domingo, 16 de janeiro de 2011

Lições de Filosofia 2

O que é Filosofia?

Estranhamente há quem diga que “não existem verdades”; há quem diga de alto e bom tom: “tudo é relativo.” Pense a respeito, leitor.
Agora vamos admitir, por absurdo, que a sentença “não existem verdades” seja verdadeira. Nesse caso já existe uma verdade (“que não existem verdades”); mas espere um pouco (pegue fôlego). Ora, se o que a sentença expressa for verdade, então ela é falsa, já que é verdadeira. Chegamos, então, a um belo paradoxo que nos força a aceitar que, de fato, existem verdades. A Filosofia, como veremos, há tempos busca verdades.
A multiplicidade de significados para a palavra ‘Filosofia’ é tão extensa[1], que não é possível apresentar uma definição que seja honesta com a longa história da própria Filosofia.
Para o nosso interesse, porém, e por brevidade, vamos adotar a definição aristotélica de Filosofia: “[...] é justo chamar a filosofia de ciência da verdade.” [2] Para Lalande[3], a definição de Aristóteles ilustra o caráter de saber racional da Filosofia.
Definir a Filosofia como saber racional nos é valioso por um motivo: dar ênfase ao uso da razão como instrumento do saber. Para Aristóteles o conhecimento da verdade é o conhecimento das causas, isto é, qualquer coisa que explique o porquê de algo.
Evidentemente que a palavra “ciência” não foi usada por Aristóteles no sentido exato que usamos hoje, portanto a Filosofia não é ciência como a Biologia é, por exemplo. Mas isso não significa dizer que a Filosofia é uma disciplina distante da ciência, ao contrário. Sobre isso o filósofo John R. Searle escreveu em 1996 o seguinte:
A filosofia é agora, assim acredito, um assunto muito mais interessante do que era uma geração atrás, pois não é mais vista como separada e isolada das outras disciplinas. Em particular, ela é agora vista pela maioria dos filósofos analíticos como contígua e entrelaçada com as ciências. Minha própria concepção, que acredito ser bastante compartilhada, é que palavras como “filosofia” e “ciência” são em muitos aspectos enganosas, se fazem supor a existência de formas mutuamente excludentes de conhecimento. Em vez disso, parece-me que há apenas conhecimento e verdade, e que nas atividades intelectuais estamos visando principalmente ao conhecimento e à verdade.”[4]
Qual é, então, a diferença entre Filosofia e ciência? Para Searle o que difere tais disciplinas é que a Filosofia tem um conteúdo mais geral e as ciências um conteúdo mais sinótico, além da característica da Filosofia ser orientada de maneira mais conceitual e lógica (em oposição ao empirismo e pragmatismo das ciências).
Filosofia é poesia? O saber poético está vinculado com a provocação e expressão das emoções. Certamente que há aspectos filosóficos em poemas, como também há beleza na Filosofia. Todavia, esse mero detalhe não é suficiente para confundir as duas áreas, do mesmo modo que não confundimos água com refrigerante só por se tratar de líquido. Ao fazer poesia o poeta não está comprometido com rigor lógico, com clareza (a ambigüidade é sempre usada na poesia), e com a busca da verdade. Em uma poesia as pedras podem voar, o Universo pode ser uma criança, a imaginação pode ter asas, o amor pode ser pesado etc.
Há também um uso muito comum da palavra ‘Filosofia’ como estilo de vida, como na frase “minha filosofia de vida é trabalhar na praia”. Esse é um sentido que, definitivamente, estará longe do que veremos neste estudo. Estilo de vida nada tem haver com a noção acadêmica de Filosofia. Claro, o ideal de vida para Aristóteles era a sabedoria, mas essa é outra questão.
A Filosofia também é confundida com a tarefa da religião. Outra vez o critério de distinção é o uso da racionalidade: “A religião trata de muitas questões sobre as quais a filosofia também se debruça, mas por vezes atribui mais valor à fé do que à aplicação das faculdades da razão.”[5]
Para o fiel, a palavra do sacerdote ou de seu livro Sagrado é suficiente. Não há porque duvidar de nada. Para o filósofo, contudo, enquanto não se demonstrar algo como evidente, duvidar é um ofício.
Compreendemos com Immanuel Kant (1724-1804), importante filósofo alemão, que:
Ninguém que não possa filosofar pode-se chamar de filósofo. Mas filosofar é algo que só se pode aprender pelo exercício e o uso próprio da razão. [...] Como é que se poderia, a rigor, aprender a filosofia? Não se pode aprender filosofia já pela simples razão que ela ainda não está dada. [...] O verdadeiro filósofo, portanto, na qualidade de quem pensa por si mesmo, tem que fazer um uso livre e pessoal de sua razão, não um uso servilmente imitativo. [...] Por conseguinte, se quisermos nos exercitar na atividade de pensar por si mesmo ou filosofar, teremos que olhar mais para o método de nosso uso da razão do que para as proposições mesmas a que chegamos por intermédio dele.”[6]
Claro que quando Kant fala do “uso próprio da razão” ele não quer dizer que a razão é relativa; o filósofo alemão apenas quer pôr em relevo que filosofar não é imitar o que outros filósofos já disseram. Veremos em uma futura postagem, como as confusões e desacordos surgem justamente por não exercitarmos a nossa razão e por problemas vinculados ao funcionamento da linguagem. Aqui cabe um esclarecimento: aprender a filosofar não é equivalente a ter uma razão infalível, na verdade se a razão fosse infalível a Filosofia teria terminado na Grécia Clássica com Aristóteles.
O que importa em filosofia não é fazer indagações sem sentido, mas encontrar um argumento correto. No domínio da racionalidade busca-se argumentos a prova de erros: argumentos incontestáveis. Incontestáveis?
A palavra ‘incontestável’ pode parecer estranha, afinal sempre temos uma imagem caricatural do filósofo como um indivíduo que pergunta, pergunta, sem querer respostas. Também ‘incontestável’ pode sugerir uma postura intelectual dogmática. Como uma posição dogmática não é compatível com a postura crítica do filósofo, admite-se apressadamente que argumentos incontestáveis nada têm haver com a atitude filosófica. Todavia, um argumento incontestável não é o mesmo que um tema incontestável. Pense um pouco.
Que um tema seja controvertido, isto é, que tenha dois lados, ninguém precisa fazer Filosofia para saber, basta abrir os jornais. Mas lidar com temas controvertidos não significa estar em uma arena de vale-tudo (mesmo o vale-tudo tem regras, a propósito).  Não podemos nos enganar: a atitude filosófica também tem regras. Regras rigorosas, aliás. É por isso que a Filosofia não vira moda, não aparece no Gugu, nem no Faustão e nem no Big Brother.
Em um de seus diálogos (“Teeteto”, 155 d), Platão afirmou que a Filosofia tem origem na admiração (θαυμάζειν). Para ele, a verdadeira característica do filósofo é a capacidade de se admirar com os acontecimentos que cercam o ser humano. Aristóteles (384-322 a. C.), discípulo de Platão, concordava com seu mestre e disse:
De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe [...]” (Metafísica, 982 b 10-15).
De acordo com Aristóteles, “[...] os homens filosofaram para se libertar da ignorância [...]”. Estar admirado, perplexo e espantado com algo, provoca dúvidas. A dúvida é um requisito do ato de filosofar e é expressa por meio de perguntas, indagações, questionamentos. Inevitavelmente, a dúvida provoca o diálogo (ponto importante para quem pretende filosofar).  A dúvida revela a ignorância, ao contrário da opinião que mascara a ignorância. Um dos maiores filósofos modernos, René Descartes (1596-1650), afirmou:
Fui nutrido nas letras desde a infância, e por me haver persuadido de que, por meio delas, se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei todo esse curso de estudos, ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância.” [7]
Uma das coisas mais importantes que Descartes indicava a respeito de seu método de filosofar, era a fundamental diferença entre desconfiança e presunção. “Presunçoso” é aquele indivíduo que tem uma excessiva confiança em si mesmo. Assim, Descartes afirmava pender mais para a desconfiança do que para a presunção na busca pela verdade.
A razão, segundo Descartes, é “[...] o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso [...].”[8] Descartes também denominava a razão de “bom senso” e afirmou que tal capacidade é “naturalmente igual em todos os homens.”
Mas se todos os homens são naturalmente racionais, por que há tantos desacordos sobre o que é verdadeiro e o que é falso? Responde o autor das Meditações: “A diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas.” [9]
Há alguns comentários sobre as palavras de Descartes. Primeiro, Descartes nunca disse que os homens são somente racionais; segundo, Descartes nunca disse que os homens são infalíveis em seu exercício racional, ao contrário: “E há mesmo muitíssimos homens que em toda a sua vida jamais percebem coisa alguma de maneira suficientemente correta para formar um juízo certo acerca disso [a verdade].”[10]
De fato onde encontramos desacordo podemos observar, com maior freqüência, que as “vias são diversas” e as palavras não são expressões das mesmas idéias (como ocorrem em expressões equívocas, ambíguas). Veremos melhor sobre a questão do desacordo na próxima lição.
O método cartesiano de filosofar consistia em quatro preceitos gerais [11]:
[1] Dúvida e Evidência:
O Primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção [“A ‘precipitação’ consiste em julgar antes de se ter chegado à evidência, e a ‘prevenção’, na persistência dos ‘prejuízos da infância’. [12]], e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse como clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.”
Enquanto se tem dúvida sobre algo, o mais sensato é suspender o juízo. Se precipitar, segue Descartes, é julgar sem base; emitir julgamentos apressados. Tipicamente as pessoas julgam como se tudo fosse evidente por si só, em função da “persistência dos prejuízos da infância”, isto é, das crenças adquiridas de forma inquestionável. Com base em que você, leitor, pode afirmar que sua existência é independente da existência de uma máquina que comanda o Universo? Como você de fato sabe que existe, afinal você bem poderia ser apenas um efeito provocado pela mente de Deus, portanto não seria você, certo? Bem, a pergunta pode ser mesmo esquisita. Porém, como você a responderia? Descartes ofereceu um bom argumento para provar a existência do EU (o famoso “argumento do Cogito”). Vejamos alguns detalhes.
O primeiro ponto desta primeira regra é não acolher alguma coisa como verdadeira, a não ser que seja evidente. Para Descartes, encontra-se a verdade toda vez que encontramos uma idéia clara e distinta: “[...] parece-me que já posso estabelecer como regra geral que todas as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras.” (3ª. Meditação § 02; p. 278)
O critério de verdade, portanto, é o critério de certeza, daquilo que é indubitável. Enquanto houver a menor razão para duvidar, seja algo confuso, seja algo obscuro, nada deveria ser incluído ou mantido em nossos juízos. Por outro lado, afirma Descartes: “[...] mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, do que as que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas.” (1ª. Meditação, § 02, p. 258)
O segundo ponto da regra é que esse critério de certeza evita a precipitação (como já vimos, afirmar algo ou negar algo antes de chegar ao indubitável, a evidência) e também evita (prevenção) também aquele traço comum de insistir em manter os prejuízos herdados por meio da tradição, da educação dos costumes.
Desse modo, duvidando, desconfiando metodicamente, foi que Descartes chegou a primeira verdade (o “ponto fixo”, o fundamento, do qual será derivada outra verdade): “De sorte que, após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.” (2ª. Meditação, § 04, p. 266-267)
[2] Análise/Decomposição:
“O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.”
Por exemplo, para resolver o problema do cogito Descartes divide o problema em várias parcelas e as examina uma a uma nas Meditações:
(a)     § 1-3. Procura uma primeira certeza (o ponto fixo).
(b)    § 1-4. Conquista da primeira certeza: “eu sou, eu existo”.
(c)     § 5-9. Determinação da essência do EU; reflexão sobre a primeira certeza e conquista da segunda: “sou uma coisa que pensa” (res cogitans).
 [3] Colocar em ordem (do mais simples até o mais complexo):
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.”
Descartes não só divide o problema, mas também o decompõe os elementos do problema, isto é, ordena do mais simples ao mais complexo para melhor resolução das dificuldades. A ordenação, desse modo, compreende a divisão (separação das parcelas); a decomposição (buscar os elementos mais simples) e também a ordem (combinação dos elementos por dependência gradual).
O resultado, como nas Meditações, é uma “cadeia de razões” em que uma verdade é deduzida da outra: Eu penso; se penso, existo durante o tempo em que penso. Posso concluir que sou uma coisa que pensa; se sou uma coisa que pensa, então o espírito é algo mais fácil de conhecer do que o corpo etc.
[4] Revisão/Enumeração:
E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.”
Neste último preceito Descartes insiste na exigência de que algo só pode ser aceito no sistema de pensamento se for rigorosamente examinado e reexaminado.
É muito comum ouvir que a Filosofia é mais interessada em perguntas do que em respostas. As indagações, como vimos, surgem da capacidade de se admirar com as coisas no mundo. Mais não é verdade que o filósofo se interesse mais por perguntas do que por respostas, caso contrário jamais buscaria responder indagação alguma e ficaria se perguntando sobre as coisas infinitamente. Descartes usou a dúvida apenas para chegar a verdade, daí seu processo também ser chamado de “dúvida metódica”. A indagação filosófica é, portanto, um recurso racional.
A visão do filósofo como um perguntador que só tem interesse nas perguntas é uma caricatura. Uma visão deturpada da filosofia profissional. Ora, o compromisso da indagação filosófica é justamente responder. O mais importante é o tipo de resposta que é dada para a pergunta que foi feita.
Se a indagação é importante, a resposta não é menos importante do que a pergunta. Prova disso é a constante insatisfação do filósofo grego Sócrates com as respostas que lhe eram dadas. Claro que suas perguntas eram embaraçosas, mas as respostas tinham que ser muito elaboradas. De tão laboriosas, Sócrates comparou as respostas filosóficas com o parto. Do mesmo modo que dar a vida dói, pensar também dói. Disse Sócrates:
 “Neste ponto, os que convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é que minha arte sabe despertar ou acalmar. [...] Entrega-te, pois, a mim, como a filho de uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular alguma questão, procura responder a ela do melhor modo possível.” (Teeteto, 151 a-c)
Não é qualquer resposta que satisfaz as indagações de Sócrates. Isso apenas demonstra que o filósofo é rigoroso e exigente no tipo de resposta que pode ou não atender as suas indagações. Quanto a fazer perguntas, o próprio Sócrates afirma não doer tanto quanto parir a resposta. O filósofo grego se colocava (com suas questões) como um coadjuvante.
Se uma resposta não pode ser indubitável, ao menos pode ser razoável. O filósofo Stephen Law apresenta uma escala de razoabilidade para crenças que não podem ou ainda não foram provadas, e oferece exemplos curiosos: [1] Extremamente razoável. Por exemplo: os objetos que estão diante de você são reais; [2] Muito razoável. Por exemplo: elétrons existem, embora não possamos vê-los; [3] Bastante razoável. Por exemplo: extraterrestres existem, dado o tamanho do universo; [4] Bastante insensato. Exemplo: Elvis não morreu; sua morte foi uma conspiração; [5] Extremamente insensato. Exemplo: elfos e fadas são reais.
Segundo Law: “Podemos não ter prova conclusiva de que crenças muito razoáveis são reais, nem de que outras bizarras são falsas – não podemos provar cabalmente que fadas não existem, p. ex. A crença nelas, porém, está na base da escala de razoabilidade.” (p. 223)

 Paulo Henrique Castro






Notas:
[1] Abbagnano, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
[2] Aristóteles. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002: Livro α, 993 b 19.
[3] Lalande, A. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[4] Searle, J. R. In Bunnin, N. & Tsui-James (Orgs.). Compêndio de Filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2ª. Edição, 2007; p. 12.
[5] Law, S. Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008; p. 18.
[6] Kant, I. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999; p. 42-43.
[7] Descartes, R. Discurso do Método. São Paulo: 1996, editora Nova Cultural. P. 67.
[8] Descartes, R. Discurso do Método. São Paulo: 1996, editora Nova Cultural. P. 65.
[9] Idem.
[10] Descartes, R. Princípios da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
[11] Idem, p. 78-79.
[12] Notas de Gérard Lebrun.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Lições de Filosofia 1

N
o final do século VII a. C. e início do século VI a. C., surge nas colônias gregas da Ásia Menor, na cidade de Mileto, na Jônia, um modo peculiar de pensar: a Filosofia (φιλοσφία)[1]. O que significa exatamente “um modo peculiar de pensar”?
Segundo Diôgenes Laêrtios[2], a palavra  φιλοσφία foi inventada por Pitágoras de Salmos, no seguinte episódio: assim que Pitágoras chega à cidade de Flús, o tirano Lêon lhe perguntou quem era ele e Pitágoras respondeu: sou um φιλοσοφός (filósofo). Pitágoras explicou o adjetivo usando os Grandes Jogos gregos comparando-os a vida: uns comparecem para lutar, outros para fazer negócios e, por fim, havia os que compareciam para ver, os espectadores. Os que lutam, buscam a fama e os que negociam, ambicionam os ganhos. Mas os filósofos são como os espectadores: ávidos pela verdade.
Desde o início que a especificidade do trabalho filosófico está relacionada com a busca pela verdade. Os pensadores gregos começaram a ficar insatisfeitos com as explicações dadas pela tradição (notadamente Hesíodo e Homero, fontes da mitologia grega), para justificar a realidade. A insatisfação foi só o início; foi, por assim dizer, certo estado de espírito. O mais importante foi feito depois. As indagações e explicações mitológicas foram substituídas por indagações e explicações pautadas em categorias lógicas, racionais. Ou seja, por “categorias lógicas” entendem-se operações cognitivas movidas por uma desconfiança nas explicações mágicas sobre as origens do universo, das coisas e dos homens. Ora, eventos tão complexos ocorrendo no universo não poderiam ser explicados recorrendo a conflitos de vaidades entre os deuses. A Filosofia inaugura uma atitude radical de oposição a todo tipo de explicação que recorra à magia.         
De fato, explicações míticas ainda estão presentes nos fragmentos manuscritos dos primeiros filósofos (Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Pitágoras, Xenófones, Heráclito, Parmênides e outros). Até mesmo em Platão e Aristóteles é possível identificar a influência de seitas da época, como os órficos. Todavia, de modo paulatino, as categorias lógicas vão se distanciando das explicações meramente mágicas e emocionais, para chegar, já com Aristóteles, caracterizadas pelas exigências da razão. Não há como negar que, desde as suas origens até os dias de hoje, a Filosofia possui uma constante, um traço indelével: a explicação racional.
         Portanto, e de acordo com o titular da cátedra de História da filosofia Antiga da Universidade de Milão, Giovanni Reale, a Filosofia surgiu com características muito peculiares e definidoras:

(1) O conteúdo da Filosofia: o que se convencionou chamar de Filosofia pretende explicar a totalidade das coisas, toda a realidade. Como indagou o primeiro filósofo, Tales de Mileto: “qual é o princípio de tudo?”
(2) O método da Filosofia: a Filosofia se vale de explicações puramente racionais. Nas palavras de Reale, “O que vale em filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica: é, numa palavra, o logos. Não basta à filosofia constatar, verificar dados de fato, coletar experiências: a filosofia deve ir além do fato e das experiências para encontrar as suas razões, a causa, o princípio.”[3]
(3) O escopo da Filosofia: a filosofia busca a verdade por si mesma, não tendo nenhuma pretensão de ser prática ou de qualquer aplicabilidade. Desse modo, o objetivo da filosofia é meramente contemplativo, teórico.

Com essas três características, afirma Reale, “[...] é possível estabelecer aquilo que de direito merece ser chamado de filosofia, e aquilo que também de fato, a partir de Tales, fizeram todos os que mereceram o nome de filósofos”.[4]
Platão (427-348 a. C.), filósofo grego, comparou a avidez do filósofo com a amabilidade de um cão[5]: um cão pouco tolera a presença de um estranho. Em contrapartida, o cão acolhe muito bem uma pessoa com quem já está familiarizado, uma pessoa que já conhece[6]. O cão é amigo de quem conhece e não suporta bem o que desconhece. Em que consiste a natureza da filosofia? Justamente em distinguir uma “visão amiga e inimiga” baseando-se no conhecimento das circunstâncias e não na ignorância dos fatos. Certamente Platão usou essa alegoria pensando na própria palavra φιλοσφία, que quer dizer “amigo da sabedoria”. Assim, a primeira característica da filosofia é o discernimento. Mas, antes que alguém chame um cão de filósofo, devemos entender de um modo ainda mais radical o que Platão assinalou como a capacidade de conhecer distintamente o mundo.
O filósofo não deseja parte da sabedoria, mas, sim, a totalidade do saber, diz Platão em outro trecho[7]. Em outras palavras o filósofo tem fome de saber. Ademais, deve ter maturidade para discernir. Diz Platão[8]:
Ora, daquele que tem aversão às ciências, sobretudo sendo jovem, e ainda sem discernimento para saber o que é bom e o que não é, não diremos que gosta da ciência nem da filosofia; tal como daquele que tem aversão à comida, não diremos que tem fome, nem que está desejoso de alimento, nem que é comilão, mas que está sem apetite! [...] Mas àquele que deseja prontamente provar de todas as ciências e se atira ao estudo com prazer e sem se saciar, a esse chamaremos com justiça filósofo, ou não?
Também, continua Platão, não basta ter a capacidade de discernir e gostar de aprender, caso contrário, muitos indivíduos seriam chamados de filósofos. Então, quais podem ser denominados de filósofos? “Aos amadores do espetáculo da verdade[9]. Discernir, para um filósofo, reside na capacidade de distinguir o que é mera aparência daquilo que de fato é. Os sentidos podem nos enganar e só a razão pode nos revelar a realidade por trás das aparências.
A filosofia é uma busca de conhecimento racional. Desse modo, ao contrário do que muitos pensam, não é poesia. Platão[10] fez questão de deixar claro: “exprimo-me sem metro porque não sou poeta” (φράσω δέ άνευ μετρου οΰ γάρ είμι ποιητικός). Estranha afirmação, essa do filósofo grego. Ora, como bem sabemos[11], a poesia tinha um papel fundamental na cultura grega. Os cidadãos gregos, cedo tinham contato com a poesia e o saber poético. Também sabemos do fato de Platão ter pertencido a uma família aristocrática e que contava com uma excelente educação, o que incluía o saber poético. De certo, portanto, que Platão não desconhecia a métrica (o conjunto de regras que rege a medida, o ritmo, e a organização do verso, da estrofe e do poema como um todo). Então, por que a advertência de Sócrates feita à Adimanto, na referida passagem da “República”, supra mencionada? A resposta é simples. Platão faz lembrar nessa passagem qual é o seu propósito: filosofar; e fazer Filosofia não é fazer poesia.
De acordo com Platão (República, 582 d), o instrumento necessário para julgar bem pertence ao filósofo. E esse instrumento é o λόγος (razão). O que quer dizer razão? Platão distinguia o mundo em “mundo superior” (o mundo do pensamento e da intuição) e em “mundo inferior” (o mundo dominado pela opinião e pela ignorância). No mundo superior, a razão (λόγος) é o meio de alcançar a essência (τί εστιν) de cada coisa (Platão, República, 532a). É o meio de elevar o pensamento (νόησις). O pensamento, por sua vez, nos permite conhecer o mundo, ora pela ciência (επισθήμη), ora pelo pensamento discursivo (διανοια). Platão incluía também no mundo superior a intuição (νους), espécie de reconhecimento imediato de idéias inatas. O mundo inferior é dominado ou pela total obscuridade da ignorância (αγνοια), ou pela mera opinião (δόξα). A opinião se divide em crença (πίστις) e em suposição (είκασία), que só permitem ao homem ver as sombras e a confusão reinante na multiplicidade (τά πολλά). O mundo, portanto, se divide entre aqueles que estão afundados na obscuridade da ignorância e da opinião e aqueles que emergiram para o mundo das idéias.
Platão ilustra a sua graduação de conhecimentos no seu famoso “mito da caverna” (República, livro VII ). Em outra obra (Sofista, 216 a), Platão diz: “ [...] aqueles que não apenas parecem, mas que realmente são filósofos, observam das alturas em que estão a vida dos homens de nível inferior.”
O conhecimento racional caracteriza-se por buscar a clareza, a exatidão, a análise; busca também excluir a multiplicidade e a contradição, uma vez que estas condições são próprias da aparência. Julgar a partir das aparências é opinião. Pensar além das aparências é filosofar (Platão, República, 476d).
Certamente que a opinião enseja certo conhecimento, e Platão sabia muito bem. Porém, trata-se de um conhecimento sobre o qual ninguém encontra acordo, uma vez que é extremamente variável. Assim, Platão considerava a mera opinião como algo obscuro e intermediário. Se a opinião é um tipo de conhecimento intermediário, então quais são os extremos? A Filosofia e a ignorância.
O filósofo não se basta com as aparências. Ao buscar a sabedoria, o filósofo esforça-se por descobrir a verdade, visto que não há nada mais relacionado com a verdade do que a sabedoria: “Ora, poderá encontrar-se algo de mais relacionado com a sabedoria do que a verdade?” (Platão, República, 485c)
Na tradição da Filosofia (e fora dela), sugiram alguns pensadores afirmando que a verdade é intangível. Ora, mas se a filosofia não pode alcançar a verdade, como se afirma, então já alcançamos uma: a verdade de que a verdade é intangível. E, se for esse o caso, então é possível encontrar outras. Conseqüentemente, a busca pela sabedoria, empreendida pela Filosofia, permanece válida. “Verdades” são coisas que permanecem do mesmo modo e que podem ser compreendidas por todos os indivíduos racionais do mesmo modo. “[...] os filósofos são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, e que aqueles que o não são, mas se perdem no que é múltiplo e variável, não são filósofos [...]” (Platão, República, 484b).
Para entender as palavras de Platão, faça o seguinte experimento: observe um dia qualquer de inverno. Junte algumas pessoas e pergunte a elas se está fazendo frio. Você irá testemunhar um enorme desacordo entre as respostas. Mas por que as pessoas não chegaram a um acordo em suas respostas? Para Platão, o conhecimento do mundo baseado em sensações gera confusão e multiplicidade de opiniões. Como conseqüência, nós não podemos ter um conhecimento seguro sobre o mundo fundamentado em meras opiniões. O conhecimento racional exige que algo seja reconhecível por todos que possuam a capacidade de raciocínio. E a marca da opinião é justamente a multiplicidade de juízos, confusão e desacordo, uma vez que se sustenta em sensações individuais e na variação de testemunhos dos outros (“ouvir dizer”).
Segundo o filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) existem dois tipos de verdades: “Podem ser verdades de razão ou verdades de fato. As verdades de razão são necessárias, enquanto as de fato são contingentes.” [12]
Cada ser humano tem um (e somente um) local de nascimento. Essa é uma verdade de fato, e é contingente porque poderia ser de outro modo: se seus pais, leitor, tivessem nascido no Afeganistão e se tivessem decidido ficar por lá, provavelmente você teria outro lugar de nascimento, diferente do que DE FATO tem. Verdades de fato estão relacionadas com possibilidades.
Uma verdade é necessária quando em qualquer mundo possível o resultado é sempre o mesmo. Não há possibilidade de conceber um mundo em que ‘2+2= 7’ é verdadeiro. O resultado dessa operação é necessariamente 4, em qualquer mundo possível. “Os mundos possíveis são modos como as coisas podem ser.” [13]
O instrumento da Filosofia é a lógica e, como disse outro filósofo, Wittgenstein[14]: “O que é lógico não pode ser meramente-possível.”




Notas:
[1] Reale, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993, Vol. I.
[2] Diôgenes Laêrtios viveu por volta do século III da era cristã. Sobre ele, pouco se sabe. Deixou uma obra importante sobre os filósofos antigos que, em certos casos, é a única fonte biográfica: “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres.” Brasília: editora da UNB, 1977; 2. Ed.           
[3] Reale continua a apresentar a especificidade da filosofia, quanto ao método: “E é este caráter que confere cientificidade à filosofia. Tal caráter é comum também à outras ciências, as quais, exatamente enquanto ciências, nunca são apenas constatação e verificação empírica, mas são sempre busca de causas e de razões. Mas a diferença está em que, enquanto as ciências particulares são buscas de causas de realidades particulares ou de setores de realidades particulares, a filosofia é, ao invés, busca de causas e princípios de toda a realidade”. (P. 29)
[4] Idem, p. 28.
[5] Platão. República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. s/d, 8ª. Ed. (376 a-c).
[6] É necessário lembrar que, para Platão, conhecer é reconhecer. Cf. o diálogo Mênon. Rio de Janeiro: editora Puc-Rio/Edições Loyola.
[7] Idem (475b).
[8] Idem (475e).
[9] Idem .
[10] Idem (393d).
[11] Jaeger, W. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[12] Leibniz, G. Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, Col. Os Pensadores, 2000; p. 359.
[13] Branquinho, J. Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006; p. 536.
[14] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: EDUSP, 2001ç p. 137.

Paulo Henrique L. de Castro