quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Jonestown: parte III (continuação).

O que esperamos das pessoas? Imagine uma praça em um dia de sol. Muitas árvores, crianças brincando sorridentes, jovens correndo com suas bicicletas, adultos conversando sobre o último capítulo da novela ou sobre futebol, guardas caminhando sem preocupação, um homem lê o seu jornal, alguns senhores jogam baralho e a vida segue. Nada nessa imagem irá nos espantar, pois esperamos das pessoas exatamente cordialidade, respeito, prudência, coragem, generosidade, temperança e outras tantas virtudes. E a vida segue.

Entretanto, ninguém espera naquela praça crianças enfiando o dedo nos olhos das outras, jovens apostando corrida de bicicleta em alta velocidade perto de idosos, guardas confabulando sobre propinas, uma fofoca injuriosa no banco da praça, senhores trapaceando no jogo de baralho e, a vida segue.

A nossa perplexidade diante de acontecimentos como a tragédia de Jonestown, em parte, tem origem em uma visão romântica e ficcionista da constituição humana; do que esperamos dos outros, do que somos e do que o ser humano é capaz de fazer. Do mesmo modo que esperamos acordar vivos amanhã, também não paramos para pensar que a insensatez faz parte da constituição humana. A condição do homem, além da fachada de normalidade, também é demencial. No entanto, preferimos esperar por comportamentos exclusivamente sensatos de uma criatura insensata por natureza. Se escrevo sobre Jonestown, é porque aceito a afirmação de Edgar Morin de que os casos extremos nos permitem compreender melhor o ser humano:

A escravidão, o campo de concentração, o genocídio e, finalmente todas as desumanidades são reveladoras da humanidade.” [i]

Enquanto imergidos no cotidiano, ocupados, como diria o filósofo Martin Heidegger, agimos a partir da crença de que há uma ordem normal no comportamento humano: somos racionais e, portanto, coisas como Jonestown são anomalias isoladas, da qual nada se assemelha ao que vivemos cotidianamente. Ledo engano. Jocosa farsa. Muito do que aconteceu no massacre da Guiana está relacionado com as pequenas e gradativas influências sociais que incidem sobre a personalidade dos indivíduos que, na maior parte das vezes, nos fazem agir irracionalmente (de modo emocional).

Para compreender o massacre de Jonestown, precisamos entender como o nosso comportamento é profundamente marcado pela influência de grupo, por nosso estado gregário primitivo, pela nossa identidade social, enfim aspectos relevantes que são esquecidos em casos como o ocorrido com a seita do Templo do Povo, na Guiana. Olhamos para a humanidade do homem como algo pronto, acabado, muito bem elaborado, até que uma tragédia nos acorda para o lugar desse primata, peculiarmente gregário, entre os bichos.

O Templo do Povo era um grupo social e todos nós pertencemos a um grupo na sociedade. Como o grupo molda a opinião e o comportamento individual de determinado membro? Como aderimos aos grupos? Nós precisamos pertencer a um grupo?

Em primeiro lugar, viver em grupo se deve ao fato de que herdamos o gregarismo da ancestralidade primata (instinto gregário – isto é: “que vive em bando”). Em segundo lugar, o estado gregário provocou uma forte necessidade de afiliação (Charles Darwin já havia notado o efeito esmagador da solidão, comentando o estado de prisioneiros naquilo que hoje chamamos de “solitária”. Não há saída: precisamos viver com alguém[ii]). Cito as palavras do psicólogo social David G. Myers (uma das fontes teóricas que estou usando para refletir sobre Jonestown):

Nós humanos somos uma espécie que vive em grupos. A história ancestral nos prepara para nos alimentarmos e nos protegermos – para vivermos – em grupos. Os seres humanos aplaudem seus grupos, matam por seus grupos, morrem por seus grupos. Definimos a nós mesmos por nossos grupos [...]. Nosso autoconceito – a definição que temos de nós mesmos – contém não apenas a identidade pessoal (o senso de atributos e atitudes pessoais), mas também a identidade social.” [iii]

Apesar de o cotidiano próximo nos iludir com a sensação de pleno controle sobre nossos comportamentos, a personalidade não é uma ilha (com a licença da metáfora). Acreditamos que nossas crenças e convicções não são construídas, abaladas e afetadas pelos outros, mas a verdade é que somos mais “Maria-vai-com-as-outras”, do que gostaríamos de admitir. E isso se dá não porque somos “fracos”, mas porque somos animais sociais abertamente suscetíveis a sofrer a influência dos que nos cercam, feito uma manada.

Em termos mais técnicos[iv], o nosso autoconceito (a percepção individual de quem nós somos) é formada a partir de dois componentes básicos: [1] identidade pessoal (os atributos ou traços individuais) e [2] pela identidade social (etnia, sexo, religião, profissão, ser mãe, ser pai, ser filho, músico, atleta etc.).

Acontece que ser membro da religião X (ou qualquer outro grupo social, ser torcedor do time de futebol Z, pertencer à etnia Y etc.), implica simultaneamente estabelecer o que você é e quem não é como você. Segundo Myers: “A definição do grupo a que você pertence – sua raça, religião, sexo, curso acadêmico – implica uma definição de quem você não é. O círculo que inclui ‘nós’ (o grupo interno) exclui ‘eles’ (o grupo externo).” [v] (Observe como um torcedor de futebol diz: “hoje NÓS vamos ganhar.” O curioso é que ele não é jogador do time, os próprios jogadores do time, a comissão técnica e o presidente do clube nem sequer o conhece, mas o torcedor tem esse sentimento primitivo de pertencimento ao grupo. Ele é membro do grupo).

A nossa identidade social, portanto, estabelece o nosso círculo (que inclui quem pertence ao grupo) ao mesmo tempo em que estabelece quem não pertence ao nosso círculo (os que são diferentes). De acordo com o já mencionado psicólogo do Hope Collge, a formação de grupos se dá a partir do seguinte processo mental:

[1º.] Categorização: em diversas circunstâncias estamos incluindo/excluindo os outros (e nós mesmos) em categorias: “sou brasileiro”, “sou tricolor”, “ele é professor”, “ela é mãe”, “ela é hindu”, “eu sou católico”, “ela é flamenguista”, “ele é negro”, “sou roqueiro”, “ele é gringo”, “ela é favelada”, “ele é vereador” etc. Porém, essa rotulação não é necessariamente pejorativa, conquanto seja a base para muitos preconceitos. De qualquer forma, categorizar é parte do processo mental humano em lidar com os outros e com nós mesmos.

[2º] Identificação: as pessoas se identificam com as outras e, assim, formam o “nós”. Isso se dá muitas vezes com base em pequenos detalhes (basta estar em um bar e ver um desconhecido vestido com a camisa do time de coração e haverá uma grande probabilidade de um bom bate-papo). Em outros casos, a identificação entre as pessoas ocorre por meio de vários aspectos: brasileiro, católico, carioca, tijucano, alvinegro.

[3º.] Comparação: comparamos o grupo interno (ser católico) com o grupo externo (ser evangélico). Ocorre, então, a “tendenciosidade do grupo interno”, que supõe por um lado afeição recíproca e, por outro, aversão por quem não pertence ao grupo imediato (xenofobia). O psicólogo Steven Pinker denomina esse limite entre os que pertencem ao grupo de “círculo moral”. Quem é membro do círculo é avaliado positivamente (“bom”, “inteligente”, “prestativo”, “pacífico”, “correto”, “digno” etc.). Todavia, aquele que julgamos ou acreditamos não pertencer ao círculo, são avaliados negativamente (“inútil”, “preguiçoso”, “interesseiro”, “sujo”, “burro”, “inferior”, “indigno”, “perigoso” etc.).

Pode parecer inocente, mas as coisas não param por aí. Ser membro de um grupo social envolve também uma poderosa vulnerabilidade aos influxos comportamentais do grupo, que podem levar as pessoas desde simples vaias ou gritos entusiasmados, quando a nossa torcida começa a cantar e a aplaudir em um estádio de futebol, ou mesmo insultar o árbitro, até atos de intolerância, ódio, explosões de fúria coletiva, linchamentos, brigas de torcida e chacina étnica.

Segundo Myers[vi]:

Por causa das identificações sociais, conformamo-nos às normas do grupo. Fazemos sacrifícios pela equipe, pela família, pela nação. Detestamos os grupos externos. Quanto mais importante for a nossa identidade social e mais forte a ligação que sentimos por um grupo, mais reagimos com preconceito a ameaças do outro grupo. Nomes como sérvio, tâmil, curdo e estoniano representam identidades de grupo interno pelas quais as pessoas se mostram dispostas a morrer.”

Em outras palavras, em grupo e pelo grupo somos sutilmente e de modo extremamente poderoso influenciados pelo comportamento de horda de tal modo que, sem se dar conta, fazemos muito do que não faríamos sozinhos, tendemos a abandonar os freios inibitórios (as restrições corriqueiras), chegando a perder o senso de responsabilidade individual, em um estado psicológico chamado de “desindividualização”, isto é, diminuímos a percepção de autoconsciência, de individualidade. Não somos “um”, somos o grupo. Quando desindividualizadas, as pessoas têm maior facilidade de agir sem pensar, reagindo mais prontamente ao que o grupo faz (Myers). Sim, caro leitor: somos mais “Maria-vai-com-as-outras” do que gostaríamos de admitir. Pense em como você se comporta quando está entre pessoas que você aprecia e se identifica; pense no seu círculo de amizade, no seu grupo familiar, no seu grupo religioso, nos seus colegas de trabalho. O nosso próprio modo de ser é afetado para o grupo e pelo grupo. A nossa identidade se confunde com a identidade do bando, pois ser demasiadamente diferente do grupo é ser esquisito; e ser “esquisito” significa que o grupo irá se encarregar de te condenar ao ostracismo (somos banidos e esquecidos no limbo). A vida social é um mercado de mendicância e a esmola é sermos parte de um círculo. Como disse Gazzaniga e Heatherton:

Uma motivação humana dominante é se ajustar ao grupo. [...] O desejo de se ajustar ao grupo e evitar ser ostracizado é tão grande que, em algumas circunstâncias, as pessoas se comportam de uma forma que elas mesmas condenariam em outro momento. O poder da situação social é muito maior do que a maioria das pessoas acredita, o que talvez seja a lição mais importante que a psicologia social possa nos ensinar.”[vii]

Sobre esse comportamento grupal, que os estudiosos alertam, cometemos dois erros: [a] temos uma crença muito difundida de que comportamento de horda é coisa tipicamente de adolescente; [b] acreditamos que somos imunes a influência do grupo ao qual pertencemos, pois isso é coisa de gangue e o nosso grupo não é uma gangue. Todavia, como demonstra a psicologia social, não só necessitamos pertencer a um grupo ao longo da vida, mas somos também extremamente suscetíveis às influências da facção a que pertencemos, chegando mesmo a fazer coisas que não faríamos sozinhos. Myers comenta que dificilmente um fã de rock gritaria delirantemente em um concerto em que estivesse assistindo sozinho. Pensando no comentário, tento imaginar alguém sozinho em um estádio de futebol xingando o árbitro. Uma vez membro de um grupo social, as influências intra-específicas são inevitáveis.

Pois bem. O Templo do Povo era um grupo coeso: majoritariamente pobres, negros, idosos e pessoas de pouca instrução formal, oriundas de determinada camada da sociedade americana, que tinham em comum um forte sentimento de rejeição social e de exclusão, indubitavelmente um dos mais fortes elementos de identidade grupal. Jonestown amplificou ainda mais a identidade do grupo, isolados, trabalhando juntos, sem distinção de classe, em uma rotina diária de partilha. Como disse o filho adotivo do Reverendo, Jim Jones Jr.: “Quando não se tem nada, somos parte de Jonestown, somos acionistas de Jonestown se formos afro-americanos. Dava-lhes a oportunidade de fazer parte da criação de uma utopia.”

Lá na Guiana os membros da seita encontraram seu lar, fortificaram a identidade de grupo e sedimentaram os laços de afiliação. Portanto, é visível que os aspectos apresentados sobre a formação social de grupos, a influência interna e a identidade grupal, atuaram na tragédia em Jonestown. Os membros do Templo do Povo queriam terra para plantar, queriam casa, cama e comida; queriam viver entre pessoas que não se importavam com a cor da pele e que comungavam fortemente a ideia de partilha. Queriam viver entre iguais, em uma grande família; e, como vimos, vivemos e morremos pela família. Por isso Jim Jones foi aplaudido e recebeu gritos de apoio, antes de ordenar que as pessoas tomassem veneno em Jonestown, quando disse: “Se não podemos viver em paz, morreremos em paz”.

[continua]

Paulo Henrique Castro.


[i] Morin, E. O Método 5. A Humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2003; p. 18.

[ii] Tenho pleno conhecimento da seguinte objeção: “mas, muitas pessoas vivem sozinhas”. Quanto a isso só tenho a dizer o seguinte: pesquise sobre os efeitos da solidão na saúde das pessoas; verifique o percentual de pessoas que vivem em estado de total isolamento no mundo e o compare com aquele das pessoas que vivem em grupos; por fim, verifique o sucesso das redes sociais (não por acaso denominadas desse modo).

[iii] Myers, op. Cit.; p. 192.

[iv] Cf. D. Myers.

[v] Cf. D. Myers, p. 192-193.

[vi] Myers, p. 193.

[vii] Gazzaniga, Michel S.; Heartherton, Todd F. Ciência Psicológica. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 450.

sábado, 19 de novembro de 2011

Jonestown: o carisma do líder (continuação do texto anterior).

A ideia de suicídio coletivo já tinha sido anunciada por Jim Jones. Era uma espécie de carta na manga, para uma eventual intromissão de quaisquer elementos externos à Jonestwon. A mórbida decisão teve início a partir de um incidente: como nenhum familiar americano recebia notícias dos membros do Templo do Povo que foram abruptamente morar na Guiana, a opinião pública nos EUA, que já estava ciente dos meios como o pastor tomava os bens e arregimentava os fiéis, começou a bater na porta do Congresso americano e aí o caldo começou a entornar.
Não era um campo de concentração, mas havia muita dificuldade de sair de Jonestown. Para começar, tratava-se de uma colônia no meio de uma densa floresta tropical, 480 km selva adentro, que só se tinha acesso por avião. De fato, uma vez em Jonestown, só se podia sair no avião de Jim Jones. Mas por que não ocorreram focos de resistência e até insurreições, a exemplo do que ocorreu até em campos de concentração? Jones se serviu de diversas estratégias propagandistas. Primeiro, isolou o grupo de qualquer contato com o mundo exterior, nem com familiares mais próximos os moradores podiam falar. Nada de televisão, ou telefone, ou carta. O isolamento dificulta a divergência de opiniões. Segundo, havia um sistema de som que só o líder religioso podia usar (ligado 24 horas, o que permitia uma presença constante da voz do Reverendo, ainda que em sua ausência, já que era alimentado com gravações.). Com esse mecanismo, o “pai” do Templo do Povo propagou o medo: o mundo estava contra Jonestown, dizia. Essa era uma mensagem recorrente do pastor. Ele criou um clima de medo contínuo divulgando a falsa informação de que Jonestown estava sob iminente ataque, organizado por forças armadas que queriam destruir a colônia na Guiana.
Também para impedir a fuga de fiéis ou a formação de dissidentes no grupo, o pregador carismático dizia todas as noites, usando aquele mesmo sistema de som, conectados em auto-falantes espalhados entre as moradias: “Estou mandando alguém embora esta noite. Alguém que conhecem, em quem confiam. E eles vão agir como se quisessem ir embora. Mas é um gesto de lealdade. Vocês têm de os convencer a voltar.” Ora, com essa estratégia extremamente sutil e perspicaz, o líder religioso de uma vez só conseguia duas coisas: [1] tornava todos suspeitos (afinal, se alguém se manifestar dizendo querer ir embora, como posso ter certeza se realmente se trata de uma manifestação sincera ou de um enviado de Jones?). Isso criava um clima de insegurança; [2] fabricava vigias voluntários, pois, na melhor das hipóteses, é mais vantajoso avisar ao Reverendo sobre pessoas que “querem” ir embora, do que correr o risco de ser acusado de saber da fuga e não dizer nada. Disse um dos sobreviventes: “a coisa mais proibida de expressar era querer partir.” Assim, o chefe da seita mantinha todos em um “cativeiro voluntário” (a expressão “cativeiro voluntário” é elucidativa por dois motivos: [1] primeiro nos lembra que tudo o que ocorreu teve origem também nos mecanismos de controle do líder religioso, mas não só; [2] segundo, nos permite lembrar, como foi dito no texto anterior, que as pessoas não podem ser interpretadas como crianças que são enganadas colocando um doce na boca. Outros fatores individuais, humanos, e de interação grupal, contribuíram fortemente para o episódio medonho, como iremos explorar no próximo texto). Vamos ficar com a figura do líder religioso.
Líderes podem ser extremamente persuasivos se combinarem meticulosamente quatro conhecidos elementos da comunicação, segundo o psicólogo David Myers: [1] O modo como o comunicador é percebido; [2] o conteúdo da mensagem; [3] o canal e [4] a audiência. Por enquanto, nos interessa o primeiro: o comunicador.
Jim Jones obteve sucesso em controlar pessoas, em parte porque conduziu muito bem quatro aspectos que seduzem uma audiência: credibilidade, competência, confiabilidade e poder de atração. Ninguém que pretenda conduzir um rebanho vai muito longe sem esses ingredientes. Acontece que Jones desde a infância, por ser rejeitado e maltratado pela família, desenvolveu uma aguda sensibilidade em identificar perfis psicológicos marcados pelo desamparo, pela dor e pela rejeição.
A infância do Reverendo foi em Lynn, Indiana, cidade pobre dos EUA. Lugar tipicamente racista na primeira metade do século XX, com uma população em que a maioria dos moradores era constituída por negros pobres e uma minoria branca que dominava e excluía. Anos mais tarde, Jim Jones deu uma declaração esclarecedora sobre o impacto que o contexto social de Indiana teve em sua personalidade: “Vivendo como um rejeitado desenvolvi uma sensibilidade pelos problemas dos negros. Levei um indivíduo negro da cidade para casa e meu pai disse que ele não podia entrar, então eu disse ‘não concordo’ e não vi o meu pai durante muitos anos.” O curioso é que o poder de atração que Jones exercia sobre os negros continuou até o massacre do dia 18 de novembro em Jonestwon: a maior parte dos mortos eram afro-americanos. O Templo do Povo ficou conhecido como uma igreja de negros dirigida por um branco, como relatou um parente de uma das vítimas (Rebecca Moore). Por quê? Ora, Jones sabia o que era ser excluído e rejeitado e escolheu muito bem a sua audiência. Muitos diziam na época que o pastor só tinha de branco a pele. Juanell Smart, membro da seita, disse: “Quando as pessoas ouviam o Jim, não olhavam para ele como sendo um ‘pastor branco’, as pessoas nem olhavam para o Jim como sendo ‘branco’; ela não era ‘branco’, era só o pastor.”
Jones, ainda na cidadezinha de Lynn, instituiu um lema que fixou em uma placa na entrada da Igreja: o de integração racial. Como disse June Cordell (parente de membros da seita), para Jones “não interessava a cor da pele. Ele estava lá para receber todas as pessoas na igreja, deixou bem claro.” Portanto, para uma platéia majoritariamente constituída de excluídos, o discurso era de um excluído contra a exclusão: quer algo mais persuasivo?
Essa percepção que as pessoas tinham de Jones como um “igual” foi decisiva para o seu poder de atração. Como disse Myers: “tendemos a gostar de pessoas que são parecidas conosco.” Portanto, bem cedo Jim Jones ajustou a sua imagem para conquistar determinado auditório: os excluídos, despossuídos e desamparados, como os negros da sua vizinhança em Indiana. O futuro pastor tinha a sensibilidade e o talento para arrebanhar as ovelhas, mas não tinha a instituição social que desse as condições para Jones pôr em prática a sua vocação. Porém, as coisas mudaram quando o futuro reverendo descobriu a Igreja Evangélica em Lynn, que não permitia a presença de negros.
Por volta da década de 1930, Jones, o desamparado, achou acolhimento e inspiração no Pentecostalismo Clássico, que surgiu nos EUA em 1906 e rapidamente se difundiu pelo país. Como é peculiar aos pentecostais, os cultos eram fortemente emotivos e teatrais, com gritos, danças, explosões de louvores coletivos, músicas animadas, pregações eloqüentes dos pastores e rituais de cura no meio da multidão (tudo isso foi muito bem explorado posteriormente pelo astuto líder carismático). Além de agregar tais características nos seus cultos, pode-se dizer que Jim Jones, ao criar o Templo do Povo, foi um dos precursores do chamado Neopentecostalismo, em que o pilar fundamental é a Teologia da Prosperidade (a felicidade é aqui) e a Propaganda da Fé (uso de veículos de comunicação de massa e estratégias sutis para aliciamento de fiéis).
De acordo com o jornalista Tim Reiterman: “Ele [Jones] viu que eles [os pastores] eram acolhedores, viu que os pastores eram figuras paternas e que eles tinham poder sobre as vidas das pessoas.” Jim Jones se tornou pastor, mas não qualquer pastor. Reinventou a Igreja Pentecostal: abriu as portas para os negros e demais excluídos (principalmente idosos); prometeu, com ações efetivas, conforto nesta vida (com dinheiro da igreja, tirava os idosos de asilos e os colocava vivendo com os fiéis); pôs em prática a ideia cristã de partilha, mesclando inclusive aspectos fundamentais do comunismo soviético (até os últimos dias em Jonestown, o Reverendo prometia levar os fiéis para a Rússia da Guerra Fria e exaltava uma sociedade sem classes); tornou os cultos celebrações alegres e extasiantes; suas pregações eram ordens para acolher, agregar, amparar, incluir, aqui e agora; nunca no além morte. Disse certa vez em uma pregação: “Jesus Cristo tinha os ensinamentos mais revolucionários para dizer: alimentem os pobres, vistam os nus, acolham os estranhos, cuidem das viúvas que estão sofrendo.”
Acima de tudo, o pastor fez curas para aumentar a sua credibilidade (que depois a imprensa descobriu serem forjadas, inclusive com o episódio de uma mulher em uma cadeira de rodas que andou, mas não passava da secretária de Jones fingindo ser paraplégica). Como lembrou Grace Stoem, membro da seita: “As pessoas elevaram Jim ao nível de adoração, porque muitos acreditavam que ele havia curado seu câncer, muitos acreditavam que ele tinha salvo os filhos de um acidente. Havia muitos motivos para as pessoas admirarem, amarem, desculpar e ignorar muitas coisas que o Jim fazia.”
Assim, Jim Jones tinha credibilidade, inspirava confiança e era extremamente sedutor porque:
[1] Sabia o que era ser excluído e falava como um, o que lhe dava confiança ao falar (um dos ingredientes da credibilidade, segundo Myers, e convence a audiência);
[2] Defendia a integração racial em uma cidade altamente racista quanto aos negros, mas ele era branco. Um branco defendendo os negros contra outros brancos na primeira metade do século XX. De acordo com Myers: “As pessoas também percebem como sinceros os que argumentam contra seus próprios interesses pessoais. [...] Estar disposto a sofrer por suas convicções – o que Gandhi, Martin Luther King Jr., e outros grandes líderes fizeram – também ajuda a convencer as outras pessoas da própria sinceridade.”
[3] O Reverendo Jim Jones não ficava só no discurso; não permitia que suas palavras se perdessem nas evangelizações: pregava a igualdade e exercia a igualdade (foi o primeiro branco de indiana a adotar um afro-americano e dois asiáticos); pregava fraternidade e promovia ações sociais de amparo e acolhimento. Em Ukiah, cidade a 150 km de São Francisco, o pastor construiu uma comunidade em que as pessoas tinham comida, trabalho e moradia. Serviu-se de uma espécie de “rede de amparo”: “À medida que as pessoas idosas se juntavam, passava um ano e ele as convencia de que já tinham feito tanto pela comunidade e por isso em vez de darem 20% por que não vedem suas casas e dão o dinheiro à igreja? E isso foi o que as pessoas começaram a fazer.” (Deborah Layton, membro da seita). Os idosos se sentiam parte de uma comunidade e não um dejeto jogado em um asilo.
[4] Enquanto o Estado de bem-estar social fracassava após a quebra da bolsa, nos EUA, e a pobreza aumentava, Jones mobilizava as pessoas para dividirem o pouco que tinham com os outros, com discursos fortemente marcados pela ideologia socialista e por um caráter messiânico inconfundível: “Eu represento princípios divinos, igualdade para todos; uma sociedade onde as pessoas partilhem, onde não há ricos nem pobres. Onde não há racismo; onde houver pessoas lutando por justiça e pelo que é certo, lá estarei eu, lá estarei eu envolvido”, disse Jones em um culto, gritando, falando rápido e usando todos os truques de um bom retórico. Como lembrou mais tarde Neva Sly Hargrave, membro da seita: “Ele falava de coisas que estavam no nosso coração. O governo não cuidava das pessoas. Havia pobres a mais lá fora, havia crianças pobres.”
Jim Jones foi uma face do massacre, mas não o único fator. Outro aspecto importante de episódios como este é o comportamento humano em grupo ou quando nos sentimos parte de um grupo (como as torcidas de futebol). Sobre isso falaremos no próximo texto.
Paulo Henrique Castro.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Jonestown: como foi possível o massacre?

Na noite de 17 de novembro de 1978, em Jonestown, vilarejo construído no meio da selva na Guiana, as pessoas de uma comunidade religiosa estavam felizes, catavam, riam e festejavam dançando de modo alegre e tranqüilo. 24 horas depois todos estariam mortos, incluindo bebês, crianças de diversas idades, adolescentes, adultos e idosos. Foram 909 pessoas que cometeram suicídio coletivo, seguindo as instruções do Reverendo Jim Jones.

As crianças menores e os bebês foram os primeiros a morrer. As próprias mães se encarregavam de introduzir o suco de morango misturado com tranqüilizantes, analgésicos e uma dose letal de cianureto, na boca dos pequenos (o que significa dizer que além de suicídio houve também assassinato). O relato de Tim Carter, membro da seita pentecostal e que sobreviveu correndo para o meio da selva tropical, é dramático:

Fui até a parte de trás do pavilhão e vi uma mulher, Rose, chorando, segurando o seu bebê morto. Havia outras pessoas morrendo. [...] Olhei para a direita e vi minha mulher com nosso filho nos braços e veneno sendo injetado na boca dele [por ela]. O meu filho estava morto e estava espumando pela boca.” [1]

Enquanto as crianças se contorciam em convulsões, espumando pela boca e caindo por todos os lados, os adultos tomavam voluntariamente o suco da morte e ouviam as últimas pregações de Jim Jones: “Morram com alguma dignidade. Não morram em lágrimas e agonia. A morte é só mais uma passagem para outro plano.” O Reverendo dizia isso ao ver algumas mães e alguns pais chorando com os filhos mortos no colo.

No áudio gravado no exato momento em que Jones mandava que as pessoas tomassem o veneno, podemos ouvir ao fundo perturbadores gritos de crianças em desespero, diante da visão do horror (as fotos mostram corpos unidos, abraçados, deitados, caídos).

Stanley Clayton, outro sobrevivente do episódio, descreve a morte da família de um modo que podemos perceber a determinação e disposição da esposa para morrer:

A minha mulher veio até mim. Ela não tinha lágrimas nos olhos. Ela estava estupefata. A minha mãe, a minha avó, a minha irmã e o meu irmão, morreram. Ela disse: ‘me leve e me deite ao lado de minha avó. Ela foi até onde estava a bebida com veneno e não hesitou, bebeu e me disse para segurá-la e para levá-la. Foi o que fiz. Ela morreu nos meus braços.”

Como foi possível essa tragédia? O que levou pessoas normais a tirarem a própria vida e a de seus filhos? Como mães podem injetar veneno na boca de seus bebês indefesos? Como um único homem pode ter um poder de persuasão tão forte, a ponto de convencer as pessoas a cometerem o que até Deus duvida?

O mais curioso de tudo é que a tragédia de Jonestown imediatamente nos provoca uma resposta muito comum: são todos loucos crédulos! Se essa fosse a resposta mais razoável para o que ocorreu com aquelas 909 pessoas, já não valeria a pena escrever este texto. O comportamento humano medonho é mais tolerável quando o admitimos como uma aberração. A partir daí tudo fica mais fácil: basta usar o rótulo multi-uso “louco” e podemos dormir tranqüilo com a nossa divina e perfeita humanidade. É nesse sentido que estupidamente aproximamos os loucos das bestas.

Do ponto de vista do acontecimento em si, entretanto, não houve nada de doença mental naquele dia atroz. A questão está aí. Não eram loucos, eram humanos como eu e você: pessoas com fé em algo (natural ou sobrenatural; imediato ou mediato); pessoas que foram persuadidas, mas, ainda assim, pessoas normais agindo por adesão emocional, não por distúrbio psicológico. Gente que sonhava, ouvia música, trabalhava arduamente, era capaz de discernir o certo do errado e olhava pro céu com esperança. Acabaram naquele chão lamacento, com o corpo inerte, arqueado e exposto à tempestade tropical que desabou minutos antes do evento chegar ao seu dramático ato final. Nisso reside a importância filosófica do espantoso evento: O que nos torna humanos?

É fácil desqualificar as outras pessoas e as outras crenças; aliás, é um meio muito usado para justificarmos as nossas próprias posições, nos fazendo cegos, dogmáticos e (o que é mais perigoso): vulneráveis (afinal, loucos são os outros). Essa linha de raciocínio é arriscada, pois pode nos levar a subestimar os cultos de doutrinação, sejam religiosos, políticos ou qualquer outro. Como pôde acontecer tudo aquilo, então?

Também não parece adequado atribuir a culpa exclusivamente ao Reverendo, como se as pessoas fossem frágeis cordeiros caminhando inocentemente para o abatedouro, conduzidas por um homem de poder ilusionista e hipnótico, cujo controle ninguém pode escapar (mesmo o holocausto nazista não é mais analisado como sendo de exclusiva responsabilidade de Adolf Hitler, como demonstrou o premiado estudo de Daniel Goldhagen[2]. Seria mesmo um absurdo achar que Hitler cometeria tantas atrocidades sem o consentimento de alemães comuns). Mais inadequado ainda é dizer que tudo aconteceu do modo que aconteceu, porque Jim Jones era um “falso profeta”. Ora, essa alegação pressupõe que existe um “verdadeiro profeta”, o que nos leva para um centro de debates infrutífero (por razões óbvias). Além disso, uma discussão sobre se o seu profeta é mais veraz do que o meu, esconde o fundamental sobre líderes carismáticos: a persuasão e o controle sobre o rebanho. Desse modo, podemos de saída impugnar a argumentação que se concentra na veracidade de profetas como estratégia de explicação do fatídico dia naquele país que faz fronteira com o Brasil.

Na véspera da tragédia na Guiana, as pessoas estavam muito animadas e entusiasmadas com a vida em Jonestown. A convicção de que o Templo do Povo era a melhor forma de se viver, era extremamente sólida na época e, mesmo depois do massacre, percebe-se na voz de alguns sobreviventes certa nostalgia pelo que foi vivido em Jonestown antes das mortes. Compare três testemunhos (o primeiro gravado antes do massacre e os outros dois em retrospectiva):

[1] “Nunca estive tão contente ou realizado na minha vida. Não consigo descrever. Poderíamos conversar durante todo o dia e nenhuma palavra descreveria a paz, a beleza, o sentimento de realização, de responsabilidade e de camaradagem que há aqui. É fantástico. Não dá para descrever.” Disse Tim Carter, o mesmo que depois viria a perder a esposa e o filho.

[2] “Estou triste porque não deu certo. Parecia tudo tão maravilhoso. E digo isso sobre o dia 18 de novembro [dia do massacre]. Eu senti que havia perdido uma família. E sabia que tinha perdido meus filhos.”

[3] “Éramos pessoas que queríamos mudar algo. É uma pena não ter acontecido. E pode não voltar a acontecer. Mas uma coisa posso dizer: ao menos tentamos. Não ficamos à espera que outras tentassem. Sim, nós tentamos. Sim, foi um fracasso. Sim foi trágico. Mas, ao menos, tentamos [but at least we try].”

Nos três relatos há entusiasmo com a cidade que foi construída no meio da floresta e a tristeza só aparece, evidentemente, em razão das mortes. Mesmo no dia do massacre tudo parecia “maravilhoso”. Em outras palavras, os membros da comunidade não se percebiam como prisioneiros e não identificavam nada de errado na colônia (como veremos, tal percepção era, de fato, muito equivocada). Fica a impressão, nos trechos destacados, de que o massacre foi um episódio acidental, embora Jim Jones já tivesse falado aos fiéis sobre a possibilidade de suicídio coletivo como ato de repúdio ao mundo.

Ao que tudo indica, havia sim uma sólida convicção de bem-estar por viver naquela comunidade agrícola totalmente isolada do resto do mundo (não existia nenhum meio de comunicação disponível para os moradores da colônia e a cidade mais próxima ficava em um raio de 480 km, por meio de uma densa floresta. Só Jim Jones e alguns membros mais próximos do reverendo saiam de Jonestown em um pequeno avião). Não é difícil de imaginar que para um membro do Templo do Povo, Jonestown era o paraíso na Terra: pessoas vivendo em harmonia, criando seus filhos juntos, plantando e vivendo do que se colhia, morando em casas confortáveis com redes na varanda, no meio de uma exuberante floresta tropical.

Então, por que o paraíso se tornou um inferno? Para começar, um alerta (que, de algum modo, já foi anunciado parágrafos acima):

David Myers, professor de psicologia do Hope College Holland, em Michigan, fez o seguinte comentário sobre as respostas fáceis, ao analisar o caso de Jonestown e de outros cultos de doutrinação contemporâneos:

“[...] se atribuirmos os movimentos dos Novos Religiosos à força mística dos líderes ou às fraquezas características dos seguidores, podemos nos iludir com a noção de que somos imunes às técnicas de controle social. Na verdade, nossos próprios grupos – e incontáveis vendedores, líderes políticos e outros persuasores – usam com sucesso muitas dessas táticas em nós. É bem tênue e indistinta a linha entre instrução e doutrinação, esclarecimento e propaganda, conversão e coação, terapia e controle da mente.” [3]

Certamente que não se convence alguém a matar e morrer por uma causa, do dia para a noite. O massacre de Jonestown em 18 de novembro de 1978 foi um longo processo que começou em uma pequena cidade de Indiana, Lynn, no início da década de 1960, nos Estados Unidos. O triste episódio foi possível por diversos fatores que foram se estabelecendo ao longo de vários anos, entre eles fenômenos psicossociais muito bem estudados e conhecidos: [1] culto de doutrinação; [2] polarização de grupo; [3] pensamento de grupo; [4] desindividuação [5] afiliação e círculo moral e [6] responsabilidade difusa.

Nos próximos textos, faço uma análise do massacre a partir daqueles fenômenos psicossociais. Por hora, fico com um trecho de uma carta anônima encontrada no meio daquele mar de cadáveres: “a história deste movimento, desta ação, tem que ser examinada repetidamente.”

Paulo Henrique Castro.


[1] A tragédia foi muito bem documentada com filmagens na hora do ocorrido, gravações de áudio, testemunho de sobreviventes e cartas deixadas no local. Veja o documentário “Jonestown: the life and death of people’s temple”, produzido pela BBC e disponível na internet.

[2] Goldhagen, Daniel Jonah; Os carrascos voluntários de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[3] Myers, David G. Psicologia Social. Rio de Janeiro: LTC, 2000; p. 150.