sexta-feira, 8 de abril de 2011

Cultura: reflexões a partir dos estudos com chimpanzés.

 
Em 1871 Charles Darwin propôs uma hipótese:
“Se à exceção do homem nenhum outro ser vivente possuísse uma faculdade mental qualquer, ou se os seus poderes fossem de natureza totalmente diversa daquela dos animais inferiores, então nunca estaríamos em condições de convencer-nos de que as nossas elevadas faculdades se desenvolveram gradativamente.” (2002, p. 83-84)
O que Darwin conjectura é: uma vez que seu pressuposto é o de que os animais estão relacionados por descendência comum, então devem compartilhar características. Desse modo, as diferenças encontradas entre os animais mais próximos na escala zoológica devem ser de grau, isto é, deve ser possível encontrar os estágios sucessivos das mudanças de caracteres nos animais aparentados. Se encontrarmos alguma característica em um dado animal que não possa estar ligada aos seus parentes mais próximos, então a idéia de mudança gradual estaria enfraquecida. Para Darwin, no entanto, não é possível encontrar uma só característica entre os animais que possa ter surgido de modo abrupto, repentino, súbito. Seriam as faculdades mentais características unicamente humanas? Como se sabe, a resposta do evolucionista inglês foi: “não”.
O contraponto às idéias de Darwin veio imediatamente. A antropologia, ciência que surgiu a partir dos debates sobre o Evolucionismo, não se convenceu a respeito da idéia de gradação entre os humanos e os não-humanos, notadamente os antropólogos Alfred Kroeber, Leslie White e Clifford Geertz. Esse último sintetizou as justificativas dos humanistas contra a idéia de continuidade preconizada por Darwin, do seguinte modo:
"O homem é um animal que consegue fabricar ferramentas, falar e criar símbolos. Só ele ri; só ele sabe que um dia morrerá; só ele tem aversão a copular com a sua mãe ou a sua irmã; só ele consegue imaginar outros mundos em que habitar [...]. Considera-se que o homem possui, não só inteligência, como também consciência; não só tem necessidades, como também valores, não só receios, como também consciência moral; não só passado, como também história. Só ele – concluindo à maneira de grande sumário – possui cultura". (Geertz, 1980, p. 16)
Afinal, “possuir cultura” é um traço singular da espécie humana? Se a resposta for afirmativa, Darwin estava errado (com relação àquela hipótese mencionada no primeiro parágrafo). Certamente que a resposta depende de como definimos a palavra ‘cultura’. Para verificá-la propomos fazer uma revisão bibliográfica dos estudos que tentaram testar se chimpanzés (o parente vivo mais próximo do homem) possuem cultura.
Usaremos a palavra “culturalismo” para designar a doutrina que considera:
[1] Cultura é toda e qualquer coisa inventada somente pelo ser humano.
[2] O comportamento humano é decorrente da cultura;
[3] O que é cultural não é biológico e o que é biológico não é cultural, de tal modo que estamos falando de instâncias da vida humana que são excludentes.
[4] Tudo que é cultural é simbólico.
[5] Tudo que é cultural é aprendido.
[6] Nada mais é cultura.
Tudo isso faz muito sentido e aceitamos a tese cultural imediatamente, sem análise crítica. Basta olhar o comportamento dos animais e ninguém poderia discordar da separação entre o mundo humano e mundo animal, rezam ao culturalistas. Por exemplo: imagine uma cadela no cio passando na sua rua. Ela é seguida por vários machos da sua espécie (Canis familiaris). Todos tentando desesperadamente copular. Porém, em momento algum nem a cadela e muito menos os machos que a seguem se manifestam do seguinte modo: “ei! vamos procurar um lugar mais apropriado para termos relações sexuais”. Não há, aliás, nenhum indicador comportamental de que os cães tenham algum tipo de restrição para o local em que vão copular. Mas quanto aos humanos, são muitos os indicadores de que sexo em qualquer lugar não é uma boa alternativa. Somos seres envergonhados, por cultura, enquanto os cães são sem-vergonhas, por natureza (assim rezam os culturalistas).
As tentativas de explicar e compreender aquilo que nos torna humanos freqüentemente abandonam a parte animal do homem em favor de análises culturalistas. Vejamos de perto tal afirmação.
O filósofo francês Georges Gusdorf (1912-2000) afirmou certa vez que o homem é o criador do mundo humano[1]. A idéia, muito antiga, é a de que o adjetivo “humano” designa um mundo inventado pelo homem e apartado da natureza. Todas as ações humanas, dentro dessa perspectiva, podem ser explicadas analisando as condições sociais, a educação, as tradições e costumes de cada povo. Em outras palavras, o comportamento humano é explicado apenas recorrendo ao meio cultural. Assim, a violência é uma invenção, a preferência sexual é uma escolha, a corrupção surge por má educação, falamos porque nos ensinam a falar, a busca por poder é comportamento típico de políticos, alguns aprendem que o preto significa luto e outros (os chineses) que é o branco que indica luto, a vingança é um comportamento de gente “má” (uma vez que não teve ensinamento religioso) e a solidariedade um comportamento de gente “do bem” (que aprendeu com a família o valor da ajuda); em suma, qualquer comportamento humano não passa de um produto das circunstâncias especificas em que um povo se encontra. Tudo é aprendido. Tudo é adquirido. A enorme diferença entre os povos e as pessoas demonstra, justamente, que é o meio cultural que nos faz como somos. Tudo não passa de como fomos criados. Como disse o primeiro filósofo a defender essa idéia, J-J Rousseau[2]: tal qual moldamos as plantas pelo cultivo, assim os homens são moldados pela educação a partir dos próprios homens. Em outras palavras: o homem inventa o homem. Será?
Essa é uma idéia muito sedutora que, inclusive, sustenta a Antropologia. Os antropólogos consideram a palavra “cultura” tão especial que a reservaram apenas para esse mundo humano, supostamente separado da natureza[3]. Desse modo, o que se diz sobre o comportamento dos animais não-humanos não vale para os humanos, afirmam os Humanistas (ou Culturalistas). Por isso mesmo a palavra “animal” usada para definir o ser humano (como em “animal racional”), de acordo com essa doutrina, é apenas um enfeite; um adereço retórico para dizer que o homem não é nem mineral e nem vegetal. Logo, só nos resta incluir a espécie humana entre as coisas animalescas por uma questão estritamente de comodidade intelectual (afinal, seria estranho tentar definir o homem como “vegetal racional”).
O problema é que as análises do comportamento humano que rejeitam qualquer comparação com o comportamento animal têm sempre em mente os animais domésticos ou os habitualmente conhecidos (cães, vacas, abelhas, formigas, pássaros etc.), mas raramente consideram os animais evolutivamente mais próximos dos humanos: os chimpanzés. Quando o fazem, como no caso de Gusdorf, apresentam uma visão caricaturada dos “símios”.
A Primatologia dos chimpanzés teve uma explosão de pesquisas a partir dos anos de 1960 e não parou até agora[4]. O volume é tão grande que mal se consegue acompanhar as contribuições da área, seja com animais em cativeiro, seja na Tanzânia (Gombe e nas montanhas Mahale), em Serra Leoa, na Costa do Marfim, no Senegal, no Congo, Uganda (Kibale e Budongo) etc. A despeito dessa explosão de pesquisas, só para se ter uma idéia, não há nenhum artigo ou livro importante traduzido para a língua portuguesa no Brasil (uma exceção honrosa é a obra “Eu, Primata”, de F. B. de Wall, que é um livro de divulgação científica, não um estudo científico). Quais são as implicações dos resultados dessas pesquisas? Ainda é possível defender o culturalismo?
Por que estudar chimpanzés? Por que não os elefantes, ou os crocodilos? Ora, como afirmou Matsuzawa[5]:
[Tradução livre: “A mente humana é um produto da evolução, tal como o corpo e a sociedade. O que é a natureza humana? O que é a singularidade humana? De onde nós viemos? Para responder a estas questões eu tenho estudado chimpanzés. O chimpanzé é a espécie vivente mais próxima do homem. Mais do que 98.7 % da seqüência de DNA é a mesma entre as duas espécies.”]
The human mind is a product of evolution, as are the body and society. What is human nature? What is uniquely human? Where did we came from? To answer these questions, I have been studying chimpanzees. The chimpanzee is the closest living species to the human. More than 98.7% of the DNA sequence is the same between the two species […].
Alguns pontos das palavras do pesquisador japonês precisam ser destacados: [1] ele aceita sem demora a teoria da evolução das espécies para afirmar que a mente humana é um produto do fenômeno evolutivo, premissa que os Culturalistas rejeitam com veemência e não estão dispostos a concordar. A controvérsia sobre a evolução envolve vários pontos do desacordo, o que nos força a examiná-la em seus pressupostos básicos (o que faremos depois); [2] as questões filosóficas antigas e que se estenderam aos debates científicos sobre o homem são os mesmos problemas que levaram o primatólogo japonês ao estudo de chimpanzés, uma vez que mais de 98.7% da seqüência do DNA desses animais é a mesma da dos humanos. Logo, não há justificativa melhor para tentar responder “o que é a singularidade humana?”, “de onde viemos?”, “por que somos como somos?” etc., a não ser pesquisando o animal vivo mais próximo do homem: os chimpanzés.
Em futuras publicações, iremos apresentar o quadro assustador e detalhado do comportamento dos chimpanzés (violência, infanticídio, sexualidade, solidariedade, inteligência, comunicação, estratégias de caça, defesa de território, disputa por posições sociais vantajosas etc.).

[1] Gusdorf, G. Tratado de Metafísica. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1960.
[2] Rousseau, J-J. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[3] Kroeber, A. L. A Natureza da Cultura. Lisboa: Edições 70.
[4] Cf. V. Reinolds, M. Gliglieri, J. Mitani, T. Nishida, J. Goodall, F. B. de Wall, S. Savage-Raumbaugh. G. Teleki, C. Boesch, M. Tomasello, T. Kano, W. Mcgrew, T. Matsuzawa, R. Wrangham, para citar os mais importantes Primatologistas.
[5] Matsuzawa, T. Sociocognitive Development in Chimpanzees: A Synthesis of Laboratory Work and Fieldwork. In Matsuzawa T.; Tomonaga, M.; Tanaka, M. (Eds.) Cognitive Development in Chimpanzees. Tokyo: Springer-Verlag, 2006, p. 03.

8 comentários:

Arafat disse...

Primeiramente parabéns pelo seu blog...hj que fiquei sabendo e dei uma olhadinha aqui...muito bom adorei. Considerando as palavras de Geertz, 1980; não sei de que homens ele se refere pois os que aqui habitam, salvo as exceçoes a regra, ainda bem que eles existem.....a grande maioria só são providas de inteligência, mas não consciência, consciência moral muito menos e valores então acho que nunca ouviram falar de tal virtude...somente outros valores...aqueles que levam supostamente alguem a alguma coisa...
A sociedade me surpreende a cada dia..
Por isso que quanto mais conheço os homens, mais gosto de plantas....

Unknown disse...

Oi Iara. Obrigado. O homem parece ser esta criatura oracular, enigmática ou, como disse M. M-Ponty: "um ser de circunstância". Bom tê-la como leitora. Um Abraço, PH.

Anônimo disse...

Aqui vai uma dica de um filme mto bom que retrata bem isso, chamado A era do Fogo!!!Assisti na pós!

REGINA disse...

Ótimo texto amor. Espero as próxima publicações sobre os chimpanzés...e vamos ver o filme que a Tainá indicou!bjão!Te amo

Unknown disse...

Oi Tainá! Obrigado pela dica! Não assisti esse filme e fico feliz com essa idéia de compartilharmos idéias. Agradeço com alegria a sua presença no Blog. Bj, PH.

Unknown disse...

Rê, amore mio! Lembra que no início do nosso namoro as pessoas perguntavam se nós só conversávamos sobre Foucault? Nem tanto, né (rs)? De qualquer modo, me alegra demais poder sempre ter com vc diálogos sobre assuntos que nunca vão virar objetos de moda. É mesmo curioso que um sapato, uma calça ou uma bolsa sejam objetos de desejo para as massas e a Filosofia não. Que bom que vc está aqui! Bjs de amor, PH.

REGINA disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
REGINA disse...

Lógico que lembro...nem tanto mesmo...conversarmos sobre tudo e melhor ainda, temos desejos que não são supérfulos! Te amo. Estarei sempre aqui!