domingo, 3 de julho de 2011

Desacordos filosóficos ou meramente verbais?

Desde Platão que os filósofos se interessam pela linguagem, e um dos motivos é a confusão que esse instrumento pode gerar. Pensando nisso, surge no final do século XIX uma corrente filosófica que hoje é conhecida como Filosofia Analítica, que tenta minimizar os aspectos meramente lingüísticos de um problema filosófico.

De acordo com o filósofo alemão Gottlob Frege (1848-1925)[1], mal-entendidos e erros de pensamento têm origem na imperfeição da linguagem. As palavras não são as coisas por elas enunciadas e não são, tampouco, o próprio pensamento. Para pensar e comunicar os pensamentos somos dependentes dos sinais sensíveis (fônicos ou gráficos). Veja, por exemplo, o caso da matemática: podemos expressar certo número por meio de diversos sinais, ‘7’, ‘sete’, ‘6+1’, ‘seven’, ‘VII’ etc. Os sinais mencionados anteriormente se referem a um número determinado, mas não são, eles próprios, o número que indicam.

Frege reconhece os méritos dos sinais e também o fato de serem indispensáveis. Porém, segue a reflexão do filósofo, a linguagem mostra-se deficiente quanto a prevenção de erros do pensamento. “Ela já não satisfaz à primeira exigência que lhe pode ser imposta sob este aspecto, a da univocidade.” [2] Para atingir o máximo de exatidão em determinados contextos, a linguagem deveria comportar apenas uma forma de interpretação (claro que em literatura e poesia isso seria a morte, mas não é disso que Frege está falando).

O filósofo considera adequado, diante do exposto, distinguir “três planos de diferença” entre palavras, expressões e sentenças:

[1] o plano dos sentidos:

Uma discussão pode envolver apenas o modo de apresentação de dado objeto e não o objeto em si. Trata-se de um debate que se situa no plano dos sentidos associados aos sinais. Por exemplo, imagine o seguinte diálogo:

João: o que é a alma, Maria?

Maria: do meu ponto de vista alma é espírito encarnado.

João: discordo. Acho a sua definição muito reducionista. A alma não pode se resumir ao espírito, uma vez que por ‘espírito’ devemos entender as capacidades intelectuais e funções psíquicas de uma pessoa. A alma, pelo contrário, reúne não só essa parte espiritual, mas também toda a essência da vida que é imortal e imaterial.

Maria: mas era isso o que eu tinha em mente quando disse que a alma era espírito encarnado.

João: pois é! Eu estou chamando a atenção para o seu erro em considerar a alma como espírito, que também podemos adequadamente chamar de ‘mente’. A mente é apenas uma parte da alma. Por exemplo: a consciência não faz parte do espírito e você considerou a alma como espírito. Então pergunto: a consciência não faz parte da alma?

Maria: nesse caso tenho que discordar de você. A consciência é um estado carnal, pois quando o espírito se liberta do corpo ele não tem lembranças de sua vida passada, suas experiências particularizadas, seu EU, propriamente falando.

Podemos verificar que o diálogo entre João e Maria ocorre estritamente no plano dos sentidos dos sinais. Inclusive os desacordos estão baseados na diferença de sentidos que cada um vincula as palavras chaves da discussão. Muitos erros na história da filosofia ocorreram, de acordo com o filósofo austríaco L. Wittgenstein[3], aluno de Frege, por esses tipos de confusões.

[2] o plano das representações:

Como muito bem notou Frege as representações associadas às palavras não são as próprias palavras. São imagens internas eivadas de emoções. Mas emoção é algo muito pessoal e intransferível, portanto aquilo que alguém sente por ocasião do que uma palavra pode suscitar não é relevante para o debate de certo assunto.

Uma vez que a representação é incerta e que cada um tem a sua, discutir um tema tendo em vista minhas representações certamente vai dar em confusão e desacordo. Como afirmou Frege, deve-se lembrar que a arte poética e a eloqüência procuram justamente atingir essa multiplicidade de representações com “coloridos’ e “sombreados” usados habilmente pelo poeta no uso da linguagem. “Tais coloridos e sombreados não são objetivos, mas devem ser evocados pelo próprio ouvinte ou leitor, comforme as sugestões do poeta ou do orador. Se não houvesse alguma afinidade entre as representações humanas, a arte seria certamente impossível; mas nunca se pode averiguar exatamente até onde nossas representações correspondem às intenções do poeta.” [4]

O plano da representação associada a um sinal não é objetivo e oscila demais. Se um debate tem como objetivo averiguar a questão do aborto, dependendo do sentido vinculado a palavra ‘aborto’ teremos diferentes representações associadas a estes arranjos de sinais. Por exemplo: [1] aborto = ‘matar impiedosamente um ser humano inocente e indefeso’; [2] aborto = ‘um processo cirúrgico seguro pelo qual se liberta uma mulher de um fardo indesejado’.[5]

Podemos notar que os sentidos vinculados ao sinal ‘aborto’ irão evocar diferentes representações nos interlocutores, nas palavras de Copi, terão um “impacto emocional”[6]. Se o debate persistir em torno do que as representações evocaram, certamente haverá desacordo e talvez altercações pessoais, uma vez que a representação que um indivíduo tem será diferente da do outro. Assim, Frege alerta que uma representação deve ser vinculada a quem e a que época pertence. O cuidado aqui é que não é possível estabelecer acordos sobre aquilo que é subjetivo.

[3] o plano da referência: a distinção entre sentido e referência estabelecida por Frege segue o pressuposto de que há entidades lingüísticas e entidades extralingüísticas: as palavras não são as coisas por elas enunciadas. O que Frege chamou de ‘nome próprio’ (palavra, sinal, combinação de sinais, sentenças assertivas completas) exprime seu sentido e designa um objeto determinado, isto é, algo que podemos localizar no espaço e no tempo (a referência). Todavia, o filósofo sabia que certas sentenças poderiam ter somente sentido, mas nenhuma referência. É esse o caso de sentenças que designam entidades da ficção, tais como: [1] a Cuca e o Saci estão tramando algo contra o Sítio; [2] “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca”; [3] “Robin Hood venceu Ricardo Coração de Leão”; [4] “Bob Esponja é medroso” etc. Obviamente que no caso de entidades ficcionais sabemos que os nomes não têm referência.

Mas também é esse o caso com sentenças que, de acordo com a sua estrutura gramatical, apenas aparentam designar um objeto determinado: [1] “o trabalho dignifica o homem”; [2] “a paz sofrerá danos irreversíveis com a decisão tomada pelo seu país”; [3] “a cultura proporciona aos membros de uma sociedade um guia indispensável em todos os campos da vida”; [4] “O símbolo é o universo da humanidade”; [5] “O conflito pode envolver cooperação”; [6] “O impulso de autodeterminação é transposto da luta política para a esfera do trabalho” etc.

Irving Copi, pensando na filosofia de Frege, apresentou a seguinte distinção:

[i] desacordo em convicções: quando dois ou mais indivíduos divergem sobre os fatos. Podemos, por exemplo, divergir sobre a questão do aborto em função das suas conseqüências factuais (a morte, o impacto social do aumento da natalidade, o direto de interromper ou não uma gravidez indesejada etc.). Podemos estar de acordo sobre alguns dos aspectos relacionados ao fato, mas podemos estar em desacordo com relação a outros aspectos. Ou podemos, ainda, estar em desacordo radical, isto é, divergindo em relação a todos os aspectos do fato em questão.

[ii] desacordo em atitudes: nossa posição emocional (aprovação/reprovação) diante das coisas, eventos, suas propriedades e relações podem divergir, teremos, assim, desacordos gerados pelo impacto emocional ou das palavras usadas no diálogo ou pela nossa posição diante do próprio evento. Aqui se faz adequado relembrar o exemplo que já foi dado anteriormente: (a) aborto = ‘matar impiedosamente um ser humano inocente e indefeso’ e (b) aborto = ‘um processo cirúrgico seguro pelo qual se liberta uma mulher de um fardo indesejado’. Os modos de apresentar o evento são diferentes e as palavras escolhidas para designar o aborto indicam posições emocionais muito divergentes, além de provocar emoções divergentes.

[iii] desacordos em convicções e em atitudes: pode haver tanto uma divergência sobre os fatos como também pode coincidir de ocorrer divergência emocional.

Como afirma Copi[7]: “Se estamos interessados no problema de resolver desacordos, é importante compreendermos que o acordo ou desacordo podem relacionar-se não só com os fatos, num caso determinado, mas também com atitudes diante desses fatos”. O primeiro passo para a resolução de desacordos é, como já havia recomendado o método cartesiano de filosofar, identificar com clareza e distinção os diferentes tipos de desacordos. “Se o desacordo está nas convicções, pode ser resolvido mediante uma averiguação dos fatos. [...] Neste caso, existem ao nosso alcance os métodos de investigação científica e basta aplicá-los, concretamente, à questão do fato sobre o qual há desacordo em convicções.” [8]

Quanto ao desacordo em atitudes, cabe a crítica por não-pertinência, ou seja, discutir sobre um assunto (no contexto do diálogo racional) requer resolver o objetivo do diálogo e não expressar sentimentos sobre tal ou qual tema. O diálogo racional não é ocasião terapêutica. Se o que se quer é resolver como lidamos com nossos sentimentos em relação ao mundo, então um lugar mais apropriado é o consultório de um psicólogo, psicanalista ou de um psiquiatra. Goste ou não goste, quer queira, quer não, os fatos são o que são. E é aos fatos que devemos nos ater. Qualquer tentativa de justificar uma proposição baseando-se no que sentimos deve ser encarada como irrelevante para o objetivo do diálogo racional. Estar comovido pelo zigoto, embrião ou pelo feto, não justifica a legalização ou não do aborto.

Na década de 1990 uma pichação no cais do porto do Rio de Janeiro dizia: “não sei o que é, mas odeio oligopólio”. Assim, a ignorância pode justificar a emoção, mas a emoção não pode justificar a ignorância e muito menos o saber.

Paulo Henrique Castro.


[1] Frege, G. Sobre a Justificação Científica de uma Conceitografia. São Paulo: Abril Cultural, col. Os Pensadores, 1980.

[2] Idem, p. 192.

[3] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: EDUSP, 1994.

[4] Frege, op. Cit. P. 66.

[5] Exemplos tirados de Branquinho, J. Enciclopédia de Termos Lógicos-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes. 2004.

[6] Cf. Copi, I. Introdução à Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978

[7] Copi, p. 63.

[8] Copi, p. 64.

2 comentários:

REGINA disse...

Ótimo texto amor!

Unknown disse...

Obrigado, meu amor!