domingo, 8 de maio de 2011

A mente é separada do corpo?

 
Filosofia não é poesia. Platão[1] fez questão de deixar claro: “exprimo-me sem metro porque não sou poeta.[2] Quanto ao método e quanto aos fins, filosofia e poesia são atividades bem diferentes. Certamente que isso não tem como conseqüência a conclusão de que não há tematização filosófica na poesia ou, o contrário, não há beleza na comunicação e temas filosóficos. Alguém pode alegar: “ora! E quanto ao filósofo alemão Nietzsche e os nietzcheanos (como o eminente G. Deleuze)?” Bem, a problemática é muito extensa e apenas posso dizer que o problema está relacionado com os usos da linguagem (e sugiro ao leitor dar uma olhada em um texto que publiquei neste blog, “Pensar o Absurdo”).
Abordaremos neste texto a Filosofia da Mente e seu problema fundamental: o problema mente-corpo. Para apresentar esse ramo de investigação filosófica uso as palavras do professor de filosofia da Universidade da Carolina do Norte, Wlliam G. Lycan[3]:
A filosofia da mente está repleta de questões muito interessantes: questões sobre consciência, identidade pessoal, sobrevivência à morte física, vontade livre, doença mental, papel da mente no comportamento, natureza da emoção, comparação entre a psicologia humana e a psicologia animal, e muitas outras. Contudo, cada uma dessas questões depende, em última instância, de uma única questão fundamental, chamada simplesmente de ‘problema da mente e do corpo’: o que é uma mente, per se, e qual sua relação com o corpo, com o físico de modo geral?”
Na abordagem dos problemas próprios da filosofia da mente sigo boa parte da tradição filosófica, incluindo certos setores da filosofia contemporânea que dialogam com a ciência, ao invés de repudiá-la, como os ramos que aproximam filosofia de poesia, ao eleger a lógica como o instrumento básico da atividade filosófica. Aqui, também, cabem alguns esclarecimentos antes de abordar o problema mente-corpo (peço humildemente paciência ao leitor, pois esse problema gera muita confusão e não tenho muito apreço por debates baseados na esquisita tese do “vale-tudo”).
“Lógico” é aquilo que nos permite [1] conceber (formar uma idéia; dizer quando algo é o caso), [2] compreender (ter acesso ao sentido de um enunciado) e [3] explicar (tornar inteligível ou claro, o que é ambíguo e obscuro), algo ou alguma coisa. Assim, o que é sem sentido (nonsense) é ilógico, já que é inconcebível, incompreensível e incognoscível (não posso formar uma idéia clara e distinta e não posso conhecer nem dar a conhecer).
De acordo com isso, temos que privilegiar a análise argumentativa (papel da lógica) e observar a razoabilidade das informações científicas, isto é, quem diz se algo é verdadeiro ou não é a ciência, não a filosofia. [4]
O filósofo Stephen Law apresenta uma escala de razoabilidade para crenças que não podem ou ainda não foram provadas, e oferece exemplos curiosos: [1] Extremamente razoável. Por exemplo: os objetos que estão diante de você são reais; [2] Muito razoável. Por exemplo: elétrons existem, embora não possamos vê-los; [3] Bastante razoável. Por exemplo: extraterrestres não inteligentes existem, dado o tamanho do universo; [4] Bastante insensato. Exemplo: Elvis não morreu; sua morte foi uma conspiração; [5] Extremamente insensato. Exemplo: elfos e fadas são reais.
As conclusões da ciência podem ser classificadas em: {a} Fraca: quando uma conclusão tem menos de 50% de chance de ser verdade. Assim, pensar que “Elvis não morreu” é insensato, porque é improvável, mas ainda assim é possível; {b} Moderada: quando uma conclusão tem entre 50% e 90% de chance de ser verdadeira, isto é, razoável chance de ser verdadeira, a partir da quantidade de evidências empíricas disponíveis; {c} Forte: quando uma conclusão tem mais de 90% de chance de ser verdadeira, isto é, alta probabilidade de ser verdadeira a partir da quantidade de evidências empíricas disponíveis. Assim, o filósofo pode perfeitamente formular argumentos sólidos.
Segundo Law: “Podemos não ter prova conclusiva de que crenças muito razoáveis são reais, nem de que outras bizarras são falsas – não podemos provar cabalmente que fadas não existem, p. ex. A crença nelas, porém, está na base da escala de razoabilidade.” (p. 223)
Podemos, agora, tendo sempre na lembrança tais considerações, voltar à nossa breve introdução do problema mente-corpo. Doravante apresentarei as observações feitas pelo Filósofo Paul Churchland[5], acerca da filosofia da mente:
A discussão pode começar diferenciando o que é substância do que é propriedade. Digamos que substância é tudo aquilo que existe por si, independente de outra coisa; propriedade é algo que não existe por si, mas depende de alguma coisa para existir (por exemplo: maciez, ser liso, ter comprimento, largura, altura, ter determinada posição no espaço, ter cor, ser dotado de peso etc.). Assim, uma maça é uma substância e “ser vermelha” é uma propriedade.
O corpo é uma substância e o desafio consiste em verificar se a mente é ou uma propriedade do corpo ou uma substância. A doutrina que afirma que a mente é uma propriedade do corpo, chama-se materialismo e a doutrina que defende que a mente é uma substância (e, portanto, não depende do corpo para existir) é o dualismo.
O dualismo foi desenvolvido por um dos maiores filósofos que se tem notícia: o francês René Descartes (1596-1650). Em referência à Descartes, o dualismo também é denominado de “dualismo cartesiano” (Cartesius era o nome latino de Descartes).
Para o dualismo, a natureza dos processos mentais é algo não-físico. Do lado oposto, o materialismo afirma que a mente é aquilo que o cérebro faz, portanto, propriedades físico-químicas da matéria. De acordo com Churchland, dentro dos círculos filosóficos e científicos são poucos os que defendem o dualismo, por razões que veremos logo abaixo.
Os argumentos (e suas críticas) em favor do dualismo são os seguintes:
[1] Argumento da Religião:
Já que a maioria das religiões são dualistas, não aceitar o dualismo tem como conseqüência rejeitar a própria religião. O que é afirmado por fé, é verdadeiro para o fiel por decreto, não por demonstração. A fé, por si só, contém a sua defesa. Se a religião afirma que o homem é um composto de carne e alma, o corpo como algo perecível e a alma como algo eterno e imaterial (substâncias distintas e separadas), então não há motivo para rejeitar o dualismo.
Crítica: para Churchland, a religião não tem credenciais confiáveis em matéria de questões científicas, basta observar temas como a posição da Terra no Universo, a epilepsia como manifestação do Diabo, a negação da existência de micróbios como agentes patológicos (considerando, ao contrário, as patologias como efeitos de bruxas) etc. Quando Giordano Bruno (1548-1600) disse, contrariando o poderoso clero católico, que as estrelas NÃO eram outros sóis, foi preso em Veneza, encarcerado durante sete anos e, por fim, queimado vivo!
Além da falta de credenciais da religião para assuntos científicos, rejeitar a herança religiosa é algo que muitos têm dificuldade por razões emocionais. As convicções religiosas são decorrentes de avaliações apaixonadas e também circunscritas aos eventos histórico-sociais, que são muito singulares e específicos. Daí a variedade espantosa de crenças religiosas incompatíveis.
[2] Argumento da Introspecção:
“Introspecção” quer dizer “observação interior”. Quando observamos o nosso universo mental, o que vemos? Certamente que não vemos uma rede neural com atividade eletroquímica. Observamos um estado mental vívido, rico em imagens, lembranças, pensamentos íntimos que ninguém tem acesso. O que percebemos, mesmo sonhando, em nosso estado interno, é claramente eventos que não podem ser classificados como materiais. Os sonhos não nos aparecem como algo que está localizado em um determinado espaço. Quando lembramos de algo que temos que fazer, as imagens não tem peso e nem cheiro. As idéias não sangram e nem tem largura. Os eventos espirituais são possíveis porque não são regidos pelas leis do mundo físico. Portanto, o dualismo acerta em afirmar que a mente é uma substância imaterial e separada do corpo.
Crítica: Por que acreditar que a observação interior (introspecção) revela a natureza das coisas como elas realmente são? Ora, mesmo a observação exterior direta não é confiável, por isso que observamos as estrelas usando variados instrumentos. O que o olho humano nos revela sobre o tamanho de uma estrela não passa de uma ilusão. Ao colocar a minha mão na frente do Sol, a impressão que tenho é a de que a minha mão é, de fato, maior do que o astro. Porém, sabemos pelo uso de outros instrumentos que a mão humana é infinitamente menor do que o Sol. Fica difícil confiar na introspecção, sabendo que a observação direta (seja interna ou externa), não revela a natureza das coisas como elas são. “A superfície vermelha de uma maçã não aparece como uma matriz de moléculas refletindo fótons em certos comprimentos de onda, mas é isso que ela é. O som de uma flauta não soa como uma sucessão de ondas de compressão senoidal na atmosfera, mas é isso que ele é. O calor do ar do verão não parece ser a energia cinética média de milhões de minúsculas moléculas, mas é isso que ele é. Se nossas próprias dores, esperanças e crenças não se parecem, ao olhar introspectivo, com estados eletroquímicos numa rede neural, isso talvez ocorra apenas porque a nossa faculdade de introspecção, da mesma forma que nossos outros sentidos, não é suficientemente penetrante para revelar tais detalhes ocultos.”[6]
[3] Argumento da Irredutibilidade:
Como fenômenos mentais tão complexos poderiam ser decorrentes de um sistema físico? Por exemplo: a linguagem e o raciocínio matemático são manifestações mentais tão elaboradas que não podem se restringir (reduzir) à matéria. Como apenas o arranjo adequado da matéria poderia gerar cálculos elaborados? A qualidade dos eventos mentais é tão rica que mal podemos exprimir (pense no orgasmo e na intensidade do cheiro de uma comida). Nada disso poderia ser reduzido a propriedades físicas. Logo, a mente é não-física. Experiências inexprimíveis indicam a não redutibilidade ao mundo físico.
Crítica: hoje, Século XXI, sabemos que o arranjo adequado da matéria pode efetuar cálculos que superam a capacidade humana, como os corriqueiros computadores que o leitor está usando neste exato momento. A menos que você admita que o computador é regido por forças espirituais e imateriais, devemos reconhecer que a capacidade mental para cálculos é, sim, reduzível a matéria. O mesmo se aplica a idéia de linguagem, usada pelos computadores (BASIC, FORTRAN, APL, LISP, PASCAL etc.).
[4] Argumento Parapsicológico:
Uma das mais famosas alegações para defender o dualismo é apelar para os fenômenos parapsicológicos: telepatia (leitura da mente); telecinese (controle de objetos materiais pela mente, precognição (visão do futuro), clarividência (conhecimento de objetos distantes), psicografia (capacidade de conversar com os mortos e descrever a comunicação dos espíritos a partir de um médium) etc. Os defensores do dualismo afirmam que tais fenômenos são reais e não-físicos, o que evidentemente contraria qualquer afirmação de que a mente é uma propriedade da matéria. Nesse caso, alega-se que manifestações espirituais como a reencarnação dão testemunho de que o corpo é apenas um invólucro material, que contém o espírito. Logo, o dualismo é verdadeiro.
Crítica: Churchland considera que a maior dificuldade para o argumento dos fenômenos parapsicológicos é mais simples do que possamos imaginar: ninguém nunca conseguiu repetir um único fenômeno parapsicológico. Ora, podemos repetir diversas vezes certos experimentos para todos os interessados queiram ver como São Tomé. Por exemplo: o nitrato de níquel é sólido em temperatura ambiente. Podemos facilmente dissolvê-lo em uma solução aquosa de coloração verde, e repetir tal procedimento quantas vezes forem necessárias. Quantos registros de telepatia foram repetidos e estão disponíveis na Universidade X para qualquer um testemunhar? “Apesar dos pronunciamentos e relatos sem fim que aparecem na imprensa popular, e apesar do fluxo constante de pesquisas sérias em torno de tais questões, não existem provas significativas ou dignas de confiança de que tais fenômenos nem mesmo existam. A ampla lacuna entre a convicção popular com respeito a essa questão e as provas efetivas é algo que por si só exige pesquisa. Pois não existe um só efeito parapsicológico que possa ser reproduzido repetidamente, ou de modo confiável, em algum laboratório equipado de modo adequado para realizar e controlar experiências. Nem um sequer. Pesquisadores honestos têm sido repetidamente tapeados por charlatões ‘paranormais’ com habilidades derivadas da atividade dos mágicos, e a história desse tema é, em grande parte, uma história de ingenuidade, seleção de provas, controles experimentais precários, e fraude pura e simples, até mesmo por parte de um ou outro pesquisador.[7]
Além dos já citados argumentos a favor do dualismo e suas críticas, cito brevemente apenas três em favor do materialismo:
[1] Argumento da simplicidade:
De acordo com um princípio lógico, conhecido em filosofia como “Navalha de Ockham”: “não se deve multiplicar os problemas além do estritamente necessário para explicar um fenômeno”. Assim, o materialismo é uma explicação mais aceitável por não ter que apelar para outros problemas. Se o dualismo estiver certo, então teremos que explicar como é possível algo imaterial e totalmente diverso das leis que regem a matéria, existir. Ao passo que uma explicação materialista se sustenta somente com os fenômenos já conhecidos e, portanto, é suficiente.
[2] Argumento da dependência neural:
O prêmio Nobel de medicina, Eric Kandel, escreveu em um livro que é a base dos estudos em Neurociência: “O que chamamos de mente é um conjunto de operações realizadas pelo sistema nervoso. As ações do sistema nervoso compreendem não apenas os comportamentos motores relativamente simples, como caminhar ou comer, mas todas as ações cognitivas complexas que acreditamos ser essencialmente humanas, como pensar, falar e criar obras de arte. Concluindo, todos os distúrbios comportamentais que caracterizam as doenças psiquiátricas – distúrbios do afeto (sentimentos) e da cognição (pensamento) – são distúrbios da função do sistema nervoso.” [8]
São palavras chocantes apenas para uma parte da população que nunca ouviu falar em tomografia computadorizada, teste de paternidade, ressonância magnética, DNA, genética e... pesquisa científica. Os avanços na área de investigação do sistema nervoso foram tão grandes no século XX, que a década de 90 ficou conhecida como “Década do Cérebro”. Para a maior parte dos cirurgiões que todos os dias abrem alguma cabeça, ou para os neurologistas que prescrevem medicamentos para seus pacientes, prevalece a concepção do Nobel de medicina: a mente é o que o cérebro faz.
O argumento da dependência neural é esmagador: deveríamos esperar que se o dualismo fosse verdadeiro e o materialismo falso, para qualquer dano ao cérebro, tal prezuízo não acarretasse uma deterioração mental; isto é, se a mente é não-física, então um estrago físico não pode afetar o que não é físico. Ora, a lista de distúrbios de ordem física, que afetam as supostas atividades não-fisicas (como lembrar), é tão extensa que seria um sacrilégio citar uma. Remeto o leitor para a obra “Princípios da Neurociência”. Churchland apresenta uma ótima introdução ao funcionamento do sistema nervoso, de modo simples, e extraí conseqüências para o ramo da filosofia que ele denominou de Neurofilosofia.
[3] Argumento da Teoria Evolutiva: de acordo com a Biologia, a partir do darwinismo, somos criaturas da matéria. Esse argumento é demasiado longo para ser apresentado em breve comentário, como este texto, de tal modo que me satisfaço apenas mencionando sua existência.
Para finalizar este texto, devo dizer que há uma crítica feroz ao materialismo. Porém, logicamente que uma crítica ao materialismo não significa que o dualismo é verdadeiro. Podemos formular muitas objeções ao materialismo, mas isso nada tem haver com a defesa do dualismo. Na verdade, mesmo o crítico mais exasperado do materialismo, ninguém menos que John R. Searle, professor da Universidade da Califórnia e certamente um dos mais importantes filósofos vivos, aceita a tese do dualismo. Em uma de suas obras em que o filósofo tece críticas ao materialismo, diz: “Atualmente, porém, até onde posso ver, ninguém acredita na existência de substâncias espirituais imortais, a não ser no terreno religioso. Pelo que conheço, não há motivações puramente filosóficas ou científicas para a aceitação da existência de substâncias mentais imortais.”[9]
As críticas ao materialismo devem ser observadas e a leitura de Searle é um bom começo. Por outro lado, sobre o dualismo, percebe-se uma assustadora tendência, que talvez não tenha retrocesso: é extremamente insensato pensar no homem como tendo um corpo material que serve de invólucro para um espírito imaterial.
Paulo Henrique Castro.

[1] Platão. República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. s/d, 8ª. Ed. (passo 393d).
[2] No original em grego: φράσω δέ άνευ μετρου οΰ γάρ είμι ποιητικός. Cf. Republic. Harvard University Press (Loeb Classical library). 1999, p. 228.
[3] Lycan, W. G. in Bunnin, N. & Tsui-James, E. P. Compêndio de Filosofia. Edições Loyola: São Paulo, 2007, 2ª. Edição; p. 181.
[4] Sobre isso, embora seja imensa a literatura sobre o assunto, cito apenas três obras: [1] Copi, I. Introdução á Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978. [2] Branquinho, J. Enciclopédia de termos lógicos-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006; p. 574. [3] Mortari, C. Introdução à Lógica. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001.
[5] Churchuland, P. Matéria e Consciência. São Paulo: Editora UNESP, 2004; p. 25.
[6] Idem, p. 38.
[7] Idem, p.41-42.
[8] Kandel, E. R.; Schwartz, J. H,; Jessell, M. Princípios da Neurociência. São Paulo: Editora Manole, 2003, p. 5.
[9] Searle, J. R. A Redescoberta da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 43.

2 comentários:

REGINA disse...

Anjo meu...descobri com esse texto que antes de te conhecer eu era substância e agora sou propriedade(sorrisos)...eu te amo.Rê

Unknown disse...

Obrigado, meu amor!