domingo, 1 de maio de 2011

Ética e Extraterrestres.

Para início de conversa, pessoa correta é o Superman: ele não mente, não rouba, sacrifica desejos pessoais em nome dos interesses coletivos, adia a satisfação da sua vontade em nome do dever, não faz gato de luz, nem “gatonet”; perdoa até os mais sádicos dos seus inimigos, acredita incondicionalmente na boa vontade entre os homens, espera a mulher amada por tempo indeterminado, é fiel, só usa de agressão se for realmente necessário, não mata, não dirige lentamente na pista da esquerda para não atrapalhar o trânsito (e também não pisca o farol pedindo passagem); é atencioso com os mais velhos e com os mais novos, ele é muito bondoso, não deixa o carrinho de supermercado atravessado no meio do corredor (principalmente no início do mês, já que o mercado fica lotado), não fuma e nem bebe; não trafega no acostamento e não fura fila. Acontece que o Superman, como todos sabem, não é HUMANO. Ele veio de outro planeta (Kripton), portanto, é um ET.
O personagem Superman foi criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, mas o modelo de ser humano moralmente infalível (que vou chamar de Complexo de Superman, por razões óbvias), percorre o imaginário ocidental desde a Antiguidade, pelo menos. Já o encontramos em Platão e Aristóteles. Os estóicos e, principalmente, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), consideravam com extremo rigor que uma ação ética é aquela que sempre ocorre por Dever (nem mais, nem menos). Também as religiões exigem que as pessoas tenham comportamentos éticos austeros, de tal modo que a exigência de ações éticas rigorosas não parece ser coisa de outro planeta. Os Terráqueos estão muito familiarizados com os assuntos éticos. Então, porque a dissonância entre o comportamento moral do Superman e o nosso? Porque entre a ficção e a efetiva realidade há um imenso fosso, muito bem revelado pela agudeza do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), ao descrever os atos sombrios e medonhos de que o ser humano é capaz. Para Hobbes, justamente por se tratar de criaturas humanas, o cumprimento do Dever só seria possível por meio da impiedosa espada do monarca, isto é, leis com punições severas. Do contrário, pensava Hobbes, nada podemos esperar da boa-vontade e nem das Bem-Aventuranças.
Claro que exigências éticas são importantes! Ernst Tugendhat[1] (1930-) nos lembra que as discussões do cotidiano demonstram o quanto a ética está presente em nossas vidas: (1) Direitos de grupos particulares e marginalizados; (2) Lei de imigração (limitada ou ilimitada?); (3) A questão do asilo (o que fazemos com nossos idosos? Por que fazemos?); (4) Os direitos dos deficientes; (5) Os animais (temos ou não obrigações morais?); (6) Os direitos dos estrangeiros; (7) O aborto e a eutanásia (devem ser permitidos ou proibidos?); (8) A tecnologia genética: clonagem, células tronco etc. Ademais, para conviver precisamos de acordos. Todo acordo é constituído por regras e normas que devem ser observadas pelas partes envolvidas. ‘Moral’ é o nome dado ao conjunto de regras, normas ou princípios que orientam o comportamento que repercute na vida dos outros. Evidentemente, a existência de normas para regulamentar as relações entre as pessoas cumpre uma função: a própria possibilidade de co-existir. Em outras palavras, só é possível a convivência com o mínimo de regras que concilie os interesses pessoais com os interesses coletivos. Portanto, peço licença ao leitor para não perder tempo demonstrando a importância de exigências éticas. Simplesmente vou supor que todos nós concordamos com a importância do dever. A questão aqui é outra.
O problema é que freqüentemente as pessoas se orgulham em dizer o quanto se é ético e o quanto os OUTROS não são éticos: errados são os outros. Parece que é nesse caso que aflora o Complexo de Superman, que é um mito ingênuo sobre a realidade das ações humanas. Encontramos por todos os cantos pessoas que se dizem baluartes da moralidade e dos bons costumes (há muito Clark Kent por aí). Então, como entender a ética se todos se julgam éticos (rigorosamente éticos)? Será essa a nossa kriptonita?
Vamos pensar assim: a palavra “ética” é evocada com muita solenidade, seja na feira, em congressos de educação, no Senado Federal, em uma boca de fumo e até na prisão (todos sabem que há um código de ética entre os presos, muito rigoroso, aliás). “Ética” até já ganhou status de palavra sagrada. E justamente por estar em todos os lugares, ela não está em lugar nenhum. É um mito! Somos todos “éticos” (o que é bastante curioso). Vá para um bar qualquer tomar um chopp. Espere um pouco e logo, logo, surgirá na mesa ao lado o tema “política”. As pessoas envolvidas na conversa irão, sem demora, reclamar que não temos políticos éticos e o quanto é lamentável viver em um país com uma elite política tão corrupta. Supõe-se, claro, que todos na mesa sejam éticos.
O IBOPE Opinião apresentou uma pesquisa inédita sobre o comportamento da sociedade brasileira no que diz respeito à ética na política. O estudo "Corrupção na Política: Eleitor Vítima ou Cúmplice" propõe a reflexão sobre até que ponto os problemas éticos enfrentados pela sociedade brasileira estão de fato concentrados em suas elites e lideranças ou se trata de uma conduta social presente em todas as camadas e grupos de nossa sociedade. Ótimo interesse de pesquisa! O raciocínio parece ser o que se segue: todo brasileiro reclama do político sem ética. Todo político brasileiro sem ética é eleito pelo brasileiro. Logo... Afinal, quem é “sem ética”? Eu, o outro, os políticos? De uma coisa ninguém duvida, ao menos: o Superman é que não é sem ética.
A pesquisa foi realizada entre os dias 12 e 16 de janeiro de 2006. Foram entrevistados 2.001 eleitores em 143 municípios do Brasil. De modo resumido (a pesquisa tem 400 páginas), as respostas são incrivelmente contraditórias. Parecem revelar aspectos incoerentes do nosso julgamento moral. Observe:
Uma pergunta: “Qual destas duas características serve melhor para descrever a maioria dos brasileiros (as)?”
Respostas Total Masculino. Feminino.
Base 2001 951 1050
Age pensando no beneficio da
sociedade em geral.
27% 28% 26%
Age pensando em seu
próprio beneficio.
70% 70% 69%
Não sabe/não opinou. 3% 2% 4%
A pergunta, em seguida, muda de direção: “Qual destas duas características serve melhor para descrever o (a) Sr (a) pessoalmente?” Curiosamente o quadro é invertido:
Respostas Total Masculino. Feminino.
Base 2001 951 1050
Age pensando no beneficio da
sociedade em geral.
65% 62% 68%
Age pensando em seu
próprio beneficio.
33% 36% 30%
Não sabe/não opinou. 2% 2% 2%
Diante da pergunta: “Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou "gato" de TV a cabo, ou seja, aproveita a instalação do vizinho?” 82% dos entrevistados responderam que tal conduta é “Grave/inaceitável”, 94% nunca fez, mas acha que a maioria dos brasileiros faz.
Outra: “Quando tem oportunidade, tenta dar uma "caixinha" ou "gorjeta" para se livrar de uma multa?” 72% reconhecem esse comportamento como Grave/inaceitável; acham que a maioria dos brasileiros faz e 82% afirmou: “nunca fez”. Mais uma: “Se tem chance, pega ou consome produtos em padarias, supermercados ou outros estabelecimentos comerciais sem pagar?” 82% dos entrevistados identificaram esse comportamento como Grave/inaceitável, considerou que a maioria faz, embora 94% tenham afirmado nunca fazer.
Uma outra indaga: “Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou "gato" de água ou luz?” Nesse caso, 82% consideraram Grave/inaceitável, acham que a maioria faz e 91% nunca fez.
Notem que quando a maioria diz o que é “grave” ou “inaceitável” é um indicador daquilo que consideramos uma regra moral que prescreve o que não é permitido fazer.
E os políticos? 82% afirmam que os políticos brasileiros são desonestos.
Para dizer o mínimo: a pesquisa sugere um descompasso entre o que um acha do outro. Moral da história: “Eu sou ético, quem não é ético, é o outro!” E mais: “o outro deveria tomar vergonha na cara e ser ético”. Complexo de Superman? É necessário mesmo inventar um modelo de herói para que eu possa botar o dedo na cara do outro e dizer: “Escuta, seu mentiroso! Eu nunca minto, então está na hora de você aprender a só dizer a verdade”.
Kant, o filósofo alemão mencionado no início do texto, não era muito dado a exemplos, mas em seu sistema ético (aliás, profundamente marcado pelo Protestantismo), um dos seus preferidos exemplos era a mentira. Ele achava que mentir era coisa dos fracos que se esquivavam do Dever. Ao contrário, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) afirmou, em seu “Crime e Castigo”: “A mentira é o único privilégio humano perante os organismos. Quem mente chega à verdade! Minto, por isso sou um ser humano.” (p. 214)
Entre a realidade e a ficção, há um fosso que muitos não querem admitir. É melhor e confortável sonhar com o Superman e ficar esperando que ele venha salvar o mundo das ações imorais do Lex Luthor, que é sempre o vizinho, claro.
O que nos torna humanos?
Paulo Henrique Castro (com a inestimável ajuda do meu filho Thiago Castro, de 9 anos, na pesquisa sobre o seu herói preferido. Obrigado, filhote!)

[1] Tugendhat, E. Lições sobre Ética. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

7 comentários:

REGINA disse...

Oi meu amor adorei o texto e mais ainda ao ler que o TH que te ajudou...parabéns a vcs e que venham mais e mais textos!Rê

Unknown disse...

Obrigado, amore mio!É... ele ficou bem feliz ao me ajudar. A idéia de fazer o texto surgiu justamente quando ele me chamou para ver um episódio de "Smallville" (As aventuras do Superboy), há tempos. Daí brotou a idéia. Bjs especiais sempre em vc, seu, PH.

Eleonora disse...

Obrigado PH por mais este excelente texto.
Bjs, Eleonora

Unknown disse...

Obrigado Eleonora! Ter vc aqui é ótimo! Bjs! Rê, meu amor! Obrigado pelos constantes incentivos!! Bjs!!!!

Unknown disse...

Pai eu te amo muito bigado pai thiago

¤ Sarah Sciotta ¤ disse...

Eu lembro dessa aula heim rsrs Muito bom o texto PH !

Unknown disse...

Que legal, Sarinha!! Obrigado pela lembrança e pela presença, da qual me alegro! Beijos, PH.