domingo, 17 de julho de 2011

Filosofia da Religião I: O Problema lógico do Mal.

 
Em filosofia chama-se “problema lógico do mal” a incompatibilidade lógica entre a existência de eventos cruéis com a existência de um Deus onipotente, onisciente e bondoso. As palavras de Law[1] servem para ilustrar a questão:
Deus é tipicamente descrito como perfeitamente bom, onipotente e onisciente. Se isso for verdade, podemos supor que Deus não só quer eliminar o mal, como é capaz disso e sabe como fazê-lo. Mas isso suscita a pergunta: então, por que o mal existe? Seria porque Deus não existe?”
Neste contexto, distinguem-se dois tipos de Mal:
[1] O Mal Moral: atos humanos que não consideram o sofrimento alheio, como por exemplo torturar uma criança arrancando-lhe as unhas;
[2] O Mal Natural: eventos que provocam sofrimentos alheios e que não são decorrentes da ação do homem, como os terremotos (efeito dos movimentos das placas tectônicas), e a predação mútua entre os animais.
A resposta para o mal moral está na ponta da língua da maioria dos que foram criados em culturas influenciadas pela tradição judaico-cristã: o livre-arbítrio é a causa do sofrimento alheio. Embora óbvia esta resposta é extremamente problemática, como veremos em outra publicação. O mal natural é ainda mais ilógico, de acordo com diversos filósofos, entre eles David Hume (1711-1776) [2].
Os defensores da compatibilidade entre a existência de Deus e a existência do mal, apresentam o seguinte argumento: o mal natural existe para aprendermos o bem maior. Se não fossem os desastres naturais, os acidentes e as doenças, não poderíamos aprender o valor do amor. Só podemos suportar a dor, porque sentimos dor. Assim, perder o que amamos nos ensina o valor do bem. O mal, desse modo, é um evento necessário e pedagógico, que Deus não quer eliminar para que saibamos reconhecer e apreciar o bem.
O primeiro problema com esse argumento, segundo Law, é a intensidade do mal natural. Catástrofes, como inundações, irrupções vulcânicas, secas, peste, tsunamis, parecem ocorrer em escala muito superior ao que precisaríamos para aprender a amar. Quando examinamos as evidências do mal natural no mundo, notamos que a quantidade é excessiva e a distribuição geográfica é desproporcional. Para ser mais justo com o restante do mundo, deveriam existir terremotos e furacões devastadores no Brasil, no Congo, na Inglaterra, na Alemanha, no Botsuana e na Bolívia, entre outros locais. Os terremotos não escolhem vítimas e são incrivelmente destruidores, tanto para humanos, quanto para os demais animais. Parece plausível aceitar que Deus desejasse eliminar “o mal desnecessário”, ainda que quisesse manter algum mal para fins pedagógicos e também tivesse distribuído o mal natural pelo mundo de forma equitativa.
O problema das evidências do mal afirma que a quantidade de mal e sua distribuição no mundo são incompatíveis com a existência de um Deus bom, onipotente e onisciente. [...] É claro que o mal não está igualmente distribuído entre pessoas e animais. Alguns sofrem mais que outros, e os inocentes podem sofrer horrivelmente. P.ex., crianças podem morrer de doenças terríveis, e animais podem sofrer em inundações e secas. Isso parece ser exatamente o que um Deus onipotente, onisciente e bom desejaria erradicar. Assim, mesmo que o mal seja necessário para um bem maior, seria tanto mal necessário?” [3]
O outro problema com este argumento é que ele não explica outra instância do mal natural: o sofrimento que ocorre entre animais não-humanos.
Todos os animais são dotados de sistema nervoso que, entre tantas funções, é responsável por captar estímulos do ambiente. Os receptores sensorias responsáveis para detectar qualquer forma de energia (como a energia térmica liberada por uma barra de ferro quente), é constituído por células altamente especializadas. Assim, se você sente dor ao encostar o seu rosto em uma barra de ferro que esteja quente, isso se deve ao fato de que o seu sistema nervoso recebeu e processou uma dose imensa de energia térmica. A mesma coisa acontece com uma vaca que tem o seu dorso marcado por ferro quente: ela sente dor. Como sabemos? Porque a vaca (como qualquer outro animal) é constituída com as mesmas células termorreceptoras especializadas em captar energia térmica, como nós. Baseado nisso, vejamos um exemplo peculiar e voltaremos para a questão do mal natural.
Existe um animal chamado “vespa-escavadora” (amófila-peluda da família Sphecidae). Como a maioria das vespas, ela é uma parasita. Sua vítima é uma lagarta-cinzenta, que possui o corpo segmentado por anéis. Todos os anéis são constituídos por centros nervosos, os gânglios. Isto significa que se você encostar com um dedo em um dos segmentos da lagarta-cinzenta ela se retrai, pois possui células especializadas em energia mecânica (como nós e aquela vaca do parágrafo anterior). Pois bem. A vespa-escavadora perfura cada segmento anelado da lagarta, gânglio por gânglio, não para matá-la, mas, sim, para paralisá-la. Em seguida, a vespa deposita as suas larvas, que comem a carne viva da lagarta. Consegue imaginar a dor que a lagarta sente? Se o argumento pedagógico tem algum valor quando se trata de humanos, certamente que ele falha ao explicar porque um animal age produzindo tamanho estrago no outro (e evidentemente que ninguém vai apelar para o livre-arbítrio no caso das vespas). Quando se trata do sofrimento dos animais gerado naturalmente, a existência do mal se torna ainda mais incompatível com a existência de um Deus bondoso, todo-poderoso e conhecedor de tudo.
Pensando nisso, Darwin[4] disse: “Não consigo me convencer de que um Deus onipotente e benévolo tenha deliberadamente criado os Ichneumonidae com a intenção expressa de que estes se alimentassem dos corpos vivos das lagartas.”
Em lógica sabe-se que não é possível afirmar e nem negar a existência de algo se baseando na ignorância. Por exemplo, não podemos afirmar que nunca existiu um dinossauro de duas cabeças, apelando para a premissa de que nunca vimos um fóssil de tal animal. Por que não? Ora, porque o fato de nunca termos experimentado a visão de um fóssil de dinossauro de duas cabeças, não esgota a possibilidade de amanhã ser desenterrado um. Sendo assim, afirmar que não existem dinossauros de duas cabeças baseado na nossa ignorância (desconhecimento) é um conhecido erro lógico denominado pelos filósofos de Argumentum ad Ignorantiam. É improvável, mas ainda assim possível[5]. O mesmo vale para outras afirmações com a mesma base: a ignorância.
Esse alerta é importante, porque alguns tentam contra-argumentar, defendendo a tese da compatibilidade do mal natural, afirmando que ignoramos as verdadeiras intenções de Deus. Qualquer tentativa de tornar a existência do mal natural compatível com a existência de um Deus bom, onipotente e onisciente, recorrendo ao bordão “nós ignoramos os desígnios de Deus”, mantém o problema do mal em aberto.
Paulo Henrique Castro.
PS: O exemplo da vespa-escavadora é de Dawkins.

[1] Law, S. Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2008, p. 153.
[2] Hume, D. Obras Sobre Religião. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2005.
[3] Idem nota 1, p. 154.
[4] Dawkins, R. O Capelão do Diabo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[5] Foi justamente por esse detalhe técnico de lógica elementar, que Richard Dawkins preferiu apresentar uma argumentação poderosa contra a existência de Deus, construída a partir de raciocínios probabilísticos. Cf. Deus. Um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

4 comentários:

REGINA disse...

* Eu te amo *

Rota Romântica-Valnora disse...

Amigo Paulo Henrique,
Continuo a acompanhar suas publicações, pois num mundo pautado por dogmas, religiosos ou não, é interessante e necessário ter à mão algumas fontes de sabedoria. E o seu Blog é uma delas.
Desta forma, não me sinto tão isolado, tão "estranho no ninho".
Um grande abraço,
Valmir Barbosa

Rota Romântica-Valnora disse...

Amigo Paulo Henrique,
Continuo a acompanhar o seu trabalho, pois num mundo dominado por dogmas, religiosos ou não, é interessante e necessário ter à mão algumas fontes de sabedoria. E o seu Blog é uma delas.
Um grande abraço,
Valmir Barbosa

Unknown disse...

Obrigado Valmir! É sempre um orgulho saber que você acompanha os textos. Muito obrigado. Aproveito para te parabenizar, mais uma vez, pela posição na FLIP. Grande abraço fraterno, PH.