domingo, 27 de dezembro de 2015

Solidão: a experiência devastadora em falar com as paredes.

“Minha surdez obriga-me ao exílio”
Ludwing van Beethoven (1770-1827)

Em 1871, para argumentar que o homem é um animal social, Darwin afirmou que um dos piores castigos para o ser humano é a cela solitária. Ainda hoje, a solitária é um dos piores castigos que o homem inventou: por que a solitária é tão dolorosa assim? Se a penitenciária é a retirada do convívio social, a solitária é o castigo extremo do qual prisioneiro nenhum consegue sair emocionalmente ileso. É o castigo social dentro do castigo social, e isso diz muito sobre o tema solidão.
Em 1959, Stanley Schachter fez um experimento: Propôs a alguns indivíduos que ficasse em uma solitária, um de cada vez, claro. Para cada dia em que o sujeito passasse incomunicável, ganharia dinheiro e mais dinheiro. Tudo dependia apenas de paciência. Seis metros quadrados, sem janelas, uma porta de ferro com uma pequena entrada para comida e água; sem jornais, livros ou internet, apenas você, uma cama, um vaso sanitário e as paredes. Quanto mais tempo, mais dinheiro. Parece fácil, não é? Pois bem. O primeiro participante não aguentou ficar na cela por 20 minutos. Três aguentaram 2 dias e um único aguentou ficar 8 dias. Foi o máximo que se conseguiu, veja você! Os que ficaram por mais de 24 horas demonstraram comportamentos de ansiedade, irritação e semblante de tristeza. Recentemente se constatou que as tentativas de suicídios ocorrem mais entre indivíduos em celas solitárias do que entre esquizofrênicos e depressivos. Sim, a solidão mata e produz doenças.
Entretanto, o exemplo das solitárias pode apenas nos dizer o óbvio: estar só agride a natureza do ser humano, que foi feito para estar em convívio social. O problema começa agora: é possível arder em solidão, mesmo na companhia de pessoas. Não é suficiente ir a uma festa ou estar em grupo, para não sofrer deste mal. Ao que tudo indica é possível estar em exílio, mesmo no meio de uma grande metrópole ou em família. Ora, isso já pede uma explicação mais demorada.
Por que as redes sociais deram certo? Entre outros fatores, um dos mais evidentes é que as redes sociais amplificam a sensação de pertencimento a um grupo social. Esta necessidade em estar em contato com outras pessoas é chamada de afiliação e o seu oposto é conhecido por solidão: um estado terrível em ter consciência de que os vínculos sociais foram diminuídos, enfraquecidos ou totalmente cortados. Portanto, solidão é um sentimento de insatisfação com os vínculos sociais, seja pela ausência, diminuição, seja pela qualidade; enfatizando: a solidão está ligada a quantidade e a qualidade de uma interação social. Dito de outro modo, é possível sentir solidão na presença de muitas ou poucas pessoas ou em estado de isolamento, clausura. Assim, a solidão não é um sofrimento só de indivíduos isolados, mas também de indivíduos no meio da multidão, na feira, na igreja, nas redes sociais, em festas etc. Acompanhado ou em busca de companhia é possível se sentir profundamente sozinho, destituído de comunhão com o outro, separado por ideias, crenças, convicções, afinidades.
Em razão do sentimento de solidão estar acompanhado de evidente monotonia, busca-se uma diversão que provoque estados de exaltação, em que o indivíduo se sente inebriado pela vida, algo que, entre paredes, o abandonou já faz tempo: falta objetivos na vida. Por isso, estar entre paredes é tão angustiante quanto estar no meio de uma multidão. Falta o sentido da vida, nosso compromisso íntimo. Resta o vazio, a sensação de exílio. De acordo com o biógrafo de Beethoven, Maynard Solomon, não foi o comportamento supostamente antissocial do compositor que o fez se isolar da sociedade: ele se recolheu pois aos olhos dos outros somente uma aberração poderia ser músico e surdo ao mesmo tempo. Sim, a solidão está relacionada com a nossa identidade e com a tolerância ao diferente, daí o autoexílio. Quem não comunga da mesma fé (no sentido amplo), pode ser severamente excluído do convívio social. Para alguns, a solução é se exilar antes de ser expulso. Há algo tão doloroso quanto viver entre iguais e ainda assim ser um estranho?
Percebam há uma diferença entre querer “estar sozinho” (para pintar um quadro, cuidar de suas coisas, arrumar o jardim, escrever um livro etc.) e a solidão. A expressão “buscar um lugarzinho tranquilo” está longe do que se entende por solidão. Por mais confortante que seja buscar momentos de paz, fora dos inconvenientes do convívio, o ser humano de um modo geral não suporta falar com as paredes, aliás, exatamente por falar com as paredes é que percebemos a falta que o outro nos faz. Não é incomum vermos pessoas falando com animais, desde cachorros até tartarugas (certa vez testemunhei minha mãe conversando com codornas). Também é bastante comum chegar em casa e ligar a televisão. Em momentos de prolongada solidão, as pessoas agora passam horas em redes sociais. Acaso não será tudo isso um sintoma de solidão?
O primeiro equívoco sobre a solidão é adotar o estereótipo de que tal sofrimento é coisa de idosos ou de antissociais, eremitas. Estudos recentes mostram que, na verdade, a solidão é uma das maiores perturbações da adolescência, com impacto visível na vida adulta, do qual falaremos depois.

Paulo Henrique Castro.

sábado, 24 de janeiro de 2015

O Fogo do Tartaruga.

À margem da Lagoa da Ponciana, na fazenda Flora, no Ceará, havia um belo juazeiro. Lá, por volta de 1841, Manuel de Morais Rêgo, vulgo Tartaruga, foi brutalmente assassinado[1]. Na época, era comum que crimes deste tipo ficassem impunes. Não foi diferente com o Tartaruga. Entretanto, sua fama atravessou o século XX em todo Estado do Ceará. Mas, o que tinha de especial com o assassinato do Tartaruga? Com o ato brutal em si nada que o distinguisse de tantos praticados no período, e ainda hoje. Acontece que após o triste ocorrido eventos estranhos passaram a ser relatados no local do crime. Testemunhas descrevem que um pouco antes do inverno, no local do crime, aparecem chamas, da altura de um homem. O fogo aumenta e diminui, em certos casos, até desaparecer. Ao ver o “Fogo do Tartaruga”, como ficou conhecido na região, as pessoas correm de pavor. Outras afirmam que o surgimento do fogo é um sinal de bom inverno. Para alguns, o fogo é a manifestação do Tartaruga para lembrar a impunidade ou, ainda, que a alma do falecido queima no purgatório, daí a aparição do fogo. Pois bem.
É sempre a mesma história: quando o ser humano se depara com algo que desconhece ou que é extremamente complexo, recorre às explicações sobrenaturais. Como é possível aceitar que expliquemos a combustão (uma reação química) desta maneira, sobrenatural, no ano de 2015? Por que buscar razões em forças mágicas e invisíveis (em primeiríssimo lugar) do que em razões lógicas, racionais? Não quero discutir as condições matérias, as tradições orais, os costumes arcaicos, a deficiência educacional das pessoas que vivem no sertão do Ceará e que, talvez, contribuam para alimentar explicações sobrenaturais sobre o mundo. Isso porque, na verdade, as explicações sobrenaturais são facilmente encontradas em qualquer classe social e também em indivíduos analfabetos ou com pós-doutorado em astrofísica. Se tais crendices são mais encontradas em uma classe do que em outra ou se estão relacionadas com o nível de formação educacional, deixo para os debates sociológicos. Meu interesse aqui é epistemológico (o modo como conhecemos e explicamos os fenômenos que nos cercam), portanto filosófico. Meu objetivo é demonstrar que as explicações sobrenaturais contribuem significativamente para mergulhar a humanidade em ignorância e fanatismo. Vejamos o argumento, começando por provocações:
Em 2013 o funcionário da FUNAI, Jair Condor, filmou pela primeira vez uma tribo totalmente isolada na Amazônia: os Kawahivas, conhecidos há 20 anos, mas sem contato com a civilização. Os nativos andavam seminus, carregando poucos objetos (arcos e flexas, pequenos jarros de barro e cestas de palhas). Os Kawahivas são nômades e se deslocam conforme a caça. Agora vamos fazer o que os filósofos chamam de experimento mental:
Estamos no século XXI e provavelmente você está lendo este texto em um computador ou, o que é ainda mais espantoso, em um smartphone. Vamos supor que seja um smartphone. Seu smartphone não tem nada de sobrenatural e todos nós sabemos disso. Porém, vamos imaginar um encontro hipotético com os Kawahivas e nosso primeiro presente será um par destes fabulosos aparelhinhos, daqueles que carregam desenhos de maças. Separe dois membros da tribo na floresta e lhes coloque para falar um com o outro pelo Face Time (um software desenvolvido para fazer simultaneamente chamadas de áudio e vídeo). Imagine a cena, amigos. Será que alguém tem dúvidas do que iria acontecer na cabeça dos nativos, quando um visse e ouvisse o outro em um objeto estranho na palma da mão? Provavelmente, como podemos esperar de acordo com a terceira Lei de Clarke (“qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”), os Kawahivas iriam fazer comentários sobrenaturais sobre o misterioso artefato e, talvez, até fizessem algum ritual exótico para a Apple, divinizando ou demonizando a maça.
Mesmo dentro da nossa própria civilização é possível encontrar o mesmo comportamento mágico em apelar primeiro para as explicações sobrenaturais, do que para a dúvida e subsequentes tentativas de explicações racionais, seja para artefatos, seja para fenômenos da natureza, como o Fogo do Tartaruga. E, se no sertão cearense se explica o desconhecido a partir de compreensões sobrenaturais, há alguns no leste dos EUA (Ohio, Pensilvânia e Indiana) que recusam usar carros, preferindo usar carroças (sim, aquelas feitas de madeiras que vemos em filmes de faroeste), em nome de entidades sobrenaturais: a Igreja Menonita Amish da Velha Ordem.
No dia 21 de janeiro do corrente ano, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, reuniram-se vários líderes religiosos, de diversas crenças, para discutir a questão da intolerância religiosa. Na ocasião, o Babalaô Ivanir dos Santos, ao lado de Rabinos, Padres, Pastores, Mulás etc. disse que “não devemos ter medo do debate” e disse também que toda sociedade deve se envolver na discussão. Achei ótimo. Penso que a filosofia, caracterizada por questionamentos radicais, também deve apresentar a sua contribuição para o debate. Neste sentido, continuo, como no texto anterior, com a questão: por que preferimos explicações sobrenaturais?
[Continua]
Paulo Henrique Castro




[1] Câmara Cascudo, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro.  

domingo, 11 de janeiro de 2015

Sobre explicações sobrenaturais.

Yasmin era uma menina rara nos tempos de hoje: adorava ler um Machado de Assis do que baixar novos aplicativos no celular. Franzina, loira por sua ascendência polonesa e atormentada por uma forte miopia, que lhe rendeu o apelido crudelíssimo de “fundo de garrafa”, era de uma alegria de fazer inveja aos rabugentos de plantão. Costumava frequentar aquelas feirinhas de livros itinerantes no Rio de janeiro, onde encontra-se ótimos livros por preços bem baratos.
Ela tinha 12 anos quando a medonha desgraça aconteceu. O pai, pobre coitado, repetia sem parar, aos prantos e aos berros, debruçado sobre o caixão: — Não é justo! Não é Justo! A mãe, entorpecida, se agarrava a uma antiga boneca de pano da filha querida.
Certa manhã, quando se dirigia ao Largo do Machado, em frete ao seu prédio, a animação de Yasmin era tão visível quanto a sua distração. É que a feirinha de livros estava justamente no seu bairro; diante dos seus olhos, aéreos feito qualquer adolescente que só vê a tela do smartphone e nada mais. Foi a última vez que foi vista viva.
O corpo fora encontrado à noite, não muito longe dali, na Rua Corrêa Dutra, dentro de um carro roubado e abandonado no local. Os testes da perícia comprovaram não só a violência sexual, mais também encontraram vestígios de pele nas unhas de Yasmin, sêmen, fios de cabelos pretos e sinais claros de luta. Entretanto, a peça fundamental da investigação foi uma carteira de identidade, encontrada pelos policiais embaixo do banco do carro. As câmeras do condomínio, que fica próximo a esquina da Corrêa Dutra com a Rua Bento Lisboa, só confirmaram o que o delegado já sabia: o autor do crime era o síndico do prédio que a pequena Yasmin morava.
Diante dos testes de DNA com o material coletado, a identidade encontrada e as imagens claras, o próprio síndico confessou o crime, não deixando dúvidas para o tribunal. O intrigante e bizarro no testemunho do síndico foi a motivação para o crime: uma entidade espiritual havia exigido o sacrifício de uma virgem. Evidentemente que, descartada a hipótese de doença mental, o juiz deu a pena máxima para o sujeito.
Bem, a maioria de nós concordaria que as provas racionais apresentadas no caso Yasmin eram suficientes para condenar o réu; e, poucos estariam inclinados a aceitar que o réu deveria ser absolvido, baseado na alegação de que quando uma entidade sobrenatural manda alguém agir de certo modo, a desobediência seria a própria desgraça eterna e que, portanto, o síndico agiu certo.
É claro que o caso de Yasmim é uma situação extrema e que nos conduz a um acordo sobre o que o síndico merece, independente da filiação sobrenatural do indivíduo. Também estamos de acordo sobre qual deveria ser a escolha que ele deveria fazer: agir de modo contrário a recomendação da suposta entidade sobrenatural (que vou chamar de Boogie Woogie, para não começar a estranha e suspeita ladainha de que “religião não se discute”). Mas, todos os dias, as pessoas são censuradas ou elogiadas por ações que estão de acordo ou não com critérios supostamente determinados por entidades sobrenaturais. Há pouco li em uma rede social a seguinte expressão: “De 50 pessoas convidadas para a igreja, 05 vão. Agora, de 20 pessoas convidadas para uma festa, 200 vão. O mundo é dos espertos, mas o Céu é dos escolhidos.” Algumas indagações surgem para aqueles que não se contentam com explicações fáceis e exercitam os miolos periodicamente: O que faz a festa ser menor do que a igreja? Por que os 200 que escolheram ir à festa foram censurados? Baseado em que uma festa é avaliada negativamente se comparada com a igreja? Por que neste caso (escolher ir à igreja ou à festa), estamos inclinados a seguir preceitos sobrenaturais para as ações e no caso de Yasmin preferimos as explicações racionais? — Por mais evidente que a resposta possa parecer, foque no ponto certo da questão: seguir ou não seguir a orientação de uma entidade sobrenatural para agir e avaliar o comportamento alheio? — Onde está o limite entre aceitar ou não aceitar orientações sobrenaturais?
Vejo pessoas discutindo vários pontos de vistas sobre os terroristas do Charlie Hebdo: fanatismo, geopolítica, fraternidade, liberdade, direitos e deveres; religiosos de outras crenças condenado o Islã, outros pedindo tolerância entre as religiões, mas não vejo ninguém discutindo o papel da crença em entidades sobrenaturais nas ações de todos nós. Perceba: não é discutir uma crença específica em fada madrinha, Laksmi, Javé, Alá, Quetzalcoalt ou Kannon, por exemplo. Trata-se de psicologia de grupo e o papel das explicações sobrenaturais que influenciam o comportamento humano. Por que em certos contextos as explicações sobrenaturais são bem-vindas e as explicações racionais não (e vice-versa)?

[Continua na próxima postagem]

Paulo Henrique Castro