domingo, 31 de julho de 2011

Quase Humanos.

“Naquela época sabíamos tão pouco sobre essas criaturas reservadas que tudo parecia novo. Aqueles que antes julgávamos vegetarianos pacíficos mostraram ser caçadores poderosos e inteligentes, com personalidade e emoções complexas, capazes de comunicação, altruísmo, alianças políticas, infanticídio, guerra e feitura de utensílios – esta última habilidade sendo a que distinguia os humanos do resto do reino animal.”

                                                                                                                 Jane Goodall

O ano é 1986. A Sociedade de Ciências de Chicago realiza a primeira conferência internacional para divulgar estudos feitos com chimpanzés. O encontro científico com diversos estudiosos foi motivado, principalmente, pela publicação dos resultados impressionantes das pesquisas realizadas no Parque Nacional de Gombe, a partir da década de 1960, por uma das mais brilhantes cientistas do século XX: Jane Goodall. O impacto das descobertas foi tão grande que ocorreram mais duas conferências, uma em 1991 e a última em 2007[1]. Por que estudar chimpanzés?

Em primeiro lugar, porque são animais. Como disse Duane Rumbaugh e David Washburn, pesquisadores do Centro de Pesquisas sobre Linguagem, do departamento de psicologia e biologia da Georgia State University:

“Há, no mundo de hoje, um infeliz mito de que o comportamento animal é irrelevante para entender o comportamento dos humanos. Este mito está baseado em uma suposição enganosa de que animais são animais e humanos não são animais.” [2]

Em segundo lugar, hoje sabemos que mais de 98.7% da seqüência do DNA do chimpanzé é a mesma que a dos humanos[3]. O comportamento também é espantosamente semelhante[4]: os chimpanzés usam e fabricam instrumentos[5] (no Senegal eles escolhem galhos específicos e afiam as extremidades com os dentes para caçar gálagos, empunhando os galhos como se fossem lanças, uma descoberta feita por Jill Pruetz que assombrou o mundo[6]; em Uganda usam folhas para beber água, gravetos para extrair cupins, na Tanzânia usam pedra e apoio para quebrar nozes etc.); são empáticos e solidários (quando os mais velhos não conseguem subir nas árvores frutíferas, os jovens pegam as frutas e entregam para os idosos[7]); territoriais e marcadamente agressivos: há registros de ataques de chimpanzés matando humanos em todo o mundo, como também ataques contra os membros da própria espécie de forma extremamente brutal[8], incluindo a agressão letal para com os membros de bandos vizinhos em estado selvagem, fazendo patrulha nos limites do território[9]; são capazes de comunicação simbólica[10] e possuem uma capacidade de resolver problemas (inteligência) só superada pelos humanos[11]; das capacidades cognitivas já medidas, a memória do chimpanzé é provavelmente maior do que a do homem (como relata um estudo usando numerais em uma tela de computador, que ficou famoso[12]); são animais gregários e, assim, as relações sociais são inevitáveis, articuladas e complexas (estudos meticulosos demonstram que eles fazem alianças políticas e se subdividem em grupos menores, disputando ou apoiando a posição de macho alfa em uma sociedade rigidamente hierarquizada[13]); possuem uma variedade incrível de vocalizações diferentes, reconhecíveis por nomes técnicos entre os especialistas, que servem para a comunicação entre os chimpanzés[14], bem como uma extensa gama de expressões faciais e gestos, o que permite interações sociais ricas[15]; comem e caçam mais de 24 espécies de vertebrados, usando estratégias de caça altamente sofisticadas (principalmente em relação aos macacos colobos[16], animais difíceis de serem caçados em florestas densas); cometem infanticídios[17], e há indícios de que tenham consciência a partir do auto-reconhecimento em superfícies espelhadas (lagos, poças d’água, espelhos em laboratórios etc.)[18].

Mais ainda: em 1999 foi publicado um artigo na conceituada revista Nature[19], elaborado pelos nove mais importantes primatologistas de renomadas universidades, responsáveis por sítios naturais na África, local em que o chimpanzé é encontrado e estudado. São seis vastos campos florestais em que esse animal é investigado por mais de 50 anos, em cada um (Bossou, em Guiné; Kibale e Budongo, na Uganda; Mahale e Gombe, na Tanzânia; Tai, na Costa do Marfin). O objetivo do artigo era apresentar uma síntese sistemática do repertório de variação comportamental dos chimpanzés observados naqueles sítios. Os cientistas catalogaram 65 comportamentos que são encontrados em um lugar, mas não em outro. A descoberta pode parecer inofensiva. Entretanto, cabe ressaltar que o grande pilar que sustenta a afirmação de que o mundo humano é apartado do mundo animal, é a tese de que o comportamento instintivo é padrão para todos os membros de uma única espécie. Sendo assim, segue o raciocínio, qualquer variação comportamental será testemunhada em qualquer indivíduo da mesma espécie. É exatamente o contrário disso que os pesquisadores demonstraram no artigo síntese publicado na Nature. Há, por exemplo, comportamentos que são periodicamente observados nos chimpanzés em Budongo, mas não naqueles que vivem em Kibale (vastos territórios florestais no mesmo país, Uganda).

Encontrado de modo descontínuo na África Equatorial, o chimpanzé é um animal que pertence ao gênero Pan, da ordem dos primatas, de nome científico Pan troglodytes. Também é conhecido como chimpanzé comum, para distingui-lo de seu parente próximo e do mesmo gênero, o bonobo (Pan paniscus). O chimpanzé foi descrito pela primeira vez em 1799, pelo naturalista alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), que deu ao animal o nome científico. O chimpanzé já era conhecido por relatos de viajantes, permeados por visões sobrenaturais e distorcidas. Atualmente considera-se a seguinte classificação: chimpanzés que vivem no oeste da África (Senegal, Mali, Guiné e Costa do Marfim) são da subespécie Pan troglodytes verus; chimpanzés que vivem na África central (Congo, República Democrática do Congo e Uganda) P. t. troglodytes; e os que vivem no leste P. t. schweinfurthii (Tanzânia).[20]

Desde que Blumenbach descreveu o chimpanzé, a idéia que prevaleceu sobre este primata foi a de um tipo de caricatura do ser humano, daí o chimpanzé ser uma das mais cômicas atrações de circos e zoológicos espalhados pelo mundo. Ainda hoje essa imagem deturpada vigora no imaginário social. No Rio de Janeiro, o falecido “macaco Tião” era uma das atrações mais famosas e divertidas (é sempre bom lembrar que um chimpanzé não é um “macaco”, como já expliquei em outro texto neste blog). O Ocidente não levou muito a sério um animal que era tão semelhante ao ser humano. Ao mesmo tempo em que ele nos faz rir, a imagem e o comportamento de um chimpanzé nos assombram, feito o que sentimos em uma montanha russa.

A obra em que Jane Goodall relata o seu encontro e estudos com a comunidade de chimpanzés do Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia, às margens do grande lago Tanganyika, chama-se In The Shadow of Man (À Sombra do Homem). Título sugestivo. Na introdução do livro o já falecido biólogo de Harvard, Stephen Jay Gould, corrigiu em um tom dramático: “Os chimpanzés não são tanto a sombra do homem, mas sim o nosso espelho.” [21]

Os estudos com chimpanzés se dividem em dois grupos: (1) Estudos com primatas selvagens e (2) os estudos com primatas em cativeiro. Os estudos com chimpanzés cativos, por sua vez, se dividem em três grandes categorias: [i] Observação rigorosa de grupos naturais de chimpanzés em santuários (locais específicos criados para receber os cativos) e em zoológicos; [ii] Testes psicológicos em laboratórios montados em universidades; [iii] Pesquisas de aquisição de linguagem.

Pioneiros nas pesquisas com chimpanzés cativos foram: o americano Robert Yerkes, a russa Ladygina-Kots e o alemão Wolfgang Kohler, todos nas primeiras três décadas do século XX.

De acordo com Jane Goodall[22], a primeira pessoa que estudou chimpanzés selvagens nas selvas africanas foi R. L. Garner em 1890. Garner construiu uma jaula no meio da floresta, mas não para capturar chimpanzés. O estudioso fez a jaula para servir de abrigo para ele mesmo observar os animais. Depois, as pesquisas com chimpanzés selvagens foram praticamente esquecidas, com a honrosa menção de Henry Nissen em 1930. As dificuldades de se estabelecer uma base de pesquisas já eram consideráveis por motivos geográficos e aumentaram com a conhecida instabilidade política dos países africanos, gerada pelo imperialismo europeu.

Em 1960, Adriaan Kortlandt retoma as pesquisas de campo no antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo. E no mesmo ano, uma jovem de 18 anos, enviada pelo famoso antropólogo Louis Leakey, começa uma investigação surpreendente e detalhada sobre os chimpanzés que habitavam as florestas do que hoje é o Parque Nacional de Gombe: Jane Goodall.

A Primatologia dos Chimpanzés se tornou um dos grandes ramos das pesquisas biológicas, antropológicas, psicológicas e sociais, com implicações filosóficas fascinantes para diversas questões, tais como: o livre-arbítrio, a relação da mente com o corpo, o problema da cultura, o problema do mal, as raízes das nossas decisões, da solidariedade e da violência entre outros temas. Porém, acima de qualquer questão, os estudos com chimpanzés lançam luz para a indagação maior: o que nos torna humanos?

Paulo Henrique Castro ®.


[1] Londorf, E. V. The Mind of the Chimpanzee. Chicago: University of Chicago Press. 2010.

[2]There is an unfortunate myth in the word today that the behavior of animals is irrelevant to understanding the behavior of humans. This myth is predicated on the mistaken assumption that animals are animals and that humans are not animals.” Washburn, D. A. & Rumbaugh, D. Intelligence of Apes and Other Rational Beings. New Haven: Yale University Press. 2003.

[3] Matsuzawa, T. Sociocognitive Development in Chimpanzees: A Synthesis of Laboratory Work and Fieldwork. In Matsuzawa T.; Tomonaga, M.; Tanaka, M. (Eds.) Cognitive Development in Chimpanzees. Tokyo: Springer-Verlag, 2006.

[4] “Semelhante” não é sinônimo de “igual”. A crítica mais famosa sobre estudos com animais é a alegação de que tais estudos não passam de antropomorfismo (a idéia de que o ser humano atribui qualidades próprias aos fenômenos da natureza). A réplica a essa objeção é extremamente poderosa e diz respeito à natureza do argumento analógico e vários mal-entendidos sobre a especificidade lógica deste tipo de argumentação. Em outra postagem abordaremos essa problemática. Para conhecer a crítica séria ao argumento por analogia, confira o respeitado artigo de Povinelli, D. J. & Giambrone, S. Inferring Other Minds: Failure of the Argument by Analogy. Philosophical Topics. Vol. 27, No. 1, spring 1999.

[5] McGrew, W. C. Chimpanzee Material Culture. Cambridge: Cambridge University Press. 1996.

[6] Pruetz, J. D. & Bertolani, P. Savanna Chimpanzees, Pan trogodytes verus, Hunt with Tools. Current Biology. Vol. 17, 412-417. 2007.

[7] Wall, F. B. de. Good Natured: the origins of right and wrong in humans and other animals. Cambridge: Harvard University Press. 1997.

[8] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996.

[9] Watts, D. at all. Lethal Intergroup Agression by Chimpanzees in Kibale National Park, Uganda. American Journal of Primatology. New Haven: Yale University Press. 2006, n 68: 161-180. Cf. também Watts, D. P. & Mitani, J. C. Boundary Patrols and intergroup encounters in wild chimpanzees. Bahaviour 138, 299-327.

[10] Savage-Rumbaugh, S. Apes, Language, and the Human Mind. New York: Oxford University Press. 2001.

[11] Washburn, D. A. & Rumbaugh, D. Intelligence of Apes and Other Rational Beings. New Haven: Yale University Press. 2003.

[12] Inoue, S. & Matsuzawa. Working memory of numerals in chimpanzee. Current Biology. Vol 17, n 23; 1004-1005.

[13] Wall, F. B. de. Chimpanzee Politics. Baltimore: The Johns Hopkins University Press. 2007, 25th anniversary ed.

[14] Mitani, J. C.; Murdoch, M. E.; Hunley, K. Geographic Variation in the Calls of Wild Chimpanzee: A Reassessment. American Journal of Primatology 47: 133-151. 1999.

[15] Waal, F. B. de. Darwin’s Legacy and the Study of Primate Visual Communication. Annals of New York Academy of Science. 1000: 7-31. 2003.

[16] Stanford, C. B. Chimpanzee and Red Colobus. The Ecology of Predator and Prey. Cambridge: Harvard University Press. 1998.

[17] Reynolds, V. The Chimpanzees of the Budongo Forest. New York: Oxford University Press. 2005.

[18] Waal, F. B. de. The Monkey in the Mirror: Hardly a Stranger. The National Academy of Science of the USA. N. 32, vol. 102. 11140-11147. PNAS.

[19] Whiten, A; Goodall, J.; McGrew, W. C.; Nishida, T.; Reynolds, V.; Sugiyama, Y.; Tutin, C. E. G.; Wrangham, R. W.; Boesch, C. Cultures in Chimpanzees. Nature, vol. 399; 17 june 1999. P. 682-684.

[20] Teleki, G. in Wrangham, R. Chimpanzee Cultures. Chicago: Chicago Academy of Sciences. 2001.

[21] Goodall, J. In The Shadow of Man. New York: Mariner Book. 1988, edição revista. P. VII.

[22] Goodall, J. in Wrangham, R. Chimpanzee Cultures. Chicago: Chicago Academy of Sciences. 2001.

3 comentários:

REGINA disse...

* Meu amor, parabéns pelo texto, mais uma vez vc foi formidável...com certeza "Quase Humanos" ...desejo e torço muito para que esse estudo cresça cada dia mais e que logo vc publique um livro! Te amo.Rezinha

Unknown disse...

Obrigado, meu amor!! Adorei o comentário! Beijos!!!

Carlos Zeitoune disse...

Bravo, PH, a cada vez que leio esse texto sou surpreendido por informações que me passaram despercebidas ou que não pude alcançar. Textos bem escritos e densos devem ser assim, devires, autopoiéticos, vivos!! Parabéns 😤, meu caro amigo.