domingo, 22 de maio de 2011

“Emancipar-se da escravidão mental”

§ 1. O título desta postagem foi tirado de uma canção de Bob Marley (Redemption Song). A sentença sugere que há dois tipos de escravidão: aquela que se faz pela interdição física e a que ocorre quando só podemos pensar o que todos pensam. Ambas são perversas.
§ 2. No mundo de hoje a escravidão física diminuiu na proporção inversa que a escravidão mental aumentou. A escravidão mental está intimamente ligada ao surgimento da Indústria Cultural, no início do século XX.
§ 3. “Indústria Cultural” significa produção em escala industrial de itens para se consumir em situações de entretenimento. Música, livros, filmes, programas de televisão, grupos de pagode/sertanejo e outros tantos itens são fabricados para vender sabonetes, refrigerantes, roupas, ilusões, distrações, crenças, sonhos e estilos de vida. O consumo de cultura se limita ao consumo daquilo que a indústria chama de “tendências”. O compromisso da Indústria Cultural nunca é com o desenvolvimento e formação intelectual do indivíduo. O slogan fundamental é: “quanto mais idiota melhor”.
§ 4. Quem assiste a um programa de auditório, portanto, absorve padrões comportamentais forjados como “tendências” e, além de ser incitado a comprar determinados itens, tem a mente formatada segundo o padrão do programa. O consumidor não é instigado a pensar e muito menos a desenvolver suas potencialidades criativas e críticas (discernimento), como na Cultura Erudita e na Cultura genuinamente Popular. Cartola faz pensar, Guimarães Rosa nos exige preparo intelectual, mas... Luan Santana e Faustão promovem... “tendências”.
§ 5. Há um grupo de filósofos alemães que ficou conhecido como “Escola de Frankfurt”; Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1969) e Herbert Marcuse (1898-1979), entre outros. Essas mentes atentas tiveram que migrar para os USA, em 1934, fugindo de Hitler. O problema foi a chegada: os filósofos alemães se surpreenderam com a indústria americana do entretenimento (o nascer da Indústria Cultural). Não estavam acostumados com a produção em massa de um tipo de bem cultural meramente feito para distrair, divertir, vender, envolver e... idiotizar. Qual a diferença entre o cinema americano e o cinema europeu (asiático, latino-americano, enfim, fora da indústria de Hollywood)?
§ 6. Os frankfurtianos logo perceberam a grande invenção dos americanos: a cultura fast-food. A idéia central é bem fácil de captar. “Fast-food” é um tipo de comida que entra por um buraco e sai rapidamente por outro. Pouco (ou nada) de nutritivo fica no corpo (e na mente). As pessoas só precisam encher a barriga e tudo mais segue o seu curso normalmente. Hollywood soube muito bem usar este tipo de concepção cultural. Imaginaram: “as pessoas não precisam pensar diferente, pois todos comem hambúrgueres do mesmo modo”. É fácil imaginar o quanto isso provocou ânsia de vômito em Marcuse, que era professor da Universidade da Califórnia, onde fica Hollywood. (Nem ao menos precisamos ler uma de suas obras primas: “Eros e Civilização.”)
§ 7. No belíssimo livro de Platão, “Teeteto”, Sócrates comparou as dificuldades de pensar com as dores do parto. Para ele estava claro que pensar, parir idéias, provoca “dores lancinantes”. O sucesso da cultura fast-food está justamente aí. Assistir uma novela não dói, porque não nos faz pensar. Assim, não provoca desconforto. Porém, assistir “Terra em Transe” de Glauber Rocha, provoca “dores lancinantes”.
§ 8. Os defensores da cultura fast-food responderiam: “ora, mas por qual razão eu iria assistir a um filme que me provoca desconforto, exigindo muito esforço intelectual?” E é aí que começa a escravidão mental: nos acostumamos tanto com a lavagem dada aos porcos, que é inevitável pensar como um. Ler Dostoiévski é um bom vermífugo para curar suínos.
§ 9. Vamos pensar assim: o enredo dos filmes e novelas de sucesso segue um modelo. O herói se apaixona, a mocinha sofre por causa das ações malévolas de uma megera, o casal se separa; o herói segue seu destino, se envolve com outra, ainda que a amada não lhe saia da cabeça e no final... o final todos já sabem: o herói e a mocinha se encontram e são felizes para sempre. Sim, há outros modelos: um herói truculento com cérebro de minhoca tem que salvar um grupo de prisioneiros ou salvar o mundo do iminente impacto de um asteróide medonho etc. (note que nos dois casos o herói é sempre americano). Mas por que diabos um enredo tão previsível atrai tanta gente? Uma resposta possível: escravidão mental. Precisamos hoje dos mesmos restos de comida (lavagem) de ontem, porque não saberíamos pensar o mundo diferente.
§ 10. Michel Foucault era um severo crítico dos métodos de confinamento e da fabricação da docilidade, próprios da sociedade industrial. Quem lê “Vigiar e Punir”, consegue distinguir as sutis formas de dominação. “Sutil” é uma palavra importante no livro de Foucault: quer dizer “quase imperceptível”. Algumas pessoas não conseguem perceber a diferença entre criar suínos em uma granja e criar porcos caipiras no pasto (daí a dificuldade de diferenciar os programas apresentados no sábado, na televisão aberta, dos programas que são oferecidos no domingo).
§ 11. É possível emancipar-se da escravidão mental? Enquanto pensamos, algumas palavras de Chico Buarque:
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro
Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho
Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto.
Paulo Henrique Castro.

8 comentários:

REGINA disse...

Anjo meu adorei esse texto, é a pura verdade sobre como a maioria das pessoas preferem essa vidinha ridícula...e o pior de tudo é que temos que fazer parte de algum modo!
Redemption Song - Bob Marley SENSACIONAL!!!
Te amo

Rota Romântica-Valnora disse...

É...
Pensar é muito perigoso. Pois quem pensa é livre, faz perguntas, questiona, logo... incomoda.
É por isso que ELES, os donos do poder, criaram uma industria para distrair, iludir, idiotizar.
"Pão e circo", lembram?
Parabéns, Paulo Henrique
VALMIR BARBOSA

Unknown disse...

Obrigado Rê! Obrigado Valmir! Muito obrigado mesmo!!!!

Petric Moreno disse...

Fiquei totalmente em choque quando li essa postagem! É complicado admitir que a desintoxicação não é algo simples de ser feito, e se somos esse instrumento de luz para a escuridão em que vivem os outros, caímos no mito da caverna de Platão, e somos mortos pela massa desprovida. Mas, em relação ao texto, amei. Parabéns PH!

Unknown disse...

Obrigado, Petric! Fiquei muito feliz com a sua presença e com o seu comentário inteligente. Penso como você: a saída ou permanência na caverna, bem como a tentativa de libertar os companheiros da escuridão, são escolhas extremamentes árduas! Obrigado pela presença, abraço, PH.

Andréa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Andréa disse...

Excelente texto,Paulo!Só de pensar que 'Chicos' estão cada vez mais sendo substituídos por 'Naldos', me embrulha o estômago! Comida estragada...não dá pra engolir! Realmente as pessoas estão aceitando tudo o que lhes oferecem, sem ao menos questionarem...'Bem-vindos à Matrix...'

Unknown disse...

Oi Andréa! Obrigado! Seu comentário me fez lembrar Ruben Alves: o estômago é o órgão mais inteligente do corpo humano, já que rejeita imediatamente o que é porcaria! Obrigado pela visita, grande beijo!