sábado, 28 de janeiro de 2012

Violência: Parte 2.

Esta é a história da violência entre dois grupos africanos: Kasekela e Kahama, na Tanzânia. Uma história impressionante que pode nos esclarecer, dentre outras coisas, as raízes de um tipo específico de violência: a xenofobia, certa aversão e ataque aos que não pertencem ao mesmo grupo social.

Acompanhe esse relato incrível, perturbador e intrigante, publicado por Dale Peterson e Richard Wrangham, na obra “Machos Demoníacos”[1], lembrando sempre que a história é muito mais rigorosa, em termos científicos, do que o estilo de um texto de divulgação, cujas linhas o leitor percorre. Podemos começar?

Era uma vez uma jovem que, aos dezoito anos, foi enviada para estudar chimpanzés na Tanzânia. Pouquíssimo se sabia sobre esses primatas, naquele longínquo ano de 1960.

Às margens do grande lago Tanganica, com uma exuberante floresta equatorial, vastas palmeiras e mangues, a bela jovem americana se instalou com alguns assistentes em um vilarejo chamado Kasekela, no Parque Nacional de Gombe. Saía todos os dias em expedições para encontrar os grandes primatas. Conseguiu achá-los, observou, fez registros fotográficos e diversas anotações; classificou, identificou e nomeou um grupo de 37 chimpanzés.

Os animais encontrados por Jane Goodall viviam pacificamente, comiam frutas de diversos tipos, cochilavam de dia e dormiam de noite, eram incrivelmente inteligentes, cuidavam de seus filhotes com zelo; as crias, aliás, puxavam uns aos outros, pulavam de galho em galho, empurravam uns, arrastavam outros, em resumo: faziam aquilo que hoje chamamos de “macaquices”. Para estabelecer maior contato, possibilitando acuradas observações, Jane Goodall passou a oferecer bananas ao grupo de chimpanzés, agora batizado com o nome de Kasekela. Deu certo.

Corria o ano de 1966 e aquela imagem de uma bela jovem branca, alimentando animais muito semelhantes ao homem, em uma floresta deslumbrante, parecia mesmo o retrato do “paraíso perdido” (nome, não por acaso, dado ao primeiro capítulo da obra “Machos Demoníacos”). O mundo pedia paz e as imagens registradas por Goodall sugeriam certa nostalgia, evocava, talvez, o estado primitivo do homem: primatas inteligentes vivendo sem conflito em um ambiente farto de comida. Bastava trocar a banana pela maça e a imagem não poderia ser mais sugestiva. Confirmava-se, com essa imagem poética, a chamada “teoria do bom selvagem”, defendida no século XVIII pelo eminente filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), e cujo conteúdo afirma que o homem nasce bom, mas é a sociedade que o corrompe e o impele para o mal. Evidentemente que essa não era a ideia que Goodall formava, mas a antropologia cultural estava para Rousseau, assim como Cristo está para o cristianismo.

Desse modo, com os dados de Jane Goodall, os antropólogos passaram a defender ainda mais a convicção de que o homem é – nas palavras de Rousseau – “moldável pelo meio” e que, portanto, a origem da violência está exclusivamente na organização da sociedade, jamais na natureza dos humanos (até porque quem tem natureza são os animais; o homem tem cultura). Não há violência entre os animais mais próximos do homem, pensavam; logo, a discórdia era uma invenção singular do ser humano. Cedo demais para tal conclusão.

Os chimpanzés do Parque Nacional de Gombe são estudados há 50 anos (existem outros tantos sítios de estudos sobre chimpanzés em diversos locais da África Central). E já em 1966, Goodall começou a registrar algo de estranho com o grupo de chimpanzés de Kasekela: para buscar as bananas alguns chimpanzés chagavam sempre do sul, ao passo que outros vinham do norte e os dois subgrupos não mais se misturavam. Mantinham certa distância, não interagiam mais (sabe-se que estes animais estabelecem vínculos afagando uns aos outros e catando parasitas nos pêlos – o chamado “grooming”). Quem era do sul, interagia apenas com quem vinha do sul. O mesmo com os do norte. Era intrigante, pois todos, tanto do sul, quanto do norte, eram membros do grupo inicial observado ao longo daqueles seis anos (todos devidamente identificados). Inicialmente não era assim, então o que estava acontecendo? Não era aleatório, pois sempre se tratava dos mesmos indivíduos, cada um com o seu subgrupo. O grupo estava se dividindo? Em caso afirmativo, por que estavam se dividindo e quais seriam as conseqüências para a comunidade como um todo? Como um grupo passou a lidar com o outro? O que veremos é, de fato, assombroso.

[Continua]

Paulo Henrique Castro.


[1] Peterson, D; Wrangham, R. Demonic Males: apes and the origins of human violence. New York: Houghton Mifflin Company, 1996.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Violência: homem-primata.

Fevereiro de 1994. Kampala, capital da República da Uganda, país do centro-leste da África. Enquanto tinham os seus vistos carimbados, dois homens ouviram uma sinistra advertência do funcionário da embaixada ugandense: “vocês serão assassinados!”

Os homens que foram advertidos eram os famosos pesquisadores de primatas, Dale Peterson e Richard Wrangham, este professor de Harvard, aquele escritor e psicólogo.

O aviso do funcionário da embaixada fazia referência ao clima de instabilidade civil na africana região dos lagos. O ápice dos conflitos étnicos, naquele ano, foi o horripilante massacre de tutsis, em Ruanda, que se estendeu pelos países vizinhos como o Burundi e a República Democrática do Congo (antigo Zaire), deixando um saldo de três milhões de mortos.

Peterson e Wrangham narram parte do triste episódio africano[1]: cerca de 10.000 mil corpos flutuavam sob o rio Kagera, na Uganda. Alguns sem cabeça, outros sem braços ou pernas, muitos mutilados por facões e machados; outros carbonizados, pois foram queimados quando ainda vivos e depois jogados no rio. Crianças, mulheres, homens e idosos, todos da etnia tutsi. Os corpos arrastados pela correnteza vieram do país vizinho: Ruanda. De acordo com um relato de um fazendeiro que ajudou a recolher os corpos, como nos conta Peterson e Wrangham, uma das cenas mais medonhas foi ter retirado o corpo de uma mulher. Ela não tinha nenhum ferimento, nem de bala, nem de machado. Provavelmente morreu afogada, fugindo dos assassinos e o afogamento pode ter ocorrido por um motivo: a mulher tinha os cinco filhos agarrados ao seu corpo: um em cada braço, um em cada perna e um agarrado nas costas. Lamentável cena de horror.

Quando nos depararmos com cenas de horror, provocadas pelo próprio homem, é muito comum ouvir: “o ser humano é perverso... nenhum outro animal é capaz disso”; ou “o homem age feito bicho”. Implícito nestes ditos está a crença de que o ser humano é apartado das bestas e que a violência é algo ensinado pelo meio cultural, não tendo nada haver com a própria condição de sermos animais. O psicólogo Steven Pinker denominou tal crença sobre a violência humana de “dogma central” das ciências humanas, extremamente popularizada entre não cientistas, e que é entendida pelos dogmáticos do seguinte modo: “A violência é um comportamento ensinado pela cultura, ou uma doença infecciosa endêmica em certos ambientes.” [p; 418]

Pois bem. Daí começa a ladainha: “Escuta, é só o homem que comete esse tipo de barbárie sim! Um bicho só ataca o outro por comida, território ou para acasalar, nunca gratuitamente e nunca um membro da sua própria espécie.”

Em primeiro lugar, quem afirma que o homem não agride por comida, território ou por parceiros sexuais, perdoe-me, mas precisa urgentemente ler jornais e livros de história (quase ia esquecendo a internet); em segundo lugar, a tese de que animais não agem violentamente de modo gratuito, idílica, aliás, começou a ser derrubada desde 1960, com os estudos na área de Primatologia.

A partir de agora, passo a explicar em várias postagens os achados de Dale Peterson e Richard Wrangham exatamente para fazer circular informações que contrariam fortemente o Dogma Central, essa incrível idéia de que o meio determina exclusivamente o comportamento humano (defendida por grandes filósofos, como J-J. Rousseau e J. Locke).

Os primatologistas que nos ocuparemos, Peterson e Wrangham, batizaram a teoria por eles formulada com um nome curioso: “Machos Demoníacos”, por interessantes razões que veremos na sequência.

[Continua]

Paulo Henrique Castro


[1]Peterson, D; Wrangham, R. Demonic Males: apes and the origins of human violence. New York: Houghton Mifflin Company, 1996.