domingo, 31 de julho de 2011

Quase Humanos.

“Naquela época sabíamos tão pouco sobre essas criaturas reservadas que tudo parecia novo. Aqueles que antes julgávamos vegetarianos pacíficos mostraram ser caçadores poderosos e inteligentes, com personalidade e emoções complexas, capazes de comunicação, altruísmo, alianças políticas, infanticídio, guerra e feitura de utensílios – esta última habilidade sendo a que distinguia os humanos do resto do reino animal.”

                                                                                                                 Jane Goodall

O ano é 1986. A Sociedade de Ciências de Chicago realiza a primeira conferência internacional para divulgar estudos feitos com chimpanzés. O encontro científico com diversos estudiosos foi motivado, principalmente, pela publicação dos resultados impressionantes das pesquisas realizadas no Parque Nacional de Gombe, a partir da década de 1960, por uma das mais brilhantes cientistas do século XX: Jane Goodall. O impacto das descobertas foi tão grande que ocorreram mais duas conferências, uma em 1991 e a última em 2007[1]. Por que estudar chimpanzés?

Em primeiro lugar, porque são animais. Como disse Duane Rumbaugh e David Washburn, pesquisadores do Centro de Pesquisas sobre Linguagem, do departamento de psicologia e biologia da Georgia State University:

“Há, no mundo de hoje, um infeliz mito de que o comportamento animal é irrelevante para entender o comportamento dos humanos. Este mito está baseado em uma suposição enganosa de que animais são animais e humanos não são animais.” [2]

Em segundo lugar, hoje sabemos que mais de 98.7% da seqüência do DNA do chimpanzé é a mesma que a dos humanos[3]. O comportamento também é espantosamente semelhante[4]: os chimpanzés usam e fabricam instrumentos[5] (no Senegal eles escolhem galhos específicos e afiam as extremidades com os dentes para caçar gálagos, empunhando os galhos como se fossem lanças, uma descoberta feita por Jill Pruetz que assombrou o mundo[6]; em Uganda usam folhas para beber água, gravetos para extrair cupins, na Tanzânia usam pedra e apoio para quebrar nozes etc.); são empáticos e solidários (quando os mais velhos não conseguem subir nas árvores frutíferas, os jovens pegam as frutas e entregam para os idosos[7]); territoriais e marcadamente agressivos: há registros de ataques de chimpanzés matando humanos em todo o mundo, como também ataques contra os membros da própria espécie de forma extremamente brutal[8], incluindo a agressão letal para com os membros de bandos vizinhos em estado selvagem, fazendo patrulha nos limites do território[9]; são capazes de comunicação simbólica[10] e possuem uma capacidade de resolver problemas (inteligência) só superada pelos humanos[11]; das capacidades cognitivas já medidas, a memória do chimpanzé é provavelmente maior do que a do homem (como relata um estudo usando numerais em uma tela de computador, que ficou famoso[12]); são animais gregários e, assim, as relações sociais são inevitáveis, articuladas e complexas (estudos meticulosos demonstram que eles fazem alianças políticas e se subdividem em grupos menores, disputando ou apoiando a posição de macho alfa em uma sociedade rigidamente hierarquizada[13]); possuem uma variedade incrível de vocalizações diferentes, reconhecíveis por nomes técnicos entre os especialistas, que servem para a comunicação entre os chimpanzés[14], bem como uma extensa gama de expressões faciais e gestos, o que permite interações sociais ricas[15]; comem e caçam mais de 24 espécies de vertebrados, usando estratégias de caça altamente sofisticadas (principalmente em relação aos macacos colobos[16], animais difíceis de serem caçados em florestas densas); cometem infanticídios[17], e há indícios de que tenham consciência a partir do auto-reconhecimento em superfícies espelhadas (lagos, poças d’água, espelhos em laboratórios etc.)[18].

Mais ainda: em 1999 foi publicado um artigo na conceituada revista Nature[19], elaborado pelos nove mais importantes primatologistas de renomadas universidades, responsáveis por sítios naturais na África, local em que o chimpanzé é encontrado e estudado. São seis vastos campos florestais em que esse animal é investigado por mais de 50 anos, em cada um (Bossou, em Guiné; Kibale e Budongo, na Uganda; Mahale e Gombe, na Tanzânia; Tai, na Costa do Marfin). O objetivo do artigo era apresentar uma síntese sistemática do repertório de variação comportamental dos chimpanzés observados naqueles sítios. Os cientistas catalogaram 65 comportamentos que são encontrados em um lugar, mas não em outro. A descoberta pode parecer inofensiva. Entretanto, cabe ressaltar que o grande pilar que sustenta a afirmação de que o mundo humano é apartado do mundo animal, é a tese de que o comportamento instintivo é padrão para todos os membros de uma única espécie. Sendo assim, segue o raciocínio, qualquer variação comportamental será testemunhada em qualquer indivíduo da mesma espécie. É exatamente o contrário disso que os pesquisadores demonstraram no artigo síntese publicado na Nature. Há, por exemplo, comportamentos que são periodicamente observados nos chimpanzés em Budongo, mas não naqueles que vivem em Kibale (vastos territórios florestais no mesmo país, Uganda).

Encontrado de modo descontínuo na África Equatorial, o chimpanzé é um animal que pertence ao gênero Pan, da ordem dos primatas, de nome científico Pan troglodytes. Também é conhecido como chimpanzé comum, para distingui-lo de seu parente próximo e do mesmo gênero, o bonobo (Pan paniscus). O chimpanzé foi descrito pela primeira vez em 1799, pelo naturalista alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), que deu ao animal o nome científico. O chimpanzé já era conhecido por relatos de viajantes, permeados por visões sobrenaturais e distorcidas. Atualmente considera-se a seguinte classificação: chimpanzés que vivem no oeste da África (Senegal, Mali, Guiné e Costa do Marfim) são da subespécie Pan troglodytes verus; chimpanzés que vivem na África central (Congo, República Democrática do Congo e Uganda) P. t. troglodytes; e os que vivem no leste P. t. schweinfurthii (Tanzânia).[20]

Desde que Blumenbach descreveu o chimpanzé, a idéia que prevaleceu sobre este primata foi a de um tipo de caricatura do ser humano, daí o chimpanzé ser uma das mais cômicas atrações de circos e zoológicos espalhados pelo mundo. Ainda hoje essa imagem deturpada vigora no imaginário social. No Rio de Janeiro, o falecido “macaco Tião” era uma das atrações mais famosas e divertidas (é sempre bom lembrar que um chimpanzé não é um “macaco”, como já expliquei em outro texto neste blog). O Ocidente não levou muito a sério um animal que era tão semelhante ao ser humano. Ao mesmo tempo em que ele nos faz rir, a imagem e o comportamento de um chimpanzé nos assombram, feito o que sentimos em uma montanha russa.

A obra em que Jane Goodall relata o seu encontro e estudos com a comunidade de chimpanzés do Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia, às margens do grande lago Tanganyika, chama-se In The Shadow of Man (À Sombra do Homem). Título sugestivo. Na introdução do livro o já falecido biólogo de Harvard, Stephen Jay Gould, corrigiu em um tom dramático: “Os chimpanzés não são tanto a sombra do homem, mas sim o nosso espelho.” [21]

Os estudos com chimpanzés se dividem em dois grupos: (1) Estudos com primatas selvagens e (2) os estudos com primatas em cativeiro. Os estudos com chimpanzés cativos, por sua vez, se dividem em três grandes categorias: [i] Observação rigorosa de grupos naturais de chimpanzés em santuários (locais específicos criados para receber os cativos) e em zoológicos; [ii] Testes psicológicos em laboratórios montados em universidades; [iii] Pesquisas de aquisição de linguagem.

Pioneiros nas pesquisas com chimpanzés cativos foram: o americano Robert Yerkes, a russa Ladygina-Kots e o alemão Wolfgang Kohler, todos nas primeiras três décadas do século XX.

De acordo com Jane Goodall[22], a primeira pessoa que estudou chimpanzés selvagens nas selvas africanas foi R. L. Garner em 1890. Garner construiu uma jaula no meio da floresta, mas não para capturar chimpanzés. O estudioso fez a jaula para servir de abrigo para ele mesmo observar os animais. Depois, as pesquisas com chimpanzés selvagens foram praticamente esquecidas, com a honrosa menção de Henry Nissen em 1930. As dificuldades de se estabelecer uma base de pesquisas já eram consideráveis por motivos geográficos e aumentaram com a conhecida instabilidade política dos países africanos, gerada pelo imperialismo europeu.

Em 1960, Adriaan Kortlandt retoma as pesquisas de campo no antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo. E no mesmo ano, uma jovem de 18 anos, enviada pelo famoso antropólogo Louis Leakey, começa uma investigação surpreendente e detalhada sobre os chimpanzés que habitavam as florestas do que hoje é o Parque Nacional de Gombe: Jane Goodall.

A Primatologia dos Chimpanzés se tornou um dos grandes ramos das pesquisas biológicas, antropológicas, psicológicas e sociais, com implicações filosóficas fascinantes para diversas questões, tais como: o livre-arbítrio, a relação da mente com o corpo, o problema da cultura, o problema do mal, as raízes das nossas decisões, da solidariedade e da violência entre outros temas. Porém, acima de qualquer questão, os estudos com chimpanzés lançam luz para a indagação maior: o que nos torna humanos?

Paulo Henrique Castro ®.


[1] Londorf, E. V. The Mind of the Chimpanzee. Chicago: University of Chicago Press. 2010.

[2]There is an unfortunate myth in the word today that the behavior of animals is irrelevant to understanding the behavior of humans. This myth is predicated on the mistaken assumption that animals are animals and that humans are not animals.” Washburn, D. A. & Rumbaugh, D. Intelligence of Apes and Other Rational Beings. New Haven: Yale University Press. 2003.

[3] Matsuzawa, T. Sociocognitive Development in Chimpanzees: A Synthesis of Laboratory Work and Fieldwork. In Matsuzawa T.; Tomonaga, M.; Tanaka, M. (Eds.) Cognitive Development in Chimpanzees. Tokyo: Springer-Verlag, 2006.

[4] “Semelhante” não é sinônimo de “igual”. A crítica mais famosa sobre estudos com animais é a alegação de que tais estudos não passam de antropomorfismo (a idéia de que o ser humano atribui qualidades próprias aos fenômenos da natureza). A réplica a essa objeção é extremamente poderosa e diz respeito à natureza do argumento analógico e vários mal-entendidos sobre a especificidade lógica deste tipo de argumentação. Em outra postagem abordaremos essa problemática. Para conhecer a crítica séria ao argumento por analogia, confira o respeitado artigo de Povinelli, D. J. & Giambrone, S. Inferring Other Minds: Failure of the Argument by Analogy. Philosophical Topics. Vol. 27, No. 1, spring 1999.

[5] McGrew, W. C. Chimpanzee Material Culture. Cambridge: Cambridge University Press. 1996.

[6] Pruetz, J. D. & Bertolani, P. Savanna Chimpanzees, Pan trogodytes verus, Hunt with Tools. Current Biology. Vol. 17, 412-417. 2007.

[7] Wall, F. B. de. Good Natured: the origins of right and wrong in humans and other animals. Cambridge: Harvard University Press. 1997.

[8] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996.

[9] Watts, D. at all. Lethal Intergroup Agression by Chimpanzees in Kibale National Park, Uganda. American Journal of Primatology. New Haven: Yale University Press. 2006, n 68: 161-180. Cf. também Watts, D. P. & Mitani, J. C. Boundary Patrols and intergroup encounters in wild chimpanzees. Bahaviour 138, 299-327.

[10] Savage-Rumbaugh, S. Apes, Language, and the Human Mind. New York: Oxford University Press. 2001.

[11] Washburn, D. A. & Rumbaugh, D. Intelligence of Apes and Other Rational Beings. New Haven: Yale University Press. 2003.

[12] Inoue, S. & Matsuzawa. Working memory of numerals in chimpanzee. Current Biology. Vol 17, n 23; 1004-1005.

[13] Wall, F. B. de. Chimpanzee Politics. Baltimore: The Johns Hopkins University Press. 2007, 25th anniversary ed.

[14] Mitani, J. C.; Murdoch, M. E.; Hunley, K. Geographic Variation in the Calls of Wild Chimpanzee: A Reassessment. American Journal of Primatology 47: 133-151. 1999.

[15] Waal, F. B. de. Darwin’s Legacy and the Study of Primate Visual Communication. Annals of New York Academy of Science. 1000: 7-31. 2003.

[16] Stanford, C. B. Chimpanzee and Red Colobus. The Ecology of Predator and Prey. Cambridge: Harvard University Press. 1998.

[17] Reynolds, V. The Chimpanzees of the Budongo Forest. New York: Oxford University Press. 2005.

[18] Waal, F. B. de. The Monkey in the Mirror: Hardly a Stranger. The National Academy of Science of the USA. N. 32, vol. 102. 11140-11147. PNAS.

[19] Whiten, A; Goodall, J.; McGrew, W. C.; Nishida, T.; Reynolds, V.; Sugiyama, Y.; Tutin, C. E. G.; Wrangham, R. W.; Boesch, C. Cultures in Chimpanzees. Nature, vol. 399; 17 june 1999. P. 682-684.

[20] Teleki, G. in Wrangham, R. Chimpanzee Cultures. Chicago: Chicago Academy of Sciences. 2001.

[21] Goodall, J. In The Shadow of Man. New York: Mariner Book. 1988, edição revista. P. VII.

[22] Goodall, J. in Wrangham, R. Chimpanzee Cultures. Chicago: Chicago Academy of Sciences. 2001.

domingo, 24 de julho de 2011

Filosofia da Religião II.

 

Sete de janeiro de 1974, Parque Nacional de Gombe. Pesquisadores[1] observam e acompanham a movimentação de um bando de oito chimpanzés durante dias na mata fechada. Eram sete machos (seis adultos e um adolescente) e uma única fêmea sem filhotes, chamada pelos cientistas de Gigi. O macho alfa (líder do bando) era Figan. Um outro macho muito forte se chamava Humphrey e pesava cerca de 50 kg.

Na floresta, cada bando de chimpanzés tem o seu território bem delimitado. Enquanto os oito chimpanzés percorriam a sua região, ouviram as vocalizações de uma comunidade vizinha de chimpanzés, não pertencente ao grupo original e muito menos ao território dos oito primatas. Curiosamente, o bando que ouviu os grunhidos não emitiu nenhum som em resposta. Ficaram em silêncio (sabe-se que o chimpanzé é um animal muito barulhento, tanto em cativeiro, quanto em estado selvagem), e ainda aumentaram o ritmo da caminhada. Vasculharam os limites da sua área e foram além, avançando sobre o território do bando vizinho de modo muito rápido.

Enquanto isso, no território da comunidade barulhenta, havia um macho adulto, Godi, pacificamente comendo em uma árvore. Um pouco distante havia seis outros machos pertencente ao mesmo grupo de Godi, que fizeram aquelas vocalizações que o outro bando tinha ouvido. Freqüentemente Godi andava com a sua turma, mas, por algum motivo, naquele dia ele estava sozinho (um erro que iria custar a sua vida).

Quando Godi se deparou com o grupo rival dos oito chimpanzés intrusos ele ainda estava em sua árvore. Pulou e correu, mas foi cercado pelos invasores.

Humphrey foi o primeiro a atacar Godi, agarrando-o pela perna. Desequilibrado, Godi caiu de frente, com a face voltada para a lama, e Humphrey pulou sobre ele, imobilizando-o com seus 50 kg e segurando com as mãos os membros superiores da vítima, ao mesmo tempo em que mantinha a perna de Godi presa (os chimpanzés usam os quatro membros com a mesma habilidade, ao contrário do ser humano).

Durante a vigorosa imobilização imposta por Humphrey, os outros intrusos atacaram Godi. Hugo, o mais velho, usando os dentes, arrancou pedaços da carne de Godi. Outro macho deu golpes na altura da escápula e recuou (é necessário lembrar que um chimpanzé adulto é 5 vezes mais forte do que o homem). O adolescente apenas assistiu e Gigi gritava e circulava em torno do ataque, que continuou com mordidas e pancadas.

Após dez minutos, Humphrey soltou a perna de Godi e os outros pararam de bater. Enquanto o animal ferido tirava a sua face da lama, uma enorme pedra foi lançada sobre ele. Haviam feridas impressionantes por todo o corpo de Godi, jorrando sangue. “Ele nunca mais foi visto de novo. Pode ter sobrevivido por alguns dias, talvez uma semana ou duas. Mas ele certamente morreu.” [2]

O grupo de chimpanzés que invadiu o território dos vizinhos, depois do ataque, retornou para os limites da sua área original, dessa vez menos excitados.

O relato deste ataque foi o primeiro registro científico de que animais não-humanos usavam de violência gratuita (o primeiro de inúmeros registros em diversos locais na África e também em cativeiro). Há descrições apavorantes sobre a intensidade da violência entre estes animais. Por diversas vezes observou-se que quando um grupo cerca um único indivíduo, após imobilizá-lo, arrancam-lhe os dedos (as unhas dos chimpanzés são muito afiadas, feito navalhas) e até bebem o sangue da vítima. Em alguns casos foi registrado que os algozes voltaram ao local em que o corpo do animal foi deixado morto. Olharam e foram embora[3].

Por que Humphrey e sua turma atacaram? Não foi para defender o seu território, considerando que o ataque foi no espaço do grupo vizinho; também não foi por alimento, pois os animais atacaram e foram embora sem se servir de nada para comer; não foi por defesa, dado que eles estavam distantes do território vizinho e não foram atacados; não pode ser por livre escolha, já que livre-arbítrio é uma capacidade que Deus deu apenas aos humanos, como alegam determinadas correntes teológicas. Então por quê? E por que usaram de tanta violência (lembre-se do episódio da pedrada, quando Godi já estava jorrando sangue por diversas feridas)?

Além de o fato em si ser de difícil explicação, as descrições deste tipo de violência tão orquestrada entre animais não-humanos enfraquece a tentativa de compatibilizar a existência de um Deus bondoso, todo-poderoso e onisciente, com a existência do mal natural (debate que iniciamos na publicação anterior deste blog). É difícil de imaginar quais seriam as razões que um Deus bondoso teria ao criar animais que possam fustigar uns aos outros com esse requinte de crueldade.

O argumento do instinto também não parece funcionar. De acordo com essa argumentação, o animal age por instinto, logo não pensa. Daí segue-se atos que para nós parecem incompreensíveis, mas que ocorrem segundo uma programação fixa na natureza e planejada por Deus. Uma vez em andamento, a natureza teria seguido o seu rumo e, portanto, as ações observadas entre os animais já não estariam ligadas à bondade divina. Ora, mas o argumento parece frágil se atentarmos para dois motivos: [1º.] Ainda que as ações violentas dos chimpanzés sejam decorrentes de uma programação cega, quem a programou foi Deus; e, sendo todo-poderoso, poderia ter programado ao menos os animais não-humanos de tal modo que não ocorressem sofrimentos decorrentes dos atos deles mesmos. [2º.] A crueldade (penso que ninguém chamaria o ato de receber uma pedrada como um ato de bondade, assim, me furto de debates meramente verborrágicos[4]) de um animal para com o outro não parece servir à função pedagógica, que se alega ser típica da asserção de que humanos possuem livre-arbítrio. Porque se admitirmos que haja no Plano divino para os animais também um propósito de ensinar o Bem maior (o crescimento moral e espiritual), então teremos que estender a noção de capacidade de livre escolha aos animais, o que é contraditório com a noção de instinto. Ou bem os chimpanzés agem por puro instinto e, nesse caso teríamos que oferecer uma réplica para a primeira objeção [1º.], ou bem os chimpanzés tem livre-arbítrio, o que anula o próprio argumento do instinto.

De qualquer forma, permanece enigmática a co-existência de um Deus bondoso, onipotente e onisciente com o mal natural. O fato de animais serem cruéis faz retornar um argumento que já encontramos em Epicuro e que David Hume reacende:

Ou Deus quer acabar com o mal, mas não pode (caso em que deixaria de ser um Ser Todo-poderoso); ou Deus pode acabar com o mal, mas não quer (caso em que Deus deixaria de ser sumamente bom); ou Deus quer acabar com o mal, pode fazê-lo, mas não sabe como (caso em que não seria onisciente).

Em qualquer dos casos mencionados anteriormente, os atributos divinos estariam em cheque, quando a discussão inclui a existência do mal natural. Como tipicamente Deus, nas religiões monoteístas, é descrito com tais atributos (bondade, onipotência e onisciência), a sua própria existência passa a ser objeto de sérias dúvidas. Como resolver este dilema?

Paulo Henrique Castro.


[1] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996.

[2] Idem, p.6.

[3] De Waal, F. B. Eu, Primata. São Paulo: Companhia das Letras. 2007.

[4] Veja neste blog um texto sobre desacordos: “Desacordos filosóficos ou meramente verbais”.

domingo, 17 de julho de 2011

Filosofia da Religião I: O Problema lógico do Mal.

 
Em filosofia chama-se “problema lógico do mal” a incompatibilidade lógica entre a existência de eventos cruéis com a existência de um Deus onipotente, onisciente e bondoso. As palavras de Law[1] servem para ilustrar a questão:
Deus é tipicamente descrito como perfeitamente bom, onipotente e onisciente. Se isso for verdade, podemos supor que Deus não só quer eliminar o mal, como é capaz disso e sabe como fazê-lo. Mas isso suscita a pergunta: então, por que o mal existe? Seria porque Deus não existe?”
Neste contexto, distinguem-se dois tipos de Mal:
[1] O Mal Moral: atos humanos que não consideram o sofrimento alheio, como por exemplo torturar uma criança arrancando-lhe as unhas;
[2] O Mal Natural: eventos que provocam sofrimentos alheios e que não são decorrentes da ação do homem, como os terremotos (efeito dos movimentos das placas tectônicas), e a predação mútua entre os animais.
A resposta para o mal moral está na ponta da língua da maioria dos que foram criados em culturas influenciadas pela tradição judaico-cristã: o livre-arbítrio é a causa do sofrimento alheio. Embora óbvia esta resposta é extremamente problemática, como veremos em outra publicação. O mal natural é ainda mais ilógico, de acordo com diversos filósofos, entre eles David Hume (1711-1776) [2].
Os defensores da compatibilidade entre a existência de Deus e a existência do mal, apresentam o seguinte argumento: o mal natural existe para aprendermos o bem maior. Se não fossem os desastres naturais, os acidentes e as doenças, não poderíamos aprender o valor do amor. Só podemos suportar a dor, porque sentimos dor. Assim, perder o que amamos nos ensina o valor do bem. O mal, desse modo, é um evento necessário e pedagógico, que Deus não quer eliminar para que saibamos reconhecer e apreciar o bem.
O primeiro problema com esse argumento, segundo Law, é a intensidade do mal natural. Catástrofes, como inundações, irrupções vulcânicas, secas, peste, tsunamis, parecem ocorrer em escala muito superior ao que precisaríamos para aprender a amar. Quando examinamos as evidências do mal natural no mundo, notamos que a quantidade é excessiva e a distribuição geográfica é desproporcional. Para ser mais justo com o restante do mundo, deveriam existir terremotos e furacões devastadores no Brasil, no Congo, na Inglaterra, na Alemanha, no Botsuana e na Bolívia, entre outros locais. Os terremotos não escolhem vítimas e são incrivelmente destruidores, tanto para humanos, quanto para os demais animais. Parece plausível aceitar que Deus desejasse eliminar “o mal desnecessário”, ainda que quisesse manter algum mal para fins pedagógicos e também tivesse distribuído o mal natural pelo mundo de forma equitativa.
O problema das evidências do mal afirma que a quantidade de mal e sua distribuição no mundo são incompatíveis com a existência de um Deus bom, onipotente e onisciente. [...] É claro que o mal não está igualmente distribuído entre pessoas e animais. Alguns sofrem mais que outros, e os inocentes podem sofrer horrivelmente. P.ex., crianças podem morrer de doenças terríveis, e animais podem sofrer em inundações e secas. Isso parece ser exatamente o que um Deus onipotente, onisciente e bom desejaria erradicar. Assim, mesmo que o mal seja necessário para um bem maior, seria tanto mal necessário?” [3]
O outro problema com este argumento é que ele não explica outra instância do mal natural: o sofrimento que ocorre entre animais não-humanos.
Todos os animais são dotados de sistema nervoso que, entre tantas funções, é responsável por captar estímulos do ambiente. Os receptores sensorias responsáveis para detectar qualquer forma de energia (como a energia térmica liberada por uma barra de ferro quente), é constituído por células altamente especializadas. Assim, se você sente dor ao encostar o seu rosto em uma barra de ferro que esteja quente, isso se deve ao fato de que o seu sistema nervoso recebeu e processou uma dose imensa de energia térmica. A mesma coisa acontece com uma vaca que tem o seu dorso marcado por ferro quente: ela sente dor. Como sabemos? Porque a vaca (como qualquer outro animal) é constituída com as mesmas células termorreceptoras especializadas em captar energia térmica, como nós. Baseado nisso, vejamos um exemplo peculiar e voltaremos para a questão do mal natural.
Existe um animal chamado “vespa-escavadora” (amófila-peluda da família Sphecidae). Como a maioria das vespas, ela é uma parasita. Sua vítima é uma lagarta-cinzenta, que possui o corpo segmentado por anéis. Todos os anéis são constituídos por centros nervosos, os gânglios. Isto significa que se você encostar com um dedo em um dos segmentos da lagarta-cinzenta ela se retrai, pois possui células especializadas em energia mecânica (como nós e aquela vaca do parágrafo anterior). Pois bem. A vespa-escavadora perfura cada segmento anelado da lagarta, gânglio por gânglio, não para matá-la, mas, sim, para paralisá-la. Em seguida, a vespa deposita as suas larvas, que comem a carne viva da lagarta. Consegue imaginar a dor que a lagarta sente? Se o argumento pedagógico tem algum valor quando se trata de humanos, certamente que ele falha ao explicar porque um animal age produzindo tamanho estrago no outro (e evidentemente que ninguém vai apelar para o livre-arbítrio no caso das vespas). Quando se trata do sofrimento dos animais gerado naturalmente, a existência do mal se torna ainda mais incompatível com a existência de um Deus bondoso, todo-poderoso e conhecedor de tudo.
Pensando nisso, Darwin[4] disse: “Não consigo me convencer de que um Deus onipotente e benévolo tenha deliberadamente criado os Ichneumonidae com a intenção expressa de que estes se alimentassem dos corpos vivos das lagartas.”
Em lógica sabe-se que não é possível afirmar e nem negar a existência de algo se baseando na ignorância. Por exemplo, não podemos afirmar que nunca existiu um dinossauro de duas cabeças, apelando para a premissa de que nunca vimos um fóssil de tal animal. Por que não? Ora, porque o fato de nunca termos experimentado a visão de um fóssil de dinossauro de duas cabeças, não esgota a possibilidade de amanhã ser desenterrado um. Sendo assim, afirmar que não existem dinossauros de duas cabeças baseado na nossa ignorância (desconhecimento) é um conhecido erro lógico denominado pelos filósofos de Argumentum ad Ignorantiam. É improvável, mas ainda assim possível[5]. O mesmo vale para outras afirmações com a mesma base: a ignorância.
Esse alerta é importante, porque alguns tentam contra-argumentar, defendendo a tese da compatibilidade do mal natural, afirmando que ignoramos as verdadeiras intenções de Deus. Qualquer tentativa de tornar a existência do mal natural compatível com a existência de um Deus bom, onipotente e onisciente, recorrendo ao bordão “nós ignoramos os desígnios de Deus”, mantém o problema do mal em aberto.
Paulo Henrique Castro.
PS: O exemplo da vespa-escavadora é de Dawkins.

[1] Law, S. Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2008, p. 153.
[2] Hume, D. Obras Sobre Religião. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2005.
[3] Idem nota 1, p. 154.
[4] Dawkins, R. O Capelão do Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[5] Foi justamente por esse detalhe técnico de lógica elementar, que Richard Dawkins preferiu apresentar uma argumentação poderosa contra a existência de Deus, construída a partir de raciocínios probabilísticos. Cf. Deus. Um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

domingo, 10 de julho de 2011

Não te escuto. Logo, sou Ignorante.

O presunçoso se expressa em um diálogo como se estivesse falando com as paredes: ignora o outro, ainda que este fique com o dedo levantado esperando a sua vez. Você já conversou, ou melhor, já ficou ouvindo alguém presunçoso? É desagradável. A pessoa desanda a falar com aquele ar professoral, como se estivesse dando aulas para um espelho. Não pergunta, não checa se o outro tem uma opinião diferente, não oferece ao outro a oportunidade de falar, em uma palavra: monólogo.

Aquele que conversa consigo mesmo na frente de outra pessoa sem ouvi-la é um ignorante, sem dúvida. Primeiro porque ignora o outro (no sentido de não levar a perspectiva alheia em consideração; desprezo), o que é estupidez, grosseria, falta de educação. Segundo porque o sujeito desconhece (ignora) que o conhecimento de qualquer coisa envolve aspectos que não são todos visíveis apenas de um único ângulo (o do ignorante). Porém, o mais triste vem agora: o ignorante não percebe que, dependendo do público para quem ele apresenta o seu solilóquio, haverá alguém que o olha nos olhos e pensa: como ele (a) pode ser tão ignorante? Por que faz tanta questão de abrir a boca para falar do que não sabe, com ar de quem escreveu diversos volumes para a Enciclopédia dos Ignorantes Sabedores de Nada (DUMB, sigla em húngaro arcaico do século XV)?

Uma das coisas mais importantes que Descartes indicava a respeito de seu método de filosofar, era a fundamental diferença entre desconfiança e presunção. “Presunçoso” é aquele indivíduo que tem uma excessiva confiança em suas convicções, sem nem ao menos atinar para o fato de que elas possam estar profundamente equivocadas. Assim, Descartes afirmava pender mais para a desconfiança do que para a presunção na busca pela verdade. Desconfiar supõe perguntar e discutir.

“Discutir” não é brigar. Discutir é propor idéias e saber apreciar e tolerar as idéias alheias, até mesmo aquelas que são contrárias as nossas. Claro, nem sempre gostamos de ouvir idéias que nos incomodam, que põem em dúvida as nossas crenças mais aferradas. Por isso, muitas vezes, um diálogo vira “bate boca”. Mas, discutir não é fechar os ouvidos para o que os outros têm a dizer.

Sabemos que desde Sócrates a Filosofia se faz a partir da dialética, entendida como a arte do diálogo. O que é um diálogo? “Um diálogo é uma seqüência de trocas de mensagens ou atos de fala entre dois (ou mais) participantes. Tipicamente, porém, um diálogo é uma troca de perguntas e respostas entre duas partes.” [1]

(O ignorante não pergunta e nem responde: vocifera.)

Dialogar é trocar informações por meio de perguntas e respostas. Podemos conversar de vários modos e com vistas a vários fins. Entretanto, o tipo de diálogo que interessa ao filósofo é o diálogo racional, que se caracteriza pelo questionamento crítico, pela avaliação lógica e pelo comprometimento com o objetivo do diálogo.

O que é o objetivo do diálogo? “Todo diálogo surge de um problema, de uma diferença de opinião ou de um assunto a ser resolvido que tenha dois lados. Esses lados constituem o tema do diálogo”. [2] Assim, o primeiro passo em um diálogo é identificar claramente qual é o foco da conversa. Onde queremos chegar com a discussão? Qual é o tema que se está discutindo? Qual problema ou questão está em disputa? A falta de objetividade (incapacidade de manter a atenção no foco do diálogo) produz muita confusão e desentendimento. Quando as pessoas perdem de vista o foco do diálogo, cabe a crítica de não-pertinência: “isso não vêm ao caso”, “isso não é pertinente”, “você está falando de outra coisa” etc.[3]

Identifique o tema do diálogo, certifique-se sobre as suas convicções sobre o tema, assuma o seu compromisso com um dos lados. Se você não tem uma posição segura e clara sobre o assunto, então é de bom tom apenas levantar indagações para depois se posicionar. Desviar-se do assunto do diálogo é uma forma típica de gerar confusão e desacordos[4]. O diálogo racional tem um objetivo que não podemos perder de vista. Sair deliberadamente do assunto que está sendo tratado chama-se “divagar”. E a divagação não contribui para o diálogo racional.

Há muitos tipos de desacordos em um diálogo. Como afirmou o filósofo contemporâneo Douglas Walton, muitos não passam de pura tolice, considerando que ocorrem simplesmente por falta de educação e intolerância (ignorância). Não há forma mais medonha de intolerância do que “discordar por discordar”, isto é, não admitir que o outro tenha argumentos convincentes. É como o sujeito que diz: “você fica com a sua opinião, que eu fico com a minha.” Ou o “diálogo de surdos”, em que não ocorre nenhuma argumentação e as perguntas ficam indo e voltando para sempre:

Por exemplo, o crente e o ateu poderiam ficar perguntando para sempre: ‘Por que você não acredita na existência de Deus’ versus ‘Por que você acredita na existência de Deus?’ Essa atitude não faria o argumento avançar nem um pouco. Para chagar em algum lugar, cada um dos lados tem que assumir um razoável ônus da prova. Num diálogo, isso significa que cada lado tem que tentar justificar com sinceridade a posição que adotou e tem que se comprometer caso sua posição exija tal comprometimento.” [5]

De um modo ou de outro, “discordar por discordar” não tem fundamento. Se não tem fundamento, então por que exatamente ocorreu desacordo? Porque certas discussões são geradas quando crenças cegas são usadas como algo estabelecido e inquestionável.

Essa é a maior expressão daquilo que se convencionou chamar de dogmatismo. Imannuel Kant[6], filósofo alemão, reclamou da postura dogmática de modo enfático, afirmando que a razão deveria seguir a via segura da ciência “[...] em vez de tenteios sem fundamento ou de leviana vagabundagem a que a mesma se entrega quando procede sem crítica [...].” Ainda segundo Kant, o “[...] dogmatismo corrente recebe um encorajamento tão precoce e tão forte para discorrer comodamente sobre coisas de que nada entende nem entenderá, como ninguém poderá entender [...].”

(Amiúde o ignorante é um dogmático)

Ser dogmático é ser intransigente. E a intolerância emperra o diálogo, uma vez que descamba para a altercação pessoal. “Altercar”, significa “discutir com ardor”, “provocar polêmica”. Caracteriza-se por[7]:

[a] ataques pessoais, agressivos muitas vezes, contra o outro participante do diálogo;

[b] abandono do foco em questão (o objetivo do diálogo é colocado de lado). Há uma insistente tentativa de desviar as atenções do objetivo da disputa;

[c] apelo às emoções e vontade de vencer a discussão a qualquer custo (“vencer no grito”).

Em suma, é preciso evitar o erro de defender com firmeza conclusões apressadas e baseadas na ignorância. Isso se chama raciocínio dogmático e é o pior dos erros num diálogo racional. É preciso saber que, no outro lado da questão, pode haver argumentos tão razoáveis quanto os que você defende.” [8]

Ignorância é quase igual à masturbação: nego ao outro a possibilidade de amplificar o meu prazer (pode existir coisa mais pobre?). Bem, como eu disse, “é quase igual”. Diferente da ignorância, a masturbação contempla o outro em fantasia, ao passo que ignorar pressupõe uma exacerbada egolatria.

Paulo Henrique Castro.


[1] Walton, D. N. Lógica Informal: Manual de Argumentação Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 04.

[2] Idem, p. 14.

[3] Idem.

[4] Confira neste blog um texto sobre desacordos: “Desacordos filosóficos ou meramente verbais?”

[5] Walton, D. N. op. Cit., p. 65.

[6] Kant, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulben kian. 1997, p. 28.

[7] Walton, D. N. op. Cit.

[8] Idem, p.66.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sociedade Disciplinar, Escola e o Saber Útil.

 

O objetivo deste texto é apresentar a análise feita por Michel Foucault (1926-1984) sobre a origem da sociedade disciplinar e refletir sobre o papel da escola neste modelo de sociedade.

Paul-Michel Foucault nasceu em Poitiers, França, em 15 de outubro de1926. Com formação em Psicologia e Filosofia, Foucault foi professor da prestigiada Ecole Normale Superiéure e se tornou mundialmente famoso em 1961 com a sua obra “A História da Loucura”. Apresentou conferências no mundo todo, incluindo Brasil, Japão e Estados Unidos. Foucault morreu em 25 de junho de 1984, deixando uma obra rica e complexa.

Em 1975, o filósofo francês publica “Vigiar e Punir”, pesquisa histórica que aborda os métodos de controle social, suas mudanças, características e efeitos na constituição dos indivíduos, bem como a delimitação entre o normal e o anormal. Apresentaremos, logo abaixo, a análise feita por Foucault sobre o momento histórico em que se descobriu que era mais eficaz vigiar do que punir.

1.1. Poder-saber.

Entre os Séculos XVII e XIX houve uma mudança na forma de controle social (impedir roubos, sufocar agitações, coibir adultérios etc.), decorrente de eventos históricos de caráter econômico, jurídico-político e científico.

Na primeira parte de “Vigiar e Punir”, Foucault dedica sua análise ao suplício (nome genérico para as punições físicas como tortura, esquartejamento, enforcamento, mutilações etc. que eram determinadas por sentença judicial para delitos graves, típicas dos séculos XVII e XVIII).

A execução de Tiradentes é um exemplo marcante de como se punia alguém no século XVIII: enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro, a cabeça foi exposta em Vila Rica e as outras partes do corpo foram colocadas em locais públicos em outras cidades em que o alferes havia divulgado as idéias da Inconfidência.

Para usar uma expressão de Foucault, os suplícios eram “espetáculos punitivos” e continham um caráter pedagógico (a exposição das partes de Tiradentes atendia a um propósito: ensinar ao povo que qualquer forma de rebelião não seria tolerada e a punição seria igualmente severa). O que intrigou Foucault foi a supressão do suplício como forma punitiva e as novas formas de punir que surgiram no lugar das antigas. O que houve para que os formas de punição fossem modificadas? “É preciso punir de outro modo [...]. O suplício tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o ‘cruel prazer de punir’.”[1]

Acontece que a sociedade industrial exigia novas formas de exercício do poder, algo mais sutil, menos explícito do que os espetáculos sangrentos, pois do ponto de vista político os suplícios se tornaram impopulares. Surge, então, a disciplina, já adotada nos conventos, mas com contornos nitidamente capitalistas:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’.” [2]

Os processos disciplinares tinham, assim, um duplo objetivo: tornar o indivíduo dócil ao mesmo tempo em que se tornasse útil economicamente:

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).” [3]

As instituições da sociedade industrial, fábrica, escola, hospital, quartel, asilo etc. vão ser construídas a partir desses esquemas disciplinares, estabelecendo, além do enclausuramento, normas como horário para todo tipo de gesto, determinações expressas de comportamentos adequados, uniformes, uso de filas, exigência de silêncio e vigilância constante (o panóptico, como veremos logo abaixo).

Os mecanismos disciplinares estão ligados a um projeto de transformação dos indivíduos: fabricar sujeitos dóceis e úteis. Deve-se lembrar que para Foucault, “o saber designa, o processo pelo qual o sujeito do conhecimento, ao invés de ser fixo, sofre uma modificação durante o trabalho que ele efetua na atividade de conhecer.” [4]

Portanto, não é demais afirmar que o saber próprio do exercício do poder disciplinar engendra transformações no indivíduo, intimamente vinculadas ao interesse da sociedade disciplinar: ser dócil politicamente e ser útil economicamente. Um autômato que não incomoda e contribui para o acumulo de riquezas e da circulação de produtos. Qual a relação do poder-saber com a educação? Veremos no final do texto. Por hora, resta falar de um outro mecanismo disciplinar: o panoptismo.

1.2. Panoptismo.

Para o filósofo francês, um dos traços característicos da sociedade disciplinar é o que ele denominou de panoptismo. Do que se trata?

É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua, em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas.” [5]

Percebam que o controle se dá com o fim de corrigir, formar, transformar, em outras palavras: fazer com que o indivíduo internalize o saber útil para aquele modelo de sociedade: capitalista, industrial etc.

Segundo Foucault, portanto, o panoptismo possui um tríplice aspecto: [1] vigilância; [2] controle; [3] correção.

Em “Vigiar e Punir”, Foucault explica com maior detalhe o fenômeno do panoptismo. O autor inicia a sua análise com a apresentação das medidas que eram tomadas quando se declarava a peste em uma cidade: policiamento rigoroso, fechamento da cidade, proibição de sair, divisão da cidade em quarteirões (cada um com seu respectivo intendente); as ruas são controladas e vigiadas cada uma por um síndico, que determina a reclusão do morador, tranca todas as casas da rua, confere por nome cada residente todos os dias. O síndico verifica os vivos e os mortos e depois apresenta seus registros ao intendente e, este, ao prefeito da cidade.

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições.” [6]

Frebre alta, inquietude, ambulação cambaleante, confusão mental, prostação, delírio, choque e coma[7], são os sintomas da peste, doença epidêmica fatal que dizimou milhões de pessoas na Idade Média. Podemos pensar assim: os sintomas da peste são sinais da desordem. Desordem fisiológica, desordem comportamental, desordem psicológica e, considerando o alto grau de contágio da peste, desordem social. A imagem da peste evoca a necessidade da ordem, do controle e da vigilância, como disse o filósofo. Não foi à toa que as estratégias usadas para conter o avanço da peste, foram também usadas como instrumentos para combater, prevenir e impedir outros tipos de desordens sociais. Um exemplo muito recente foi o uso do toque de recolher (recurso usado nas cidades pestilentas na Idade Média), contra a população no Egito, uso este determinado pelo ditador Hosni Mubarak diante do protesto que ficou conhecido como o “Dia de Fúria” em 25 de janeiro do corrente ano. Como disse Foucault:

A peste como forma real e, ao mesmo tempo, imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político. Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos “contágios”, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem.” [8]

Para os governantes, diz o filósofo, a imagem da cidade pestilenta em controle é o sonho político por excelência. O estado de peste é o paroxismo do controle social.

A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada.” [9]

“[...] para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os governantes sonhavam com o estado de peste.” [10]

Os dispositivos disciplinares suscitados pelo medo da peste são facilmente encontrados em instituições próprias da sociedade industrial: o asilo, a escola, a fábrica, o hospital, a prisão, o quartel, a casa de correção etc.

Para Foucault, o Panóptico de J. Bentham (um projeto arquitetônico em que uma torre de vigilância fica no centro de um prédio em forma de anel que, por sua vez, é constituído de celas cujas janelas estão direcionadas tanto para o interior, quanto para o exterior do anel), realiza muito bem os mecanismos disciplinares provenientes do estado de peste. Como afirmou o filósofo: “Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar.” [11]

1.3. Escola e Saber Útil.

Talvez fosse acertado dizer que uma das grandes contribuições da análise de Foucault sobre as instituições panópticas, em especial a escola, é compreender o alcance político do que hoje nós chamamos de currículo oculto, isto é, o ambiente escolar, a atividade pedagógica contém saberes que são apropriados pelo aluno de modo indireto e não explícito. Saberes que tem a sua utilidade econômica e que contribuem para a docilidade política. Mas será que Foucault não fez meramente uma analogia da escola com a fábrica ou da escola com a prisão? Como muito bem observou Barros da Motta:

Afirmou-se que Foucault estabelece uma analogia entre a escola, a caserna, a usina, a prisão. A tese que ele defende é diversa: não há analogia, há identidade do mecanismo de poder.” [12]

A escola usa exatamente o mesmo mecanismo de poder que as outras instituições industriais: classifica, enumera, separa, examina, põe em fila, vigia, exige uniforme, toque de recolher, sinal para sair e entrar e todas as normas que Foucault demonstra ser facilmente encontradas em vários regulamentos de diferentes instituições do período em questão, de tal modo que em muitos casos não se consegue acertar se é de um quartel, uma prisão ou de uma escola.

Paulo Henrique Lima de Castro.


[1] Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 14ª. Edição, 1996; p. 69.

[2] Idem, p. 126.

[3] Idem, p. 127.

[4] Revel, Judith. Foucault: Conceitos essenciais. São Paulo: Claraluz Editora, 2005; p. 77.

[5] Foucault, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau editora. 2001, 2ª. Edição; p. 103.

[6] Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 14ª. Edição, 1996; p. 174-175.

[7] Dicionário Médico Enciclopédico Taber. São Paulo: Manole; p. 1355.

[8] Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 14ª. Edição, 1996; p. 175.

[9] Idem, p. 176.

[10] Idem.

[11] Idem, 177.

[12] Barros da Motta, Manoel. In Foucault, M. Ditos e Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003; Vol. IV; p. XXV.

domingo, 3 de julho de 2011

Desacordos filosóficos ou meramente verbais?

Desde Platão que os filósofos se interessam pela linguagem, e um dos motivos é a confusão que esse instrumento pode gerar. Pensando nisso, surge no final do século XIX uma corrente filosófica que hoje é conhecida como Filosofia Analítica, que tenta minimizar os aspectos meramente lingüísticos de um problema filosófico.

De acordo com o filósofo alemão Gottlob Frege (1848-1925)[1], mal-entendidos e erros de pensamento têm origem na imperfeição da linguagem. As palavras não são as coisas por elas enunciadas e não são, tampouco, o próprio pensamento. Para pensar e comunicar os pensamentos somos dependentes dos sinais sensíveis (fônicos ou gráficos). Veja, por exemplo, o caso da matemática: podemos expressar certo número por meio de diversos sinais, ‘7’, ‘sete’, ‘6+1’, ‘seven’, ‘VII’ etc. Os sinais mencionados anteriormente se referem a um número determinado, mas não são, eles próprios, o número que indicam.

Frege reconhece os méritos dos sinais e também o fato de serem indispensáveis. Porém, segue a reflexão do filósofo, a linguagem mostra-se deficiente quanto a prevenção de erros do pensamento. “Ela já não satisfaz à primeira exigência que lhe pode ser imposta sob este aspecto, a da univocidade.” [2] Para atingir o máximo de exatidão em determinados contextos, a linguagem deveria comportar apenas uma forma de interpretação (claro que em literatura e poesia isso seria a morte, mas não é disso que Frege está falando).

O filósofo considera adequado, diante do exposto, distinguir “três planos de diferença” entre palavras, expressões e sentenças:

[1] o plano dos sentidos:

Uma discussão pode envolver apenas o modo de apresentação de dado objeto e não o objeto em si. Trata-se de um debate que se situa no plano dos sentidos associados aos sinais. Por exemplo, imagine o seguinte diálogo:

João: o que é a alma, Maria?

Maria: do meu ponto de vista alma é espírito encarnado.

João: discordo. Acho a sua definição muito reducionista. A alma não pode se resumir ao espírito, uma vez que por ‘espírito’ devemos entender as capacidades intelectuais e funções psíquicas de uma pessoa. A alma, pelo contrário, reúne não só essa parte espiritual, mas também toda a essência da vida que é imortal e imaterial.

Maria: mas era isso o que eu tinha em mente quando disse que a alma era espírito encarnado.

João: pois é! Eu estou chamando a atenção para o seu erro em considerar a alma como espírito, que também podemos adequadamente chamar de ‘mente’. A mente é apenas uma parte da alma. Por exemplo: a consciência não faz parte do espírito e você considerou a alma como espírito. Então pergunto: a consciência não faz parte da alma?

Maria: nesse caso tenho que discordar de você. A consciência é um estado carnal, pois quando o espírito se liberta do corpo ele não tem lembranças de sua vida passada, suas experiências particularizadas, seu EU, propriamente falando.

Podemos verificar que o diálogo entre João e Maria ocorre estritamente no plano dos sentidos dos sinais. Inclusive os desacordos estão baseados na diferença de sentidos que cada um vincula as palavras chaves da discussão. Muitos erros na história da filosofia ocorreram, de acordo com o filósofo austríaco L. Wittgenstein[3], aluno de Frege, por esses tipos de confusões.

[2] o plano das representações:

Como muito bem notou Frege as representações associadas às palavras não são as próprias palavras. São imagens internas eivadas de emoções. Mas emoção é algo muito pessoal e intransferível, portanto aquilo que alguém sente por ocasião do que uma palavra pode suscitar não é relevante para o debate de certo assunto.

Uma vez que a representação é incerta e que cada um tem a sua, discutir um tema tendo em vista minhas representações certamente vai dar em confusão e desacordo. Como afirmou Frege, deve-se lembrar que a arte poética e a eloqüência procuram justamente atingir essa multiplicidade de representações com “coloridos’ e “sombreados” usados habilmente pelo poeta no uso da linguagem. “Tais coloridos e sombreados não são objetivos, mas devem ser evocados pelo próprio ouvinte ou leitor, comforme as sugestões do poeta ou do orador. Se não houvesse alguma afinidade entre as representações humanas, a arte seria certamente impossível; mas nunca se pode averiguar exatamente até onde nossas representações correspondem às intenções do poeta.” [4]

O plano da representação associada a um sinal não é objetivo e oscila demais. Se um debate tem como objetivo averiguar a questão do aborto, dependendo do sentido vinculado a palavra ‘aborto’ teremos diferentes representações associadas a estes arranjos de sinais. Por exemplo: [1] aborto = ‘matar impiedosamente um ser humano inocente e indefeso’; [2] aborto = ‘um processo cirúrgico seguro pelo qual se liberta uma mulher de um fardo indesejado’.[5]

Podemos notar que os sentidos vinculados ao sinal ‘aborto’ irão evocar diferentes representações nos interlocutores, nas palavras de Copi, terão um “impacto emocional”[6]. Se o debate persistir em torno do que as representações evocaram, certamente haverá desacordo e talvez altercações pessoais, uma vez que a representação que um indivíduo tem será diferente da do outro. Assim, Frege alerta que uma representação deve ser vinculada a quem e a que época pertence. O cuidado aqui é que não é possível estabelecer acordos sobre aquilo que é subjetivo.

[3] o plano da referência: a distinção entre sentido e referência estabelecida por Frege segue o pressuposto de que há entidades lingüísticas e entidades extralingüísticas: as palavras não são as coisas por elas enunciadas. O que Frege chamou de ‘nome próprio’ (palavra, sinal, combinação de sinais, sentenças assertivas completas) exprime seu sentido e designa um objeto determinado, isto é, algo que podemos localizar no espaço e no tempo (a referência). Todavia, o filósofo sabia que certas sentenças poderiam ter somente sentido, mas nenhuma referência. É esse o caso de sentenças que designam entidades da ficção, tais como: [1] a Cuca e o Saci estão tramando algo contra o Sítio; [2] “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca”; [3] “Robin Hood venceu Ricardo Coração de Leão”; [4] “Bob Esponja é medroso” etc. Obviamente que no caso de entidades ficcionais sabemos que os nomes não têm referência.

Mas também é esse o caso com sentenças que, de acordo com a sua estrutura gramatical, apenas aparentam designar um objeto determinado: [1] “o trabalho dignifica o homem”; [2] “a paz sofrerá danos irreversíveis com a decisão tomada pelo seu país”; [3] “a cultura proporciona aos membros de uma sociedade um guia indispensável em todos os campos da vida”; [4] “O símbolo é o universo da humanidade”; [5] “O conflito pode envolver cooperação”; [6] “O impulso de autodeterminação é transposto da luta política para a esfera do trabalho” etc.

Irving Copi, pensando na filosofia de Frege, apresentou a seguinte distinção:

[i] desacordo em convicções: quando dois ou mais indivíduos divergem sobre os fatos. Podemos, por exemplo, divergir sobre a questão do aborto em função das suas conseqüências factuais (a morte, o impacto social do aumento da natalidade, o direto de interromper ou não uma gravidez indesejada etc.). Podemos estar de acordo sobre alguns dos aspectos relacionados ao fato, mas podemos estar em desacordo com relação a outros aspectos. Ou podemos, ainda, estar em desacordo radical, isto é, divergindo em relação a todos os aspectos do fato em questão.

[ii] desacordo em atitudes: nossa posição emocional (aprovação/reprovação) diante das coisas, eventos, suas propriedades e relações podem divergir, teremos, assim, desacordos gerados pelo impacto emocional ou das palavras usadas no diálogo ou pela nossa posição diante do próprio evento. Aqui se faz adequado relembrar o exemplo que já foi dado anteriormente: (a) aborto = ‘matar impiedosamente um ser humano inocente e indefeso’ e (b) aborto = ‘um processo cirúrgico seguro pelo qual se liberta uma mulher de um fardo indesejado’. Os modos de apresentar o evento são diferentes e as palavras escolhidas para designar o aborto indicam posições emocionais muito divergentes, além de provocar emoções divergentes.

[iii] desacordos em convicções e em atitudes: pode haver tanto uma divergência sobre os fatos como também pode coincidir de ocorrer divergência emocional.

Como afirma Copi[7]: “Se estamos interessados no problema de resolver desacordos, é importante compreendermos que o acordo ou desacordo podem relacionar-se não só com os fatos, num caso determinado, mas também com atitudes diante desses fatos”. O primeiro passo para a resolução de desacordos é, como já havia recomendado o método cartesiano de filosofar, identificar com clareza e distinção os diferentes tipos de desacordos. “Se o desacordo está nas convicções, pode ser resolvido mediante uma averiguação dos fatos. [...] Neste caso, existem ao nosso alcance os métodos de investigação científica e basta aplicá-los, concretamente, à questão do fato sobre o qual há desacordo em convicções.” [8]

Quanto ao desacordo em atitudes, cabe a crítica por não-pertinência, ou seja, discutir sobre um assunto (no contexto do diálogo racional) requer resolver o objetivo do diálogo e não expressar sentimentos sobre tal ou qual tema. O diálogo racional não é ocasião terapêutica. Se o que se quer é resolver como lidamos com nossos sentimentos em relação ao mundo, então um lugar mais apropriado é o consultório de um psicólogo, psicanalista ou de um psiquiatra. Goste ou não goste, quer queira, quer não, os fatos são o que são. E é aos fatos que devemos nos ater. Qualquer tentativa de justificar uma proposição baseando-se no que sentimos deve ser encarada como irrelevante para o objetivo do diálogo racional. Estar comovido pelo zigoto, embrião ou pelo feto, não justifica a legalização ou não do aborto.

Na década de 1990 uma pichação no cais do porto do Rio de Janeiro dizia: “não sei o que é, mas odeio oligopólio”. Assim, a ignorância pode justificar a emoção, mas a emoção não pode justificar a ignorância e muito menos o saber.

Paulo Henrique Castro.


[1] Frege, G. Sobre a Justificação Científica de uma Conceitografia. São Paulo: Abril Cultural, col. Os Pensadores, 1980.

[2] Idem, p. 192.

[3] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: EDUSP, 1994.

[4] Frege, op. Cit. P. 66.

[5] Exemplos tirados de Branquinho, J. Enciclopédia de Termos Lógicos-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes. 2004.

[6] Cf. Copi, I. Introdução à Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978

[7] Copi, p. 63.

[8] Copi, p. 64.