chuteiras e reality shows.”]
Paulo Henrique Castro.

[1] Rousseau, J-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997, Volume II.
[2] Idem, p. 57.
[3] Antiseri, D; Reale. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1991; Vol. III p. 371.
[4] Darwin, C. A Origem do Homem e a seleção sexual. Curitiba: Hemus, 2002 [1871].
[5] Cf. National Geografic Brasil, novembro de 2004. Ano 5. No. 55.
[6] Sobre o Criacionismo. Ibope Opinião. Dezembro de 2004.
[7] Walton, D. N. Lógica Informal: Manual de Argumentação Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 21.
[8] Darwin, C. From So Simple A Beginning. The Four Great Books of Charles Darwin. New York/London: W.W. Norton & Company, Edited and Introducions by E. O. Wilson, 2006; p. 490.
[9] Hickman, C. P.; Roberts, L. S.; Larson, A. Princípios Integrados de Zoologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2004.
[10] Kano, T. The Last Ape. California: Stanford University Press, 1992.
[11] As informações sobre a história dos cães Rottweiler foram extraídas da revista Rottweiler, editora Online, Ano 1, no. 6.
[12] Dennett, D. C. A Perigosa Idéia de Darwin. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P. 21.

domingo, 17 de abril de 2011

Vontade e Livre-Arbítrio: animal racional?

Livre-arbítrio: “possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.” [1]
Chovia muito naquela noite de 07 de fevereiro de 2007, em Osvaldo Cruz, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Entre 21h00min e 21h40min, Diego (20 anos), Dudu (25 anos), Carlos Roberto (23 anos), Tiago (21 anos) e um adolescente, que vamos chamar de Bill, cometeram um ato bárbaro. Eles saíram no carro do pai de Tiago, um táxi, para roubar carros. Tudo estava previamente acertado sobre a partilha de eventuais bens que fossem usurpados. Duas armas de fogo foram usadas e não consta nenhum uso de entorpecentes. Tiago era o motorista e o combinado era abordar algum carro em que a vítima fosse mulher[2].
Tiago parou o carro no sinal vermelho, na esquina da estrada Henrique de Melo. Em seguida, um Corsa Sedan prata parou logo atrás. No interior do veículo que acabara de parar, havia três pessoas: Rosa Cristina (a condutora), sua filha Aline (no banco do carona) e, no banco de trás, João Hélio (também filho de Rosa).
Do Táxi saíram armados Diego, Bill e Dudu. Abordaram o Corsa, com xingamentos, ameaçando e ordenando que os ocupantes saíssem do veículo. Bateram, ainda, com as armas nos vidros do carro para aterrorizar as vítimas. Por sua vez, em desespero, Rosa Cristina fez dois pedidos aos filhos: “tirem o sinto de segurança” e “desçam do carro”. Rosa e Aline conseguiram. O pequeno João Hélio de 6 anos não teve a mesma sorte e habilidade. Embora tivesse conseguido sair do carro, o menino não conseguiu soltar o sinto. Os bandidos deram partida no Corsa arrastando a criança e, mesmo sabendo que o menino estava preso ao veículo, continuaram dirigindo, além de fazer manobras com o carro para poder se livrar do corpo.
Essas informações sugerem que nenhum deles estava fazendo algo que fosse involuntário, forçado ou sem consciência dos atos e das possíveis conseqüências. Como se diz, eles sabiam o que faziam. Então, por que fizeram o que fizeram?
O episódio narrado anteriormente deixa muita gente perplexa e indignada por uma razão muito especial:
“Quando o indivíduo possui o tipo de controle que supõe a responsabilidade moral , estimamos de maneira característica que ele possui o controle da sua ação, ou seja, embora ele realize efetivamente uma determinada ação, nós julgamos que ele teria podido agir diferentemente – que ele teria podido agir, realizar outra ação ou se abster de qualquer ação. Tal concepção do controle implica então a noção de “outras opções possíveis” (possibilidades alternativas), e ela constitui certamente, pelo menos em parte, a representação do controle (tradicionalmente admitido pelo senso comum), concebido como necessário para o livre-arbítrio e para a responsabilidade moral.” [3]
Afinal, como indivíduos racionais, sem serem coagidos a agir do modo que agiram, sem ser forçados pelo uso abusivo de entorpecentes e no perfeito equilíbrio das suas faculdades mentais, foram capazes de atos tão brutais? Fatos como os descritos anteriormente impõe um grande problema para sustentar a definição de homem como “animal racional”, uma vez que a racionalidade supõe, como veremos, não só controlar o comportamento mais distinguir o certo do errado, o justo do injusto. Por maior que seja a influência interna ou externa sob o comportamento, alguns filósofos admitem que possuímos um tipo de controle sobre as nossas ações, que é denominado de “livre-arbítrio” ou “vontade livre”. “Diremos assim que um indivíduo dispõe de seu livre-arbítrio na medida em que possui o tipo de controle geralmente associado (de uma maneira ou de outra) à responsabilidade moral [...]” (Canto-Sperber, 2003; p. 74, Vol. 2)
“Se pensarmos que um agente deve dispor do seu livre-arbítrio, é essencialmente em razão do problema da imputabilidade moral – ou seja, do fato de que ele possa legitimamente ser considerado como moralmente responsável por sua conduta, ou ainda que deve, para ser moralmente responsável, poder controlar de algum modo a sua conduta.” (idem)
O exemplo oferecido no início do texto serve apenas (e tão somente) para demonstrar que buscamos explicar o comportamento humano em termos de livre escolha, em função da necessidade que temos de responsabilizar alguém pelos seus atos (como a citação anterior elucida). Sempre é bom deixar claro que a tentativa de problematizar o livre-arbítrio não se confunde com uma defesa dos atos humanos ou como uma justificativa. O leitor deve sempre ter em mente essa separação, que em filosofia ficou conhecida como “guilhotina de Hume”. Analisar não é justificar.
A noção de “opções possíveis para agir” implica não só que há possibilidades de ação em aberto, mas também inclui a idéia de que escolher tal ou qual opção esta ao alcance do agente: ele poderia ter agido de modo diferente. Supomos que o agente pode ser responsável por agir do modo que escolheu, isto é, responder pelos seus atos, já que possui a faculdade de razão. Sendo a razão uma capacidade suprema de indicar ao agente qual é a ação correta a ser escolhida, então pode-se responsabilizar quem escolhe agir errado. Agir é, portanto, um produto da razão que, por sua vez gerencia a vontade de agir daquele modo e não de outro, deixando fechados possíveis cursos alternativos de ação. Quem erra, erra porque quer errar. Como disse Platão: “A responsabilidade é de quem escolhe.” [4] Quem age errado, o faz porque decidiu agir errado. Enquanto um cão não pode evitar querer acasalar com uma cadela no cio e de agir segundo essa inevitável tendência (a menos que esteja acorrentado), o indivíduo humano pode querer ou não querer a relação sexual e também pode agir ou não de acordo com esse querer (a menos que esteja acorrentado). Essa é a Teoria Racionalista da Ação Humana.
O termo “humano”, aliás, é usado justamente para designar tudo aquilo que nos separa do mundo não vivo e do restante do mundo vivo, ou seja: podemos controlar os nossos ímpetos, uma vez que não somos programados como computadores ou animais (seres de instintos) e, de quebra, temos consciência das nossas ações e das conseqüências das nossas ações. “A autonomia é um bem que se limita aos seres humanos. Ela jamais é atribuída aos animais, não importa o que façam. O que distingue os seres humanos parece ser sua capacidade de raciocinar, sobretudo acerca dos fins da vida.”[5]
É a nossa condição humana que nos permite gerenciar as muitas possibilidades de ação (em dadas circunstâncias), e nos dá inteligência para optar. Entre tantas opções possíveis de ação, podemos calcular e controlar qual será a mais apropriada. A essa capacidade de controle damos um nome muito especial: “livre-arbítrio[6].
Notadamente, a idéia de livre-arbítrio supõe o ato mental de ponderar. Temos a crença de que possuindo o livre-arbítrio somos então dotados da capacidade absoluta de examinar em minúcia os nossos atos, donde resulta as nossas exigências morais. Confundimos livre-arbítrio com infalibilidade. De acordo com essa crença, portanto, desde que somos dotados de livre-arbítrio, então só é possível optar pela ação errada por livre e espontânea vontade. Ora, isso implica certa concepção de ser humano inclinado a um ideal de vida perfeito: podemos ser melhores, basta querer (tal expectativa pode turvar uma compreensão mais exata do comportamento das pessoas).
O pressuposto fundamental da doutrina do livre-arbítrio é, deste modo, afirmar que a razão é essa capacidade legisladora que nenhuma outra criatura possui. A razão assenhoreia a conduta humana. Dito de outro modo: se é dotado de razão, então é um ser humano; e se é um ser humano, então é livre para escolher agir de acordo com as “opções possíveis para agir”.
O problema é como entendemos e explicamos a faculdade da razão. Em primeiro lugar, quais são os motivos para aceitarmos que a razão é uma propriedade exclusiva do indivíduo humano? Em segundo lugar, a função legisladora da razão tem, de fato, este controle prático sobre o agir? Em terceiro lugar, a noção de racionalidade suprema e infalível não seria um equívoco, decorrente da visão antropocêntrica? Por fim, se a racionalidade é uma compreensão equivocada do ser humano, então como podemos responsabilizar os outros?
Surge, além dos problemas suscitados, um dilema: ora, se o homem é essencialmente racional, então é capaz de controlar qualquer influência que contamine suas ações; mas, se a razão não for uma essência que nos distingue dos outros animais, então o curso das ações pode ser influenciado por fatores passionais (do mesmo modo que ocorre com qualquer animal). Ou bem o homem é essencialmente racional, ou bem a razão não é uma essência que nos distinguiria dos outros animais. Ou somos capazes de controlar qualquer influência que contamine nossas ações, ou o curso de nossas ações pode ser influenciado por fatores passionais.
Paulo Henrique Castro

[1] Houaiss p. 1774.
[2] Todas as informações sobre este caso foram extraídas da denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro, 2a. Promotoria de Justiça junto à 1a. Vara Criminal de Madureira. Processo no. 2007.202.001808-4. Promotor de Justiça José Luis F. Marques. Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2007.
[3] Cf. Canto-Speber, Monique (Org.). Dicionário de Ética e Filosofia Moral. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2003.
[4] Platão, 1996; p. 493.
[5] P. 141-142 Laurence Thomas, in Canto-Sperber.
[6] Cf. Canto-Speber, Monique (Org.). Dicionário de Ética e Filosofia Moral. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2003.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Cultura: reflexões a partir dos estudos com chimpanzés.

 
Em 1871 Charles Darwin propôs uma hipótese:
“Se à exceção do homem nenhum outro ser vivente possuísse uma faculdade mental qualquer, ou se os seus poderes fossem de natureza totalmente diversa daquela dos animais inferiores, então nunca estaríamos em condições de convencer-nos de que as nossas elevadas faculdades se desenvolveram gradativamente.” (2002, p. 83-84)
O que Darwin conjectura é: uma vez que seu pressuposto é o de que os animais estão relacionados por descendência comum, então devem compartilhar características. Desse modo, as diferenças encontradas entre os animais mais próximos na escala zoológica devem ser de grau, isto é, deve ser possível encontrar os estágios sucessivos das mudanças de caracteres nos animais aparentados. Se encontrarmos alguma característica em um dado animal que não possa estar ligada aos seus parentes mais próximos, então a idéia de mudança gradual estaria enfraquecida. Para Darwin, no entanto, não é possível encontrar uma só característica entre os animais que possa ter surgido de modo abrupto, repentino, súbito. Seriam as faculdades mentais características unicamente humanas? Como se sabe, a resposta do evolucionista inglês foi: “não”.
O contraponto às idéias de Darwin veio imediatamente. A antropologia, ciência que surgiu a partir dos debates sobre o Evolucionismo, não se convenceu a respeito da idéia de gradação entre os humanos e os não-humanos, notadamente os antropólogos Alfred Kroeber, Leslie White e Clifford Geertz. Esse último sintetizou as justificativas dos humanistas contra a idéia de continuidade preconizada por Darwin, do seguinte modo:
"O homem é um animal que consegue fabricar ferramentas, falar e criar símbolos. Só ele ri; só ele sabe que um dia morrerá; só ele tem aversão a copular com a sua mãe ou a sua irmã; só ele consegue imaginar outros mundos em que habitar [...]. Considera-se que o homem possui, não só inteligência, como também consciência; não só tem necessidades, como também valores, não só receios, como também consciência moral; não só passado, como também história. Só ele – concluindo à maneira de grande sumário – possui cultura". (Geertz, 1980, p. 16)
Afinal, “possuir cultura” é um traço singular da espécie humana? Se a resposta for afirmativa, Darwin estava errado (com relação àquela hipótese mencionada no primeiro parágrafo). Certamente que a resposta depende de como definimos a palavra ‘cultura’. Para verificá-la propomos fazer uma revisão bibliográfica dos estudos que tentaram testar se chimpanzés (o parente vivo mais próximo do homem) possuem cultura.
Usaremos a palavra “culturalismo” para designar a doutrina que considera:
[1] Cultura é toda e qualquer coisa inventada somente pelo ser humano.
[2] O comportamento humano é decorrente da cultura;
[3] O que é cultural não é biológico e o que é biológico não é cultural, de tal modo que estamos falando de instâncias da vida humana que são excludentes.
[4] Tudo que é cultural é simbólico.
[5] Tudo que é cultural é aprendido.
[6] Nada mais é cultura.
Tudo isso faz muito sentido e aceitamos a tese cultural imediatamente, sem análise crítica. Basta olhar o comportamento dos animais e ninguém poderia discordar da separação entre o mundo humano e mundo animal, rezam ao culturalistas. Por exemplo: imagine uma cadela no cio passando na sua rua. Ela é seguida por vários machos da sua espécie (Canis familiaris). Todos tentando desesperadamente copular. Porém, em momento algum nem a cadela e muito menos os machos que a seguem se manifestam do seguinte modo: “ei! vamos procurar um lugar mais apropriado para termos relações sexuais”. Não há, aliás, nenhum indicador comportamental de que os cães tenham algum tipo de restrição para o local em que vão copular. Mas quanto aos humanos, são muitos os indicadores de que sexo em qualquer lugar não é uma boa alternativa. Somos seres envergonhados, por cultura, enquanto os cães são sem-vergonhas, por natureza (assim rezam os culturalistas).
As tentativas de explicar e compreender aquilo que nos torna humanos freqüentemente abandonam a parte animal do homem em favor de análises culturalistas. Vejamos de perto tal afirmação.
O filósofo francês Georges Gusdorf (1912-2000) afirmou certa vez que o homem é o criador do mundo humano[1]. A idéia, muito antiga, é a de que o adjetivo “humano” designa um mundo inventado pelo homem e apartado da natureza. Todas as ações humanas, dentro dessa perspectiva, podem ser explicadas analisando as condições sociais, a educação, as tradições e costumes de cada povo. Em outras palavras, o comportamento humano é explicado apenas recorrendo ao meio cultural. Assim, a violência é uma invenção, a preferência sexual é uma escolha, a corrupção surge por má educação, falamos porque nos ensinam a falar, a busca por poder é comportamento típico de políticos, alguns aprendem que o preto significa luto e outros (os chineses) que é o branco que indica luto, a vingança é um comportamento de gente “má” (uma vez que não teve ensinamento religioso) e a solidariedade um comportamento de gente “do bem” (que aprendeu com a família o valor da ajuda); em suma, qualquer comportamento humano não passa de um produto das circunstâncias especificas em que um povo se encontra. Tudo é aprendido. Tudo é adquirido. A enorme diferença entre os povos e as pessoas demonstra, justamente, que é o meio cultural que nos faz como somos. Tudo não passa de como fomos criados. Como disse o primeiro filósofo a defender essa idéia, J-J Rousseau[2]: tal qual moldamos as plantas pelo cultivo, assim os homens são moldados pela educação a partir dos próprios homens. Em outras palavras: o homem inventa o homem. Será?
Essa é uma idéia muito sedutora que, inclusive, sustenta a Antropologia. Os antropólogos consideram a palavra “cultura” tão especial que a reservaram apenas para esse mundo humano, supostamente separado da natureza[3]. Desse modo, o que se diz sobre o comportamento dos animais não-humanos não vale para os humanos, afirmam os Humanistas (ou Culturalistas). Por isso mesmo a palavra “animal” usada para definir o ser humano (como em “animal racional”), de acordo com essa doutrina, é apenas um enfeite; um adereço retórico para dizer que o homem não é nem mineral e nem vegetal. Logo, só nos resta incluir a espécie humana entre as coisas animalescas por uma questão estritamente de comodidade intelectual (afinal, seria estranho tentar definir o homem como “vegetal racional”).
O problema é que as análises do comportamento humano que rejeitam qualquer comparação com o comportamento animal têm sempre em mente os animais domésticos ou os habitualmente conhecidos (cães, vacas, abelhas, formigas, pássaros etc.), mas raramente consideram os animais evolutivamente mais próximos dos humanos: os chimpanzés. Quando o fazem, como no caso de Gusdorf, apresentam uma visão caricaturada dos “símios”.
A Primatologia dos chimpanzés teve uma explosão de pesquisas a partir dos anos de 1960 e não parou até agora[4]. O volume é tão grande que mal se consegue acompanhar as contribuições da área, seja com animais em cativeiro, seja na Tanzânia (Gombe e nas montanhas Mahale), em Serra Leoa, na Costa do Marfim, no Senegal, no Congo, Uganda (Kibale e Budongo) etc. A despeito dessa explosão de pesquisas, só para se ter uma idéia, não há nenhum artigo ou livro importante traduzido para a língua portuguesa no Brasil (uma exceção honrosa é a obra “Eu, Primata”, de F. B. de Wall, que é um livro de divulgação científica, não um estudo científico). Quais são as implicações dos resultados dessas pesquisas? Ainda é possível defender o culturalismo?
Por que estudar chimpanzés? Por que não os elefantes, ou os crocodilos? Ora, como afirmou Matsuzawa[5]:
[Tradução livre: “A mente humana é um produto da evolução, tal como o corpo e a sociedade. O que é a natureza humana? O que é a singularidade humana? De onde nós viemos? Para responder a estas questões eu tenho estudado chimpanzés. O chimpanzé é a espécie vivente mais próxima do homem. Mais do que 98.7 % da seqüência de DNA é a mesma entre as duas espécies.”]
The human mind is a product of evolution, as are the body and society. What is human nature? What is uniquely human? Where did we came from? To answer these questions, I have been studying chimpanzees. The chimpanzee is the closest living species to the human. More than 98.7% of the DNA sequence is the same between the two species […].
Alguns pontos das palavras do pesquisador japonês precisam ser destacados: [1] ele aceita sem demora a teoria da evolução das espécies para afirmar que a mente humana é um produto do fenômeno evolutivo, premissa que os Culturalistas rejeitam com veemência e não estão dispostos a concordar. A controvérsia sobre a evolução envolve vários pontos do desacordo, o que nos força a examiná-la em seus pressupostos básicos (o que faremos depois); [2] as questões filosóficas antigas e que se estenderam aos debates científicos sobre o homem são os mesmos problemas que levaram o primatólogo japonês ao estudo de chimpanzés, uma vez que mais de 98.7% da seqüência do DNA desses animais é a mesma da dos humanos. Logo, não há justificativa melhor para tentar responder “o que é a singularidade humana?”, “de onde viemos?”, “por que somos como somos?” etc., a não ser pesquisando o animal vivo mais próximo do homem: os chimpanzés.
Em futuras publicações, iremos apresentar o quadro assustador e detalhado do comportamento dos chimpanzés (violência, infanticídio, sexualidade, solidariedade, inteligência, comunicação, estratégias de caça, defesa de território, disputa por posições sociais vantajosas etc.).

[1] Gusdorf, G. Tratado de Metafísica. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1960.
[2] Rousseau, J-J. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[3] Kroeber, A. L. A Natureza da Cultura. Lisboa: Edições 70.
[4] Cf. V. Reinolds, M. Gliglieri, J. Mitani, T. Nishida, J. Goodall, F. B. de Wall, S. Savage-Raumbaugh. G. Teleki, C. Boesch, M. Tomasello, T. Kano, W. Mcgrew, T. Matsuzawa, R. Wrangham, para citar os mais importantes Primatologistas.
[5] Matsuzawa, T. Sociocognitive Development in Chimpanzees: A Synthesis of Laboratory Work and Fieldwork. In Matsuzawa T.; Tomonaga, M.; Tanaka, M. (Eds.) Cognitive Development in Chimpanzees. Tokyo: Springer-Verlag, 2006, p. 03.

Pensar o Absurdo: crítica ao Pós-modernismo.

 

O filósofo austríaco Ludwig Josef Johann Wittgenstein (1889-1951) [1] assinalou o extraordinário e numeroso uso da linguagem e ofereceu alguns exemplos: Comandar e agir segundo comandos; Descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas; Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho); Relatar um acontecimento; Conjecturar sobre o acontecimento; Expor uma hipótese e prová-la; Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas; Inventar uma história; Representar teatro; Cantar uma cantiga de roda; Resolver enigmas; Fazer uma anedota; Resolver um exemplo de cálculo aplicado; Traduzir uma língua para outra; Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar etc.

Considerando a multiplicidade de usos da linguagem apresentada por Wittgenstein, Irving Copi[2] classifica três funções básicas:

(1) A função informativa: “A linguagem usada para afirmar ou negar proposições, ou apresentar argumentos, diz-se que está a serviço da função informativa. Nesse contexto, usamos a palavra ‘informação’ para incluir também a má informação, isto é, tanto as proposições falsas como as verdadeiras, tanto os argumentos e raciocínios corretos como os incorretos. O discurso informativo é usado para descrever o mundo e raciocinar sobre ele.” [3]

(2) A função expressiva: “A linguagem tem função expressiva, quando é usada para dar expansão a sentimentos e emoções, ou para comunicá-los. [...] Assim, o discurso expressivo é usado tanto para expressar sentimentos do que fala como para suscitar certos sentimentos nos ouvintes.” [4]

(3) A função diretiva: “A linguagem serve a uma função diretiva, quando usada com o propósito de causar (ou impedir) uma ação manifesta. Os exemplos mais claros do discurso diretivo são as ordens e os pedidos.” [5]

Será que o uso diretivo e o uso expressivo da linguagem são adequados ao contexto filosófico ou científico? Vamos analisar um exemplo. Leia as palavras de Manoel de Barros[6]:

A última estrela que havia no céu

Deu pra desaparecer

O mundo está sem estrela na testa

Foi o vento quem embrulhou minhas palavras

Meteu no umbigo e levou pra namorada?

Eram palavras de protesto idiota!

Como o vento leva as palavras!”

Na poesia de Manuel de Barros, citada anteriormente, sabemos que as palavras não foram usadas para provar ou justificar nada. Também não foram usadas para dar uma ordem ou fazer um pedido. Um poema se presta a comunicar ou provocar sentimentos. Seria entender mal os propósitos do poeta tentando buscar em suas palavras uma prova de que o mundo tem “estrelas na testa”.

Diferentemente do poeta, o cientista (como também o filósofo), está preocupado com a busca pela verdade (por motivos óbvios, buscar a verdade não é o mesmo que encontrar a verdade). Como muito bem afirmou o filósofo alemão Gottlob Frege (1848-1925) [7]: “Ao ouvir um poema épico, por exemplo, além da euforia da linguagem, estamos interessados apenas no sentido das sentenças e nas representações e sentimentos que este sentido evoca. A questão da verdade nos faria abandonar o encanto estético por uma atitude científica.”

Se o interesse é a busca da verdade, então o uso mais adequado que fazemos da linguagem é o uso informativo, já que seria um absurdo uma discussão científica para saber se o mundo tem ou não estrelas na testa, não é mesmo? Conseqüentemente um argumento só pode ser constituído por elementos que possam ser verdadeiros ou falsos: as proposições. Se um argumento é constituído de proposições, então parece sensato começarmos pelo entendimento do que vem a ser “proposições”.

Em primeiro lugar, as proposições não são as palavras. Nós usamos palavras para enunciar as proposições. As palavras não são as coisas por elas enunciadas. Assim, de modo grosseiro, poderíamos dizer que as proposições são as idéias. Mas também é bom alertar que as proposições não são qualquer idéia. Idéias para perguntas, pedidos, ordens e exclamações, não são proposições. Considere as seguintes expressões: [i] “Que horas são?”; [ii] “Feche a porta!”; [iii] “Por favor, meu bom Deus, me ajude!”

Qual delas pode ser verdadeira ou falsa? Pense um pouco. A primeira é uma pergunta, e seria muito estranho dizer que a pergunta é falsa ou verdadeira. A segunda sentença é uma ordem e a terceira sentença é um pedido. Ora, ordens e pedidos não podem receber qualquer valor de verdade. Uma ordem pode ser chata, incômoda, exagerada, mas nunca verdadeira ou falsa.

Somente as proposições podem ser verdadeiras ou falsas, afirmadas ou negadas. Perguntas podem ser respondidas, ordens podem ser cumpridas, pedidos podem ser atendidos, mas nenhuma dessas modalidades de expressão podem ser consideradas verdadeiras ou falsas.

Agora observe as duas sentenças abaixo:

[1] João ama Inês.

[2] Inês é amada por João.

Em ambas as sentenças, podemos observar uma e somente uma proposição: sabemos que João ama Inês, mas não podemos afirmar que Inês ama João. Também podemos ver que se trata de duas sentenças diferentes, uma vez que [1] começa com a palavra “João” enquanto [2], além de começar com a palavra Inês, contêm 5 palavras e não 3 como em [1]. Portanto, “costuma-se usar a palavra ‘proposição’ para designar o significado de uma sentença ou oração declarativa”. (Copi, p. 22)

Uma sentença sempre faz parte de uma língua em particular (francês, alemão, inglês, português etc.), enquanto que uma mesma proposição pode ser enunciada por diferentes línguas. O exemplo que Copi nos oferece é muito ilustrativo:

[a] chove.

[b] it is raining.

[c] Il pleut.

[d] Es regnet.

Todas têm um único significado e, certamente, são sentenças diferentes. Outra diferença é que o contexto pode alterar o significado das sentenças. Por exemplo: a sentença “o atual Presidente dos Estados Unidos é um democrata” é verdadeira se for proferida em 1962, referindo-se a J. F. Kennedy, mas será falsa se proferida em 2007, pois o presidente daquele país naquele ano era o republicano G.W. Bush. Também o significado da sentença muda outra vez se proferida, por exemplo, em 1964. Naquele ano o presidente era o democrata L. Johnson e não Kennedy ou Bill Clinton (outro democrata). Certamente que isso não implica a tese esdrúxula de que a verdade é relativa. Permanecerá uma verdade imutável que o presidente dos Estados Unidos em 1962 era o democrata J. F. Kennedy, e não há nada de relativo nisso.

É mesmo incrível o que podemos produzir com a linguagem. Noam Chomsky, lingüista americano, inventou uma frase para demonstrar que é possível proferir uma sentença perfeitamente gramatical e, contudo, não ter sentido. Leia atentamente a sentença de Chomsky[8]: “Incolores idéias verdes dormem furiosamente.” [Coloress green ideas sleep furyosly].

Essa curiosa sentença declarativa não fere nenhuma regra sintática. Entretanto, é uma sentença absurda. A palavra ‘absurdo’ quer dizer: “que se opõe à razão e ao bom senso; que é destituído de sentido, de racionalidade.” [9] Uma idéia não sangra, não ocupa lugar no espaço, não reflete a luz, não tem cor (mesmo que tivesse cor, como entender algo que é ao mesmo tempo incolor e verde?). Uma idéia não dorme, posto que dormir é um atributo específico de determinados seres animados e não de entidades abstratas.

Para Wittigenstein, podemos falar o absurdo, uma vez que a língua nos oferece a condição para combinar palavras com significados incompatíveis (como observamos no exemplo de Chomsky). Todavia, não podemos pensar o absurdo. Palavras incompatíveis combinadas em uma sentença. Nos paralisam. O pensamento trava em uma busca impossível de associar algum significado.

Ora, mais absurdo do que uma sentença ser absurda é surgir uma área do conhecimento humano que se ocupe do conteúdo da sentença como se tais significados tivessem estatuto ontológico (em filosofia, “ontológico” é uma palavra que se refere às coisas que pertencem à realidade).

Para esclarecer o que acaba de ser dito no parágrafo anterior, suponha que duas pessoas estejam discutindo seriamente sobre a seguinte questão: como é possível que idéias verdes durmam furiosamente e não tranquilamente? Para começar, alguém argumentaria, o fator preponderante para as idéias verdes dormirem furiosamente é que na realidade elas são azuis e não verdes, como imaginavam os teóricos de outrora. Outros pensadores, achando tal assunto muito interessante (pois parece profundo), poderiam argumentar que nem todas as idéias verdes de fato dormem furiosamente. Às vezes elas dormem acordadas; por exemplo, quando ocorre o fenômeno verdinoso (o fenômeno verdinoso é a passagem trans-fenômenológica que permite às idéias verdes passarem do verde oliva ao verde musgo).

É preciso uma boa dose de imaginação para levar absurdos a sério. Mas, infelizmente, surgiu no século XX uma moda intelectual chamada de ‘pós-modernismo’, que considerou o absurdo como algo muito profundo. Essa corrente filosófica se caracteriza por rejeitar a noção de verdade, desprezar os fatos e defender um relativismo epistemológico extremo.

Em 1996[10], cansado do monte de asneiras que o pós-modernismo diz sem dizer nada, o físico Alan Sokal, professor da Universidade de New York, resolveu demonstrar o absurdo dessa corrente.

Na época, uma revista gozava de grande prestígio nas ciências sociais e Humanidades, a Social Text, e era um dos veículos de divulgação do pensamento pós-moderno. Alan Sokal, então, enviou um artigo “pós-moderno” para à apreciação da revista. O artigo, era uma caricatura, uma farsa. O objetivo de Sokal era demonstrar que qualquer amontoado de sentenças sem sentido seria considerado uma obra-prima para os pós-modernos, principalmente vinda de um físico. O que os editores da Social Text não imaginavam é que se tratava de um presente de grego.

Tudo no artigo era sem sentido, um completo absurdo, como queria seu autor. Para começar o título: “Transgredindo as Fronteiras: Em direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravitação Quântica.”

O artigo-piada foi publicado pela Social Text. E o pior: em uma edição especial. Logo após a publicação, Sokal revelou a farsa. O caso se tornou um escândalo: como uma revista tão importante na área de Humanas poderia ter publicado um lixo como o artigo de Sokal? Geralmente as revistas científicas são extremamente criteriosas. Nada parecido aconteceu com revistas da área de biológicas, como a Nature ou Science. Os principais veículos de comunicação do mundo, como o francês Le Monde, o americano The New York Times e o britânico Harold Tribune, noticiaram a vergonha da Social Text ao publicar um embuste.

Claro, nem todos os pensadores do século XX aderiram a moda do pós-modernismo. A filosofia analítica, por exemplo, entende que expressões sem sentido devem ser rigorosamente evitadas. Absurdos da linguagem são indicadores de péssima argumentação. Frases famosas como a do filósofo alemão Martin Heidegger, “o nada nadifica”, tem a aparência de profundidade de pensamento. Muitos se sentem intelectualizados ao repetir uma sentença com o “nada nadifica”; porém, o nada, por definição, não pode agir. Então como é possível entender o papel do verbo “nadifica”? Não podemos entender. Trata-se de um absurdo, um nonsense. Como alertou Wittgestein[11]: “o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.”


Notas:

[1] Wittgenstein, L. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1996 [1945].

[2] Copi, I. Introdução á Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978.

[3] Idem, p. 48.

[4] Idem, 49.

[5] Idem, 50.

[6] Barros, M. de. Poemas concebidos sem pecado. Rio de Janeiro: Editora Record. 1999, p.35.

[7] Frege, G. Lógica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1978, p. 68.

[8] Apud Pinker, S. O Instinto da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[9] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

[10] Sokal, A; Bricmont, J. Imposturas Intelectuais. O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

[11] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: EDUSP, 2001; p. 131.

terça-feira, 5 de abril de 2011

1. Animalidade Humana: o homem veio do macaco?

clip_image002Consta[1] que em um sábado de novembro, em 1877, Charles Darwin (1809-1882) foi à Universidade de Cambridge ser homenageado com um grau de Doutor em Direito. O local estava repleto de pessoas esperando a homenagem. Então, um grupo de estudantes universitários amarrou em uma corda um boneco de macaco, descendo-o da galeria onde estavam. Este episódio foi um entre inúmeros momentos em que a teoria de Darwin foi caricaturada usando primatas.
Talvez você já tenha escutado que o “homem veio do macaco”. Talvez isso tenha lhe incomodado, ou por que você é muito religioso, ou por que você já tenha ido a um zoológico e visto muitos macacos e tenha se perguntado: “ora, se o homem veio do macaco, por que estes macacos não viraram homens?” Acontece que o homem não é descendente do macaco, do mesmo modo que o pato não é descendente da galinha.
“Macaco” é um termo técnico usado em Primatologia para designar uma imensa variedade de primatas, mas também é um termo usado vulgarmente (isto é, por quem não é primatólogo) para se referir a qualquer primata. O uso vulgar da palavra “macaco” para designar todo e qualquer primata é tão inexato quanto chamar um abutre de “passarinho”. O que é um macaco, então?
De acordo com Fleagle[2], os primatas se dividem em dois grupos: (1) Prosimii (lêmures, lóris e társios); (2) Anthropoidea (macacos, grandes primatas e humanos). Um macaco, propriamente falando, possui nariz e palato estreito, molares pontiagudos (bilofodontico), tórax longo e possui cauda. Comparado com os outros membros da subordem Antropoidea, um macaco tem pequeno porte, razão pela qual um grupo de primatas é denominado de “grandes primatas” (“apes” e não “monkeys”). O chimpanzé, o orangotango, o bonobo e o gorila (todos sem cauda), são exemplos de grandes primatas (vou me repetir: “apes” e não “monkeys”). Sobre essa confusão, o primatólogo Frans De Waal escreveu:
Os grandes primatas não tem cauda. Essa característica e o porte avantajado distinguem a família dos humanos e outros grandes primatas, conhecidos como hominóides, dos macacos. Portanto, nunca se deve confundir grandes primatas com macacos (não há melhor modo de insultar um especialista em grandes primatas do que dizer “adoro seus macacos!”).”[3]
Desse modo, entre as três superfamílias (Ceboidea, Cercopithecoidea e Hominoidea), que pertencem a subordem dos Anthropoidea, somente as espécies que são membros das duas primeiras superfamílias podem ser chamados de macacos. São exemplos de macacos: um muriqui, um mico, um capuchim e um colobo. Não ter cauda é uma característica muito importante, ao contrário do que se poderia pensar apressadamente. Uma vez que a cauda é utilizada por muitos primatas para pegar algo e também para se pendurar nas árvores, não tê-la supõe que muitas mudanças adaptativas surgiram na estrutura anatômica do animal em decorrência da perda.
Primatas sem caudas existem desde 18 milhões de anos, de acordo com Fleagle. Ora, isso significa que bem antes de uma criatura ter o mínimo de características humanas os macacos já tinham sido apartados evolutivamente dos ramos que iriam desembocar no gênero Homo. Logo, o homem não veio do macaco, mas, sim, de uma forma preexistente de primata antropóide.
Talvez a última afirmação também deixe perplexo alguns leitores. Seria o homem um tipo de primata modificado? Darwin, cauteloso, fez a seguinte advertência: “Quem quisesse emitir um veredicto sobre se o homem é o descendente modificado de alguma forma preexistente provavelmente teria antes que se certificar se ele sofre mudanças, ainda que ligeiramente, na estrutura física e nas faculdades mentais.” [4]
Por que o naturalista inglês fez tal advertência? Por um motivo muito delicado: a maioria das pessoas prefere acreditar que o homem é uma criação pronta, acabada e imutável. Se for esse o caso, então o homem não é um animal modificado que descendeu de outro, o que equivale a dizer que a teoria de Darwin estava errada. Darwin estava errado? Para dar o veredicto deve-se proceder de acordo com a sugestão do naturalista: devemos procurar pistas de modificações no corpo humano. E, para tal análise, é necessário conhecer os detalhes da Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin, o que faremos em uma outra publicação. Por fim, é necessário lembrar: pode provocar desconforto, mas os seres humanos não são os mais antigos seres vivos do planeta; o homem também não é a espécie mais abundante; é uma das espécies mais vulneráveis a uma catástrofe ambiental (ao contrário dos artrópodes) e não surgiu na Terra por um passe de mágica.

[1] Desmond, A. & Moore, J. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. São Paulo: Geração, 2001.
[2] Fleagle, J. G. Primate Adaptation and Evolution. San Diego: Elselvier Academic Press, 1999.
[3] De Waal, F. Eu, Primata. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; p. 25.
[4] Darwin, C. Origem do Homem. 2002, p. 15.

domingo, 3 de abril de 2011

Incoerência Humana: prólogo.

Incoerência Humana: prólogo.

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Colômbia, 8 de Maio de 2002: rebeldes de esquerda assumiram ter lançado uma bomba caseira em uma igreja, matando 117 civis, entre homens, mulheres, idosos e crianças; Irlanda do Norte, 1972: manifestantes católicos fazem protesto pacífico pelos direitos civis. Tropas britânicas abriram fogo contra os manifestantes, matando 14 pessoas (todas desarmadas), no episódio que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”; Guatemala, 1982: soldados e paramilitares atacaram a comunidade de Rio Negro, povoado sem armas. Resultado: 107 crianças e 70 adultos foram mortos sem qualquer chance de defesa; Camboja: entre os anos de 1975 e 1979, 1,6 milhão de pessoas foram deliberadamente mortas ou impedidas de comer até morrer, decorrente do insano regime comunista do Khmer Vermelho, que pretendia organizar uma sociedade sem sentimentos, pensamentos, ideais, tradições, cidades, com exceção do que fosse “aprovado” pelo próprio Khmer; Iraque 1988: soldados iraquianos usam gás mostarda para atacar uma aldeia de curdos em Halabja, o que resultou em 5 mil pessoas mortas; Bósnia-Herzegóvina, 1992-1995: em nome da “purificação ética”, tropas sérvias raptaram e massacraram milhares de pessoas de origem multiétinica. O episódio mais emblemático, na cidade de Srebrenica, foi perpetrado por sérvios matando mais de 7 mil homens bósnios; Serra Leoa 1992-2002: grupos armados espalham o horror entre civis, raptando mulheres, cortando os membros de homens, mulheres e crianças. Em seguida, transformaram os demais habitantes em escravos e as crianças em soldados; Ruanda 1994: extremistas do governo da etnia Hutu planejaram detalhadamente o massacre de pessoas da etnia Tutsi. O requinte de crueldade incluía não só matar usando armas de fogo, mas também machados, linchamentos com porretes, queimar e enterrar vivo. Quase todas as mulheres Tutsis e meninas acima de 12 anos foram raptadas, estupradas e mortas; Argélia 1997: durante um período de apenas 4 horas, cerca de 300 pessoas (a maioria mulheres grávidas, bebês e idosos), foram mortas estripadas (tirar as tripas) e queimadas vivas [1].

Desde o fim da Guerra Fria, em 1989, 120 guerras ocorreram pelo mundo, todas apresentando atos bárbaros, covardes e cruéis (o que chamamos de atrocidades). O que perturba é que tais atos já haviam ocorrido em conflitos anteriores, como o Holocausto nazista na segunda grande guerra, a guerra da Coréia, do Vietnã, os expurgos soviéticos, a carnificina de 5 milhões de pessoas no Congo (entre 1890 e 1910) etc. Também a violência urbana, que chega a índices alarmantes, dá o tom de certa propensão humana para agredir quando lhe for conveniente. Por outro lado, as pessoas se ajudam e condenam os atos de agressão, violência e crueldade. Todos concordam que é um dever moral conter a agressão, mas continuamos agredindo. As agressões são claramente visíveis nos números sobre a violência no trânsito. Por que temos esses atos contrários e incoerentes, como ilustra a charge no início? Talvez algumas pessoas respondessem que só alguns têm comportamentos agressivos (aqueles indivíduos que pertencem ao lado do “Mal”). Mas esse argumento equivale ao que diz que só os do “Mal” mentem. Quem em sã consciência é capaz de afirmar que nunca mentiu? Talvez seja mais conveniente e confortável dividir a humanidade entre os do “Mal”, de um lado, e os do “Bem”, de outro. Então, curiosamente, quando vamos avaliar de que lado estamos, estamos sempre do lado do “Bem”. Afinal de contas, quem é do “Mal”?

A realidade nos revela uma face humana complementada por traços desumanos. Depende da circunstância. O que a maioria de nós não quer admitir é que palavras como: generosidade, egoísmo, bondade e crueldade, são rótulos para comportamentos que podem se revelar em qualquer um, segundo a circunstância. O que nos leva a passar por cima do dever com os nossos semelhantes? Devemos não agredir, mas agredimos; devemos zelar pelos idosos, mas os maltratamos; devemos dividir os bens para fazer a justiça, mas a desigualdade social no mundo é um fato inegável; devemos ser cuidadosos com as nossas crianças, mas na guerra elas são as maiores vítimas. O que nos torna humanos? Por que não conseguimos erradicar o mal? Será possível suprimir essa faceta tão própria do homem? Não será a propensão ao Mal inerente à natureza humana? Há natureza humana ou somos fruto exclusivamente do meio? Por que deveríamos conceber o Homo sapiens como uma criatura especial? Somos tão magníficos assim? Quais são as razões para colocar os humanos em um lugar separado da natureza?

Muitos setores do pensamento ocidental permanecem concebendo o homem como o centro do cosmos. A palavra ‘antropocentrismo’ é bem adequada para designar tal postura. Significa: “forma de pensamento comum a certos sistemas filosóficos e crenças religiosas que atribuem ao ser humano uma posição de centralidade em relação a todo o universo [...]” [2]

Saber quem somos é uma das mais antigas indagações filosóficas que continua a nos perseguir. Muitas explicações míticas, mágicas e religiosas foram apresentadas. Entretanto, ainda não está claro porque deveríamos nos ver como criaturas supranaturais. De fato a nossa experiência cotidiana nos revela a percepção de que nós, humanos, somos singulares. Não temos notícias de outras criaturas, quer neste, quer em outro planeta, que escrevam livros, construam máquinas, façam filmes, se emocionem com músicas, reflitam sobre a morte, se reúnam em partidos políticos etc. Sobre tudo isso, a experiência imediata é reveladora e espantosa: tais manifestações são típicas da condição humana.

Entretanto, por mais espantosas que sejam as realizações humanas, não podemos explicá-las satisfatoriamente apelando para a magia. Outrora, as explicações mágicas se mostraram totalmente equivocadas, basta refletir sobre a antiga crença geocêntrica que foi totalmente refutada pelo heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543), Tycho Brahe (1546-1601), Johanes Kepler (1571-1670) e Galileu Galilei (1564-1642). Será que alguém ainda sustenta seriamente que a Terra é o centro do Universo? E quanto ao homem, por que deveríamos aceitar que a humanidade é o centro do Universo? Primeiro devemos nos perguntar e examinar sobre o que nos torna tão especiais assim.


[1] Smith, Dan. Atlas dos Conflitos Mundiais. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007.

[2] Houaiss, p. 240.