domingo, 29 de maio de 2011

Elogio a Dostoiévski.

§ 1. Restavam três dias para o Natal de 1849, em São Petersburgo. Após um ano e oito meses preso, o condenado à morte é finalmente levado ao pelotão de fuzilamento. O capuz foi colocado na cabeça do infeliz, as armas foram engatilhadas e o silêncio fúnebre foi interrompido, não pelo barulho dos fuzis, mas pela leitura surpreendente da revogação da pena de morte do prisioneiro, convertendo-a em quatro anos de trabalhos forçados. O sentenciado era Fiódor Dostoiévski (1821-1881), um dos mais importantes escritores da literatura mundial. Que tipo de marcas psicológicas deve ficar em alguém que passa pela experiência de sentir o hálito da morte?
§ 2. O que sempre me encantou em Dostoiévski é a ligação do escritor russo com a experiência do limite. Tudo indica que ter estado às portas da morte, tenha feito o autor de “Recordações da Casa dos Mortos” voltar-se para a condição precária da existência humana. Todavia, o limite tematizado por Dostoiévski não é entre a vida e a morte, como poderíamos apressadamente supor. O limite do qual o mestre fala é aquele que separa a vida medíocre (ordinária), da vida incomum (extraordinária).
§ 3. É verdade, o tema não é novo. A Ilíada e a Odisséia, obras gregas atribuídas a Homero, indicam o valor de uma vida incomum. Havia até um dito popular que expressava: “faça sua a beleza” (ποιέ σέ καλον), isto é, só uma vida considerada bela em feitos e realizações poderia ser valiosa. Era com esse lema que os guerreiros gregos se preparavam para a guerra: poliam os escudos, arrumavam os cabelos, limpavam as espadas e escolhiam as melhores sandálias. Pra quê? Um guerreiro homérico desejava que seus feitos em guerra fossem cantados (também contados) e que seus atos de bravura fossem apreciados como realizações extraordinárias, inimagináveis e, portanto, belas. Assim, não era a morte que interessava, mas aquilo que era feito em vida. (Deixo para outra publicação o debate sobre as condições sociais para realizar belos feitos, já que os guerreiros gregos eram todos aristocratas com escravos).
§ 4. Dostoiévski contou a ousadia de pessoas medíocres (“medíocre” quer dizer “na média”) que foram além dos limites impostos pelo rebanho, rompendo com os pactos que reduzem uma pessoa à um número na multidão. Somos o que os outros querem que sejamos (eis o limite do permitido). Somos o que a tradição manda: uma ovelha tem que ser o que as outras são e deve seguir o que o pastor manda. O limite do permitido é ser mais um número em uma lápide (com muita sorte você ganha uma frase bacana embaixo do número). Mesmo os “esmagados pela pobreza” (a expressão é do escritor russo) podem romper com os grilhões que nos mantém como mais uma cabeça na manada (a regra no rebanho é assim: sem exercitar o potencial criativo, crítico e analítico).
§ 5. Em “Crime e Castigo” há uma passagem muito emblemática: o absorto personagem Raskólnikov caminhava pela rua. Suas roupas eram comuns, isto é, não era diferente do que a maioria usava. Porém, o rapaz estava com um velho e surrado chapéu Zimmerman, e isso já não era comum. Era, digamos... estranho. Não demorou e o adorno diferente de Raskólnikov foi notado. Um bêbado começou a rir e Raskólnikov pensou: “Eu bem que sabia! – resmungava perturbado –, eu bem que sabia! E isso é o mais detestável! Vem uma bobagem qualquer, a coisa mais vulgar do mundo, e pode estragar uma idéia! É, um chapéu que chama atenção demais... Ridículo, e é por isso que chama atenção...” (Lembrei desta passagem porque não tem muito tempo e eu estava caminhando em uma rua de uma cidade pequena, indo ao dentista, sol forte e eu com meu panamá na cabeça. Notei, surpreso, que as pessoas me olhavam naquela tarde como se eu estivesse com uma melancia na cabeça ou fosse um ser estranho, meio extraterrestre, mas era apenas um chapéu. Como disse o velho mestre russo: “Ora, ninguém usa isto, de longe se nota, se grava...” Tive o meu momento Raskólnikov).
§ 6. “No caso aqui é preciso passar o quanto antes despercebido...” Em uma palavra é preciso ser “normal”. Dostoiévski antecipou em muito a análise feita por Michel Foucault, sobre os processos de normalização, de construção do ordinário, do comum, da repugnação do que quer que seja diferente da manada humana. É necessário ser como todo mundo é. O anormal, diz Foucault, é uma monstruosidade.
§ 7. “Hum... é... tudo está ao alcance do homem e ele deixa escapar só por medo... é mesmo um axioma. Curioso: o que será que as pessoas mais temem...” Temos medo do ridículo, mas a ousadia de ultrapassar o limite pode ser um daqueles momentos raros em que pensamos: valeu à pena. Sou diferente e preciso exercer a minha diferença, criando, explorando, fazendo diferença no meio da manada que segue tranquila para o curral.
§ 8. Lembro do meu primeiro encontro com Dostoiévski. Como de costume, eu e meu amigos conversávamos nos intervalos das aulas, nos corredores charmosos do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. O papo era quase sempre sobre assuntos teóricos (o que também guardo com muito carinho, pois parecia que estávamos em uma ilha no meio da manada). Estavámos em três e um dos amigos disse, com um exemplar de “Os Demônios” nas mãos: “sobre o existencialismo, esse é dos melhores!” Fiquei perplexo com os comentários do meu amigo. Perguntei ao terceiro: “e aí, quando é que você vai começar a sua leitura de Dostoiévski?” Ele retrucou: “você tá maluco? Temos que ler as três críticas de Kant!” Pensei: “é verdade! Com tanta coisa obrigatória para ler na faculdade, não ia dar para ler Dostoiévski tão cedo”. Comecei a ler “Crime e Castigo” no dia seguinte.
§ 9. Talvez seja preciso ler aquele que viu a face impiedosa da morte, para despertar para a vida e reconhecer que uma vida valiosa é aquela em que realizamos as nossas obras, com a nossa marca registrada, ultrapassando o limite. Viver extraordinariamente.
Paulo Henrique Castro.

domingo, 22 de maio de 2011

“Emancipar-se da escravidão mental”

§ 1. O título desta postagem foi tirado de uma canção de Bob Marley (Redemption Song). A sentença sugere que há dois tipos de escravidão: aquela que se faz pela interdição física e a que ocorre quando só podemos pensar o que todos pensam. Ambas são perversas.
§ 2. No mundo de hoje a escravidão física diminuiu na proporção inversa que a escravidão mental aumentou. A escravidão mental está intimamente ligada ao surgimento da Indústria Cultural, no início do século XX.
§ 3. “Indústria Cultural” significa produção em escala industrial de itens para se consumir em situações de entretenimento. Música, livros, filmes, programas de televisão, grupos de pagode/sertanejo e outros tantos itens são fabricados para vender sabonetes, refrigerantes, roupas, ilusões, distrações, crenças, sonhos e estilos de vida. O consumo de cultura se limita ao consumo daquilo que a indústria chama de “tendências”. O compromisso da Indústria Cultural nunca é com o desenvolvimento e formação intelectual do indivíduo. O slogan fundamental é: “quanto mais idiota melhor”.
§ 4. Quem assiste a um programa de auditório, portanto, absorve padrões comportamentais forjados como “tendências” e, além de ser incitado a comprar determinados itens, tem a mente formatada segundo o padrão do programa. O consumidor não é instigado a pensar e muito menos a desenvolver suas potencialidades criativas e críticas (discernimento), como na Cultura Erudita e na Cultura genuinamente Popular. Cartola faz pensar, Guimarães Rosa nos exige preparo intelectual, mas... Luan Santana e Faustão promovem... “tendências”.
§ 5. Há um grupo de filósofos alemães que ficou conhecido como “Escola de Frankfurt”; Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1969) e Herbert Marcuse (1898-1979), entre outros. Essas mentes atentas tiveram que migrar para os USA, em 1934, fugindo de Hitler. O problema foi a chegada: os filósofos alemães se surpreenderam com a indústria americana do entretenimento (o nascer da Indústria Cultural). Não estavam acostumados com a produção em massa de um tipo de bem cultural meramente feito para distrair, divertir, vender, envolver e... idiotizar. Qual a diferença entre o cinema americano e o cinema europeu (asiático, latino-americano, enfim, fora da indústria de Hollywood)?
§ 6. Os frankfurtianos logo perceberam a grande invenção dos americanos: a cultura fast-food. A idéia central é bem fácil de captar. “Fast-food” é um tipo de comida que entra por um buraco e sai rapidamente por outro. Pouco (ou nada) de nutritivo fica no corpo (e na mente). As pessoas só precisam encher a barriga e tudo mais segue o seu curso normalmente. Hollywood soube muito bem usar este tipo de concepção cultural. Imaginaram: “as pessoas não precisam pensar diferente, pois todos comem hambúrgueres do mesmo modo”. É fácil imaginar o quanto isso provocou ânsia de vômito em Marcuse, que era professor da Universidade da Califórnia, onde fica Hollywood. (Nem ao menos precisamos ler uma de suas obras primas: “Eros e Civilização.”)
§ 7. No belíssimo livro de Platão, “Teeteto”, Sócrates comparou as dificuldades de pensar com as dores do parto. Para ele estava claro que pensar, parir idéias, provoca “dores lancinantes”. O sucesso da cultura fast-food está justamente aí. Assistir uma novela não dói, porque não nos faz pensar. Assim, não provoca desconforto. Porém, assistir “Terra em Transe” de Glauber Rocha, provoca “dores lancinantes”.
§ 8. Os defensores da cultura fast-food responderiam: “ora, mas por qual razão eu iria assistir a um filme que me provoca desconforto, exigindo muito esforço intelectual?” E é aí que começa a escravidão mental: nos acostumamos tanto com a lavagem dada aos porcos, que é inevitável pensar como um. Ler Dostoiévski é um bom vermífugo para curar suínos.
§ 9. Vamos pensar assim: o enredo dos filmes e novelas de sucesso segue um modelo. O herói se apaixona, a mocinha sofre por causa das ações malévolas de uma megera, o casal se separa; o herói segue seu destino, se envolve com outra, ainda que a amada não lhe saia da cabeça e no final... o final todos já sabem: o herói e a mocinha se encontram e são felizes para sempre. Sim, há outros modelos: um herói truculento com cérebro de minhoca tem que salvar um grupo de prisioneiros ou salvar o mundo do iminente impacto de um asteróide medonho etc. (note que nos dois casos o herói é sempre americano). Mas por que diabos um enredo tão previsível atrai tanta gente? Uma resposta possível: escravidão mental. Precisamos hoje dos mesmos restos de comida (lavagem) de ontem, porque não saberíamos pensar o mundo diferente.
§ 10. Michel Foucault era um severo crítico dos métodos de confinamento e da fabricação da docilidade, próprios da sociedade industrial. Quem lê “Vigiar e Punir”, consegue distinguir as sutis formas de dominação. “Sutil” é uma palavra importante no livro de Foucault: quer dizer “quase imperceptível”. Algumas pessoas não conseguem perceber a diferença entre criar suínos em uma granja e criar porcos caipiras no pasto (daí a dificuldade de diferenciar os programas apresentados no sábado, na televisão aberta, dos programas que são oferecidos no domingo).
§ 11. É possível emancipar-se da escravidão mental? Enquanto pensamos, algumas palavras de Chico Buarque:
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto.
Paulo Henrique Castro.

domingo, 15 de maio de 2011

Somente palavras expurgadas ao sabor do silêncio.

 
§ 1. “A vida é uma paixão inútil”, disse certa vez Jean-Paul Sartre (1905-1980). Que sentido há em viver para morrer? A morte transforma tudo em inutilidade. Em um instante tudo o que você fez, todos os seus projetos, seus amores... tudo, tudo é destruído do mesmo modo que o mar engole, com desdém, os nossos castelos de areia.
§ 2. Como é estranho que as pessoas achem normal que os ricos e poderosos acumulem riquezas e ao mesmo tempo considerem que a luta política dos despossuídos seja algo tolo e sem sentido! Sem sentido é você trabalhar a vida inteira e ganhar uma aposentadoria de merda, que te faz mendigar nas farmácias populares; sem sentido é adoecer e ter que acordar de madrugada para ser atendido em um posto de saúde como se você tivesse pedindo um favor pro Estado e, ainda por cima, voltar para casa sem atendimento! Sem sentido é você ter que pagar escola privada para os filhos, porque a escola pública virou depósito de sucata...
§ 3. Sim. Como é estranho que alguém ache normal tanta promoção da cultura do lixo que nos entorpece os sentidos, nos fazendo crer que um dia seremos astros de cinema andando no Upper East Side, em Nova York. Sim... como é estranho este Admirável Mundo Normal. É mesmo uma pena que as palavras de Michel Foucault (1926-1984) apenas provoquem cócegas no ouvido dos surdos e riso na mente dos idiotas. Meu Deus! Não só surdos, mas cegos e mudos.
§ 4. Prefiro as palavras de Vladimir Maiakovski (1893-1930):
Na primeira noite eles aproximam-se e colhem uma Flor do nosso jardim e não dizemos nada. Na segunda noite, Já não se escondem; pisam as flores, matam o nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, Já não podemos dizer nada.” É... Tem que ser muito surdo (ou cego, ou talvez débil) para não perceber o elo destas palavras com a realidade política, social, histórica e cultural em que vivemos. A cegueira chegou em um ponto que se você manifesta algum tipo de revolta contra os instrumentos de idiotização, parece que o idiota é você. Curioso demais: se indignar se tornou careta, pra-frente mesmo é ouvir o Justin Bieber.
§ 5. Fiódor Dostoiévski (1821-1881) tinha uma teoria: no mundo só há dois tipos de gente, as ordinárias e as extra-ordinárias. As ordinárias são como os porcos: passam a vida fuçando no chiqueiro como os outros porcos fazem. Tudo é normal. De fato seria estranho que um porco resolvesse deixar de comer lavagem e reivindicasse banho quente e trabalho digno. Mais bizarro ainda seria um porco, ordinário como lhe é peculir, que admirasse com afinco e reverência aqueles raros gestos em nome de uma causa que mudasse as condições do chiqueiro. Que nada! Porco que se preze apenas faz o que todos fazem: são ordinários.
§ 6. Dizem que o gosto de coisas tóxicas é sempre amargo, daí o nosso corpo ser equipado evolutivamente para evitar tal sabor. Os cientistas dizem até que é por isso que as crianças preferem doces mais do que chicória. O veneno é amargo, a saudade mais ainda.
§ 7. O filósofo italiano Antônio Gramsci (1891-1937) disse: “Odeio os indiferentes!” Que bom que ele não viveu para ver o governo do Silvio Berlusconi, bem como o efeito hipnótico da televisão aberta no Brasil. Para o telespectador-macaco-de-auditório qualquer vergonha pública não faz diferença, porque ele foi programado para olhar apenas para o seu chiqueiro. A lavagem deve ficar mais saborosa quando se é indiferente. Odeio os indiferentes.
§ 8. Quando criança eu via televisão, acreditava em Papai Noel e tinha medo do Homem do Saco. Hoje essas ilusões se foram, mas confesso que tenho uma que começa a me incomodar bastante: a ilusão de que é possível ensinar às pessoas que enquanto existir desigualdade econômica, concentração de renda nas mãos de corporações e programas de auditório, a luta revolucionária será sempre louvável, legítima e justificável. Como disse Dostoievski: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Devo esperar o Paraíso aqui ou para depois?
§ 9. Termino com a poesia libertária de Carlo Alberto Salustri (o Trilussa), na esperança ingênua que alguém o escute:
O Homem e o Lobo
Um Homem disse a um Lobo:
— Se tu não fosses tão arrogante e prepotente, ganharias a vida honestamente e terias a minha proteção.
— Prefiro a liberdade a ter patrão, o Lobo retrucou; de resto, se eu fosse bom e me tornasse honesto me tratarias como a um cão.
A focinheira
— Sabe que sou fiel e afeiçoado, dizia o Cão ao Homem, e disposto a tudo, mesmo a ser sacrificado cumprindo as suas ordens. Isto posto, quero falar, agora, com franqueza: a focinheira põe-me deprimido; por que não dá-la ao Gato, que é fingido, apático e traidor por natureza?
O Homem responde:
— Mas a focinheira lembra sempre a existência de um patrão
que te protege e, de qualquer maneira, é quem te ampara e te garante o pão.
— Já que assim é, o dito por não dito! — corrige o Cão, desculpe-me a besteira. E, desde aí, com ar convicto, passou a falar bem da focinheira...

domingo, 8 de maio de 2011

A mente é separada do corpo?

 
Filosofia não é poesia. Platão[1] fez questão de deixar claro: “exprimo-me sem metro porque não sou poeta.[2] Quanto ao método e quanto aos fins, filosofia e poesia são atividades bem diferentes. Certamente que isso não tem como conseqüência a conclusão de que não há tematização filosófica na poesia ou, o contrário, não há beleza na comunicação e temas filosóficos. Alguém pode alegar: “ora! E quanto ao filósofo alemão Nietzsche e os nietzcheanos (como o eminente G. Deleuze)?” Bem, a problemática é muito extensa e apenas posso dizer que o problema está relacionado com os usos da linguagem (e sugiro ao leitor dar uma olhada em um texto que publiquei neste blog, “Pensar o Absurdo”).
Abordaremos neste texto a Filosofia da Mente e seu problema fundamental: o problema mente-corpo. Para apresentar esse ramo de investigação filosófica uso as palavras do professor de filosofia da Universidade da Carolina do Norte, Wlliam G. Lycan[3]:
A filosofia da mente está repleta de questões muito interessantes: questões sobre consciência, identidade pessoal, sobrevivência à morte física, vontade livre, doença mental, papel da mente no comportamento, natureza da emoção, comparação entre a psicologia humana e a psicologia animal, e muitas outras. Contudo, cada uma dessas questões depende, em última instância, de uma única questão fundamental, chamada simplesmente de ‘problema da mente e do corpo’: o que é uma mente, per se, e qual sua relação com o corpo, com o físico de modo geral?”
Na abordagem dos problemas próprios da filosofia da mente sigo boa parte da tradição filosófica, incluindo certos setores da filosofia contemporânea que dialogam com a ciência, ao invés de repudiá-la, como os ramos que aproximam filosofia de poesia, ao eleger a lógica como o instrumento básico da atividade filosófica. Aqui, também, cabem alguns esclarecimentos antes de abordar o problema mente-corpo (peço humildemente paciência ao leitor, pois esse problema gera muita confusão e não tenho muito apreço por debates baseados na esquisita tese do “vale-tudo”).
“Lógico” é aquilo que nos permite [1] conceber (formar uma idéia; dizer quando algo é o caso), [2] compreender (ter acesso ao sentido de um enunciado) e [3] explicar (tornar inteligível ou claro, o que é ambíguo e obscuro), algo ou alguma coisa. Assim, o que é sem sentido (nonsense) é ilógico, já que é inconcebível, incompreensível e incognoscível (não posso formar uma idéia clara e distinta e não posso conhecer nem dar a conhecer).
De acordo com isso, temos que privilegiar a análise argumentativa (papel da lógica) e observar a razoabilidade das informações científicas, isto é, quem diz se algo é verdadeiro ou não é a ciência, não a filosofia. [4]
O filósofo Stephen Law apresenta uma escala de razoabilidade para crenças que não podem ou ainda não foram provadas, e oferece exemplos curiosos: [1] Extremamente razoável. Por exemplo: os objetos que estão diante de você são reais; [2] Muito razoável. Por exemplo: elétrons existem, embora não possamos vê-los; [3] Bastante razoável. Por exemplo: extraterrestres não inteligentes existem, dado o tamanho do universo; [4] Bastante insensato. Exemplo: Elvis não morreu; sua morte foi uma conspiração; [5] Extremamente insensato. Exemplo: elfos e fadas são reais.
As conclusões da ciência podem ser classificadas em: {a} Fraca: quando uma conclusão tem menos de 50% de chance de ser verdade. Assim, pensar que “Elvis não morreu” é insensato, porque é improvável, mas ainda assim é possível; {b} Moderada: quando uma conclusão tem entre 50% e 90% de chance de ser verdadeira, isto é, razoável chance de ser verdadeira, a partir da quantidade de evidências empíricas disponíveis; {c} Forte: quando uma conclusão tem mais de 90% de chance de ser verdadeira, isto é, alta probabilidade de ser verdadeira a partir da quantidade de evidências empíricas disponíveis. Assim, o filósofo pode perfeitamente formular argumentos sólidos.
Segundo Law: “Podemos não ter prova conclusiva de que crenças muito razoáveis são reais, nem de que outras bizarras são falsas – não podemos provar cabalmente que fadas não existem, p. ex. A crença nelas, porém, está na base da escala de razoabilidade.” (p. 223)
Podemos, agora, tendo sempre na lembrança tais considerações, voltar à nossa breve introdução do problema mente-corpo. Doravante apresentarei as observações feitas pelo Filósofo Paul Churchland[5], acerca da filosofia da mente:
A discussão pode começar diferenciando o que é substância do que é propriedade. Digamos que substância é tudo aquilo que existe por si, independente de outra coisa; propriedade é algo que não existe por si, mas depende de alguma coisa para existir (por exemplo: maciez, ser liso, ter comprimento, largura, altura, ter determinada posição no espaço, ter cor, ser dotado de peso etc.). Assim, uma maça é uma substância e “ser vermelha” é uma propriedade.
O corpo é uma substância e o desafio consiste em verificar se a mente é ou uma propriedade do corpo ou uma substância. A doutrina que afirma que a mente é uma propriedade do corpo, chama-se materialismo e a doutrina que defende que a mente é uma substância (e, portanto, não depende do corpo para existir) é o dualismo.
O dualismo foi desenvolvido por um dos maiores filósofos que se tem notícia: o francês René Descartes (1596-1650). Em referência à Descartes, o dualismo também é denominado de “dualismo cartesiano” (Cartesius era o nome latino de Descartes).
Para o dualismo, a natureza dos processos mentais é algo não-físico. Do lado oposto, o materialismo afirma que a mente é aquilo que o cérebro faz, portanto, propriedades físico-químicas da matéria. De acordo com Churchland, dentro dos círculos filosóficos e científicos são poucos os que defendem o dualismo, por razões que veremos logo abaixo.
Os argumentos (e suas críticas) em favor do dualismo são os seguintes:
[1] Argumento da Religião:
Já que a maioria das religiões são dualistas, não aceitar o dualismo tem como conseqüência rejeitar a própria religião. O que é afirmado por fé, é verdadeiro para o fiel por decreto, não por demonstração. A fé, por si só, contém a sua defesa. Se a religião afirma que o homem é um composto de carne e alma, o corpo como algo perecível e a alma como algo eterno e imaterial (substâncias distintas e separadas), então não há motivo para rejeitar o dualismo.
Crítica: para Churchland, a religião não tem credenciais confiáveis em matéria de questões científicas, basta observar temas como a posição da Terra no Universo, a epilepsia como manifestação do Diabo, a negação da existência de micróbios como agentes patológicos (considerando, ao contrário, as patologias como efeitos de bruxas) etc. Quando Giordano Bruno (1548-1600) disse, contrariando o poderoso clero católico, que as estrelas NÃO eram outros sóis, foi preso em Veneza, encarcerado durante sete anos e, por fim, queimado vivo!
Além da falta de credenciais da religião para assuntos científicos, rejeitar a herança religiosa é algo que muitos têm dificuldade por razões emocionais. As convicções religiosas são decorrentes de avaliações apaixonadas e também circunscritas aos eventos histórico-sociais, que são muito singulares e específicos. Daí a variedade espantosa de crenças religiosas incompatíveis.
[2] Argumento da Introspecção:
“Introspecção” quer dizer “observação interior”. Quando observamos o nosso universo mental, o que vemos? Certamente que não vemos uma rede neural com atividade eletroquímica. Observamos um estado mental vívido, rico em imagens, lembranças, pensamentos íntimos que ninguém tem acesso. O que percebemos, mesmo sonhando, em nosso estado interno, é claramente eventos que não podem ser classificados como materiais. Os sonhos não nos aparecem como algo que está localizado em um determinado espaço. Quando lembramos de algo que temos que fazer, as imagens não tem peso e nem cheiro. As idéias não sangram e nem tem largura. Os eventos espirituais são possíveis porque não são regidos pelas leis do mundo físico. Portanto, o dualismo acerta em afirmar que a mente é uma substância imaterial e separada do corpo.
Crítica: Por que acreditar que a observação interior (introspecção) revela a natureza das coisas como elas realmente são? Ora, mesmo a observação exterior direta não é confiável, por isso que observamos as estrelas usando variados instrumentos. O que o olho humano nos revela sobre o tamanho de uma estrela não passa de uma ilusão. Ao colocar a minha mão na frente do Sol, a impressão que tenho é a de que a minha mão é, de fato, maior do que o astro. Porém, sabemos pelo uso de outros instrumentos que a mão humana é infinitamente menor do que o Sol. Fica difícil confiar na introspecção, sabendo que a observação direta (seja interna ou externa), não revela a natureza das coisas como elas são. “A superfície vermelha de uma maçã não aparece como uma matriz de moléculas refletindo fótons em certos comprimentos de onda, mas é isso que ela é. O som de uma flauta não soa como uma sucessão de ondas de compressão senoidal na atmosfera, mas é isso que ele é. O calor do ar do verão não parece ser a energia cinética média de milhões de minúsculas moléculas, mas é isso que ele é. Se nossas próprias dores, esperanças e crenças não se parecem, ao olhar introspectivo, com estados eletroquímicos numa rede neural, isso talvez ocorra apenas porque a nossa faculdade de introspecção, da mesma forma que nossos outros sentidos, não é suficientemente penetrante para revelar tais detalhes ocultos.”[6]
[3] Argumento da Irredutibilidade:
Como fenômenos mentais tão complexos poderiam ser decorrentes de um sistema físico? Por exemplo: a linguagem e o raciocínio matemático são manifestações mentais tão elaboradas que não podem se restringir (reduzir) à matéria. Como apenas o arranjo adequado da matéria poderia gerar cálculos elaborados? A qualidade dos eventos mentais é tão rica que mal podemos exprimir (pense no orgasmo e na intensidade do cheiro de uma comida). Nada disso poderia ser reduzido a propriedades físicas. Logo, a mente é não-física. Experiências inexprimíveis indicam a não redutibilidade ao mundo físico.
Crítica: hoje, Século XXI, sabemos que o arranjo adequado da matéria pode efetuar cálculos que superam a capacidade humana, como os corriqueiros computadores que o leitor está usando neste exato momento. A menos que você admita que o computador é regido por forças espirituais e imateriais, devemos reconhecer que a capacidade mental para cálculos é, sim, reduzível a matéria. O mesmo se aplica a idéia de linguagem, usada pelos computadores (BASIC, FORTRAN, APL, LISP, PASCAL etc.).
[4] Argumento Parapsicológico:
Uma das mais famosas alegações para defender o dualismo é apelar para os fenômenos parapsicológicos: telepatia (leitura da mente); telecinese (controle de objetos materiais pela mente, precognição (visão do futuro), clarividência (conhecimento de objetos distantes), psicografia (capacidade de conversar com os mortos e descrever a comunicação dos espíritos a partir de um médium) etc. Os defensores do dualismo afirmam que tais fenômenos são reais e não-físicos, o que evidentemente contraria qualquer afirmação de que a mente é uma propriedade da matéria. Nesse caso, alega-se que manifestações espirituais como a reencarnação dão testemunho de que o corpo é apenas um invólucro material, que contém o espírito. Logo, o dualismo é verdadeiro.
Crítica: Churchland considera que a maior dificuldade para o argumento dos fenômenos parapsicológicos é mais simples do que possamos imaginar: ninguém nunca conseguiu repetir um único fenômeno parapsicológico. Ora, podemos repetir diversas vezes certos experimentos para todos os interessados queiram ver como São Tomé. Por exemplo: o nitrato de níquel é sólido em temperatura ambiente. Podemos facilmente dissolvê-lo em uma solução aquosa de coloração verde, e repetir tal procedimento quantas vezes forem necessárias. Quantos registros de telepatia foram repetidos e estão disponíveis na Universidade X para qualquer um testemunhar? “Apesar dos pronunciamentos e relatos sem fim que aparecem na imprensa popular, e apesar do fluxo constante de pesquisas sérias em torno de tais questões, não existem provas significativas ou dignas de confiança de que tais fenômenos nem mesmo existam. A ampla lacuna entre a convicção popular com respeito a essa questão e as provas efetivas é algo que por si só exige pesquisa. Pois não existe um só efeito parapsicológico que possa ser reproduzido repetidamente, ou de modo confiável, em algum laboratório equipado de modo adequado para realizar e controlar experiências. Nem um sequer. Pesquisadores honestos têm sido repetidamente tapeados por charlatões ‘paranormais’ com habilidades derivadas da atividade dos mágicos, e a história desse tema é, em grande parte, uma história de ingenuidade, seleção de provas, controles experimentais precários, e fraude pura e simples, até mesmo por parte de um ou outro pesquisador.[7]
Além dos já citados argumentos a favor do dualismo e suas críticas, cito brevemente apenas três em favor do materialismo:
[1] Argumento da simplicidade:
De acordo com um princípio lógico, conhecido em filosofia como “Navalha de Ockham”: “não se deve multiplicar os problemas além do estritamente necessário para explicar um fenômeno”. Assim, o materialismo é uma explicação mais aceitável por não ter que apelar para outros problemas. Se o dualismo estiver certo, então teremos que explicar como é possível algo imaterial e totalmente diverso das leis que regem a matéria, existir. Ao passo que uma explicação materialista se sustenta somente com os fenômenos já conhecidos e, portanto, é suficiente.
[2] Argumento da dependência neural:
O prêmio Nobel de medicina, Eric Kandel, escreveu em um livro que é a base dos estudos em Neurociência: “O que chamamos de mente é um conjunto de operações realizadas pelo sistema nervoso. As ações do sistema nervoso compreendem não apenas os comportamentos motores relativamente simples, como caminhar ou comer, mas todas as ações cognitivas complexas que acreditamos ser essencialmente humanas, como pensar, falar e criar obras de arte. Concluindo, todos os distúrbios comportamentais que caracterizam as doenças psiquiátricas – distúrbios do afeto (sentimentos) e da cognição (pensamento) – são distúrbios da função do sistema nervoso.” [8]
São palavras chocantes apenas para uma parte da população que nunca ouviu falar em tomografia computadorizada, teste de paternidade, ressonância magnética, DNA, genética e... pesquisa científica. Os avanços na área de investigação do sistema nervoso foram tão grandes no século XX, que a década de 90 ficou conhecida como “Década do Cérebro”. Para a maior parte dos cirurgiões que todos os dias abrem alguma cabeça, ou para os neurologistas que prescrevem medicamentos para seus pacientes, prevalece a concepção do Nobel de medicina: a mente é o que o cérebro faz.
O argumento da dependência neural é esmagador: deveríamos esperar que se o dualismo fosse verdadeiro e o materialismo falso, para qualquer dano ao cérebro, tal prezuízo não acarretasse uma deterioração mental; isto é, se a mente é não-física, então um estrago físico não pode afetar o que não é físico. Ora, a lista de distúrbios de ordem física, que afetam as supostas atividades não-fisicas (como lembrar), é tão extensa que seria um sacrilégio citar uma. Remeto o leitor para a obra “Princípios da Neurociência”. Churchland apresenta uma ótima introdução ao funcionamento do sistema nervoso, de modo simples, e extraí conseqüências para o ramo da filosofia que ele denominou de Neurofilosofia.
[3] Argumento da Teoria Evolutiva: de acordo com a Biologia, a partir do darwinismo, somos criaturas da matéria. Esse argumento é demasiado longo para ser apresentado em breve comentário, como este texto, de tal modo que me satisfaço apenas mencionando sua existência.
Para finalizar este texto, devo dizer que há uma crítica feroz ao materialismo. Porém, logicamente que uma crítica ao materialismo não significa que o dualismo é verdadeiro. Podemos formular muitas objeções ao materialismo, mas isso nada tem haver com a defesa do dualismo. Na verdade, mesmo o crítico mais exasperado do materialismo, ninguém menos que John R. Searle, professor da Universidade da Califórnia e certamente um dos mais importantes filósofos vivos, aceita a tese do dualismo. Em uma de suas obras em que o filósofo tece críticas ao materialismo, diz: “Atualmente, porém, até onde posso ver, ninguém acredita na existência de substâncias espirituais imortais, a não ser no terreno religioso. Pelo que conheço, não há motivações puramente filosóficas ou científicas para a aceitação da existência de substâncias mentais imortais.”[9]
As críticas ao materialismo devem ser observadas e a leitura de Searle é um bom começo. Por outro lado, sobre o dualismo, percebe-se uma assustadora tendência, que talvez não tenha retrocesso: é extremamente insensato pensar no homem como tendo um corpo material que serve de invólucro para um espírito imaterial.
Paulo Henrique Castro.

[1] Platão. República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. s/d, 8ª. Ed. (passo 393d).
[2] No original em grego: φράσω δέ άνευ μετρου οΰ γάρ είμι ποιητικός. Cf. Republic. Harvard University Press (Loeb Classical library). 1999, p. 228.
[3] Lycan, W. G. in Bunnin, N. & Tsui-James, E. P. Compêndio de Filosofia. Edições Loyola: São Paulo, 2007, 2ª. Edição; p. 181.
[4] Sobre isso, embora seja imensa a literatura sobre o assunto, cito apenas três obras: [1] Copi, I. Introdução á Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978. [2] Branquinho, J. Enciclopédia de termos lógicos-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006; p. 574. [3] Mortari, C. Introdução à Lógica. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001.
[5] Churchuland, P. Matéria e Consciência. São Paulo: Editora UNESP, 2004; p. 25.
[6] Idem, p. 38.
[7] Idem, p.41-42.
[8] Kandel, E. R.; Schwartz, J. H,; Jessell, M. Princípios da Neurociência. São Paulo: Editora Manole, 2003, p. 5.
[9] Searle, J. R. A Redescoberta da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 43.

domingo, 1 de maio de 2011

Ética e Extraterrestres.

Para início de conversa, pessoa correta é o Superman: ele não mente, não rouba, sacrifica desejos pessoais em nome dos interesses coletivos, adia a satisfação da sua vontade em nome do dever, não faz gato de luz, nem “gatonet”; perdoa até os mais sádicos dos seus inimigos, acredita incondicionalmente na boa vontade entre os homens, espera a mulher amada por tempo indeterminado, é fiel, só usa de agressão se for realmente necessário, não mata, não dirige lentamente na pista da esquerda para não atrapalhar o trânsito (e também não pisca o farol pedindo passagem); é atencioso com os mais velhos e com os mais novos, ele é muito bondoso, não deixa o carrinho de supermercado atravessado no meio do corredor (principalmente no início do mês, já que o mercado fica lotado), não fuma e nem bebe; não trafega no acostamento e não fura fila. Acontece que o Superman, como todos sabem, não é HUMANO. Ele veio de outro planeta (Kripton), portanto, é um ET.
O personagem Superman foi criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, mas o modelo de ser humano moralmente infalível (que vou chamar de Complexo de Superman, por razões óbvias), percorre o imaginário ocidental desde a Antiguidade, pelo menos. Já o encontramos em Platão e Aristóteles. Os estóicos e, principalmente, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), consideravam com extremo rigor que uma ação ética é aquela que sempre ocorre por Dever (nem mais, nem menos). Também as religiões exigem que as pessoas tenham comportamentos éticos austeros, de tal modo que a exigência de ações éticas rigorosas não parece ser coisa de outro planeta. Os Terráqueos estão muito familiarizados com os assuntos éticos. Então, porque a dissonância entre o comportamento moral do Superman e o nosso? Porque entre a ficção e a efetiva realidade há um imenso fosso, muito bem revelado pela agudeza do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), ao descrever os atos sombrios e medonhos de que o ser humano é capaz. Para Hobbes, justamente por se tratar de criaturas humanas, o cumprimento do Dever só seria possível por meio da impiedosa espada do monarca, isto é, leis com punições severas. Do contrário, pensava Hobbes, nada podemos esperar da boa-vontade e nem das Bem-Aventuranças.
Claro que exigências éticas são importantes! Ernst Tugendhat[1] (1930-) nos lembra que as discussões do cotidiano demonstram o quanto a ética está presente em nossas vidas: (1) Direitos de grupos particulares e marginalizados; (2) Lei de imigração (limitada ou ilimitada?); (3) A questão do asilo (o que fazemos com nossos idosos? Por que fazemos?); (4) Os direitos dos deficientes; (5) Os animais (temos ou não obrigações morais?); (6) Os direitos dos estrangeiros; (7) O aborto e a eutanásia (devem ser permitidos ou proibidos?); (8) A tecnologia genética: clonagem, células tronco etc. Ademais, para conviver precisamos de acordos. Todo acordo é constituído por regras e normas que devem ser observadas pelas partes envolvidas. ‘Moral’ é o nome dado ao conjunto de regras, normas ou princípios que orientam o comportamento que repercute na vida dos outros. Evidentemente, a existência de normas para regulamentar as relações entre as pessoas cumpre uma função: a própria possibilidade de co-existir. Em outras palavras, só é possível a convivência com o mínimo de regras que concilie os interesses pessoais com os interesses coletivos. Portanto, peço licença ao leitor para não perder tempo demonstrando a importância de exigências éticas. Simplesmente vou supor que todos nós concordamos com a importância do dever. A questão aqui é outra.
O problema é que freqüentemente as pessoas se orgulham em dizer o quanto se é ético e o quanto os OUTROS não são éticos: errados são os outros. Parece que é nesse caso que aflora o Complexo de Superman, que é um mito ingênuo sobre a realidade das ações humanas. Encontramos por todos os cantos pessoas que se dizem baluartes da moralidade e dos bons costumes (há muito Clark Kent por aí). Então, como entender a ética se todos se julgam éticos (rigorosamente éticos)? Será essa a nossa kriptonita?
Vamos pensar assim: a palavra “ética” é evocada com muita solenidade, seja na feira, em congressos de educação, no Senado Federal, em uma boca de fumo e até na prisão (todos sabem que há um código de ética entre os presos, muito rigoroso, aliás). “Ética” até já ganhou status de palavra sagrada. E justamente por estar em todos os lugares, ela não está em lugar nenhum. É um mito! Somos todos “éticos” (o que é bastante curioso). Vá para um bar qualquer tomar um chopp. Espere um pouco e logo, logo, surgirá na mesa ao lado o tema “política”. As pessoas envolvidas na conversa irão, sem demora, reclamar que não temos políticos éticos e o quanto é lamentável viver em um país com uma elite política tão corrupta. Supõe-se, claro, que todos na mesa sejam éticos.
O IBOPE Opinião apresentou uma pesquisa inédita sobre o comportamento da sociedade brasileira no que diz respeito à ética na política. O estudo "Corrupção na Política: Eleitor Vítima ou Cúmplice" propõe a reflexão sobre até que ponto os problemas éticos enfrentados pela sociedade brasileira estão de fato concentrados em suas elites e lideranças ou se trata de uma conduta social presente em todas as camadas e grupos de nossa sociedade. Ótimo interesse de pesquisa! O raciocínio parece ser o que se segue: todo brasileiro reclama do político sem ética. Todo político brasileiro sem ética é eleito pelo brasileiro. Logo... Afinal, quem é “sem ética”? Eu, o outro, os políticos? De uma coisa ninguém duvida, ao menos: o Superman é que não é sem ética.
A pesquisa foi realizada entre os dias 12 e 16 de janeiro de 2006. Foram entrevistados 2.001 eleitores em 143 municípios do Brasil. De modo resumido (a pesquisa tem 400 páginas), as respostas são incrivelmente contraditórias. Parecem revelar aspectos incoerentes do nosso julgamento moral. Observe:
Uma pergunta: “Qual destas duas características serve melhor para descrever a maioria dos brasileiros (as)?”
Respostas Total Masculino. Feminino.
Base 2001 951 1050
Age pensando no beneficio da
sociedade em geral.
27% 28% 26%
Age pensando em seu
próprio beneficio.
70% 70% 69%
Não sabe/não opinou. 3% 2% 4%
A pergunta, em seguida, muda de direção: “Qual destas duas características serve melhor para descrever o (a) Sr (a) pessoalmente?” Curiosamente o quadro é invertido:
Respostas Total Masculino. Feminino.
Base 2001 951 1050
Age pensando no beneficio da
sociedade em geral.
65% 62% 68%
Age pensando em seu
próprio beneficio.
33% 36% 30%
Não sabe/não opinou. 2% 2% 2%
Diante da pergunta: “Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou "gato" de TV a cabo, ou seja, aproveita a instalação do vizinho?” 82% dos entrevistados responderam que tal conduta é “Grave/inaceitável”, 94% nunca fez, mas acha que a maioria dos brasileiros faz.
Outra: “Quando tem oportunidade, tenta dar uma "caixinha" ou "gorjeta" para se livrar de uma multa?” 72% reconhecem esse comportamento como Grave/inaceitável; acham que a maioria dos brasileiros faz e 82% afirmou: “nunca fez”. Mais uma: “Se tem chance, pega ou consome produtos em padarias, supermercados ou outros estabelecimentos comerciais sem pagar?” 82% dos entrevistados identificaram esse comportamento como Grave/inaceitável, considerou que a maioria faz, embora 94% tenham afirmado nunca fazer.
Uma outra indaga: “Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou "gato" de água ou luz?” Nesse caso, 82% consideraram Grave/inaceitável, acham que a maioria faz e 91% nunca fez.
Notem que quando a maioria diz o que é “grave” ou “inaceitável” é um indicador daquilo que consideramos uma regra moral que prescreve o que não é permitido fazer.
E os políticos? 82% afirmam que os políticos brasileiros são desonestos.
Para dizer o mínimo: a pesquisa sugere um descompasso entre o que um acha do outro. Moral da história: “Eu sou ético, quem não é ético, é o outro!” E mais: “o outro deveria tomar vergonha na cara e ser ético”. Complexo de Superman? É necessário mesmo inventar um modelo de herói para que eu possa botar o dedo na cara do outro e dizer: “Escuta, seu mentiroso! Eu nunca minto, então está na hora de você aprender a só dizer a verdade”.
Kant, o filósofo alemão mencionado no início do texto, não era muito dado a exemplos, mas em seu sistema ético (aliás, profundamente marcado pelo Protestantismo), um dos seus preferidos exemplos era a mentira. Ele achava que mentir era coisa dos fracos que se esquivavam do Dever. Ao contrário, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) afirmou, em seu “Crime e Castigo”: “A mentira é o único privilégio humano perante os organismos. Quem mente chega à verdade! Minto, por isso sou um ser humano.” (p. 214)
Entre a realidade e a ficção, há um fosso que muitos não querem admitir. É melhor e confortável sonhar com o Superman e ficar esperando que ele venha salvar o mundo das ações imorais do Lex Luthor, que é sempre o vizinho, claro.
O que nos torna humanos?
Paulo Henrique Castro (com a inestimável ajuda do meu filho Thiago Castro, de 9 anos, na pesquisa sobre o seu herói preferido. Obrigado, filhote!)

[1] Tugendhat, E. Lições sobre Ética. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.