quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Jonestown: como foi possível o massacre?

Na noite de 17 de novembro de 1978, em Jonestown, vilarejo construído no meio da selva na Guiana, as pessoas de uma comunidade religiosa estavam felizes, catavam, riam e festejavam dançando de modo alegre e tranqüilo. 24 horas depois todos estariam mortos, incluindo bebês, crianças de diversas idades, adolescentes, adultos e idosos. Foram 909 pessoas que cometeram suicídio coletivo, seguindo as instruções do Reverendo Jim Jones.

As crianças menores e os bebês foram os primeiros a morrer. As próprias mães se encarregavam de introduzir o suco de morango misturado com tranqüilizantes, analgésicos e uma dose letal de cianureto, na boca dos pequenos (o que significa dizer que além de suicídio houve também assassinato). O relato de Tim Carter, membro da seita pentecostal e que sobreviveu correndo para o meio da selva tropical, é dramático:

Fui até a parte de trás do pavilhão e vi uma mulher, Rose, chorando, segurando o seu bebê morto. Havia outras pessoas morrendo. [...] Olhei para a direita e vi minha mulher com nosso filho nos braços e veneno sendo injetado na boca dele [por ela]. O meu filho estava morto e estava espumando pela boca.” [1]

Enquanto as crianças se contorciam em convulsões, espumando pela boca e caindo por todos os lados, os adultos tomavam voluntariamente o suco da morte e ouviam as últimas pregações de Jim Jones: “Morram com alguma dignidade. Não morram em lágrimas e agonia. A morte é só mais uma passagem para outro plano.” O Reverendo dizia isso ao ver algumas mães e alguns pais chorando com os filhos mortos no colo.

No áudio gravado no exato momento em que Jones mandava que as pessoas tomassem o veneno, podemos ouvir ao fundo perturbadores gritos de crianças em desespero, diante da visão do horror (as fotos mostram corpos unidos, abraçados, deitados, caídos).

Stanley Clayton, outro sobrevivente do episódio, descreve a morte da família de um modo que podemos perceber a determinação e disposição da esposa para morrer:

A minha mulher veio até mim. Ela não tinha lágrimas nos olhos. Ela estava estupefata. A minha mãe, a minha avó, a minha irmã e o meu irmão, morreram. Ela disse: ‘me leve e me deite ao lado de minha avó. Ela foi até onde estava a bebida com veneno e não hesitou, bebeu e me disse para segurá-la e para levá-la. Foi o que fiz. Ela morreu nos meus braços.”

Como foi possível essa tragédia? O que levou pessoas normais a tirarem a própria vida e a de seus filhos? Como mães podem injetar veneno na boca de seus bebês indefesos? Como um único homem pode ter um poder de persuasão tão forte, a ponto de convencer as pessoas a cometerem o que até Deus duvida?

O mais curioso de tudo é que a tragédia de Jonestown imediatamente nos provoca uma resposta muito comum: são todos loucos crédulos! Se essa fosse a resposta mais razoável para o que ocorreu com aquelas 909 pessoas, já não valeria a pena escrever este texto. O comportamento humano medonho é mais tolerável quando o admitimos como uma aberração. A partir daí tudo fica mais fácil: basta usar o rótulo multi-uso “louco” e podemos dormir tranqüilo com a nossa divina e perfeita humanidade. É nesse sentido que estupidamente aproximamos os loucos das bestas.

Do ponto de vista do acontecimento em si, entretanto, não houve nada de doença mental naquele dia atroz. A questão está aí. Não eram loucos, eram humanos como eu e você: pessoas com fé em algo (natural ou sobrenatural; imediato ou mediato); pessoas que foram persuadidas, mas, ainda assim, pessoas normais agindo por adesão emocional, não por distúrbio psicológico. Gente que sonhava, ouvia música, trabalhava arduamente, era capaz de discernir o certo do errado e olhava pro céu com esperança. Acabaram naquele chão lamacento, com o corpo inerte, arqueado e exposto à tempestade tropical que desabou minutos antes do evento chegar ao seu dramático ato final. Nisso reside a importância filosófica do espantoso evento: O que nos torna humanos?

É fácil desqualificar as outras pessoas e as outras crenças; aliás, é um meio muito usado para justificarmos as nossas próprias posições, nos fazendo cegos, dogmáticos e (o que é mais perigoso): vulneráveis (afinal, loucos são os outros). Essa linha de raciocínio é arriscada, pois pode nos levar a subestimar os cultos de doutrinação, sejam religiosos, políticos ou qualquer outro. Como pôde acontecer tudo aquilo, então?

Também não parece adequado atribuir a culpa exclusivamente ao Reverendo, como se as pessoas fossem frágeis cordeiros caminhando inocentemente para o abatedouro, conduzidas por um homem de poder ilusionista e hipnótico, cujo controle ninguém pode escapar (mesmo o holocausto nazista não é mais analisado como sendo de exclusiva responsabilidade de Adolf Hitler, como demonstrou o premiado estudo de Daniel Goldhagen[2]. Seria mesmo um absurdo achar que Hitler cometeria tantas atrocidades sem o consentimento de alemães comuns). Mais inadequado ainda é dizer que tudo aconteceu do modo que aconteceu, porque Jim Jones era um “falso profeta”. Ora, essa alegação pressupõe que existe um “verdadeiro profeta”, o que nos leva para um centro de debates infrutífero (por razões óbvias). Além disso, uma discussão sobre se o seu profeta é mais veraz do que o meu, esconde o fundamental sobre líderes carismáticos: a persuasão e o controle sobre o rebanho. Desse modo, podemos de saída impugnar a argumentação que se concentra na veracidade de profetas como estratégia de explicação do fatídico dia naquele país que faz fronteira com o Brasil.

Na véspera da tragédia na Guiana, as pessoas estavam muito animadas e entusiasmadas com a vida em Jonestown. A convicção de que o Templo do Povo era a melhor forma de se viver, era extremamente sólida na época e, mesmo depois do massacre, percebe-se na voz de alguns sobreviventes certa nostalgia pelo que foi vivido em Jonestown antes das mortes. Compare três testemunhos (o primeiro gravado antes do massacre e os outros dois em retrospectiva):

[1] “Nunca estive tão contente ou realizado na minha vida. Não consigo descrever. Poderíamos conversar durante todo o dia e nenhuma palavra descreveria a paz, a beleza, o sentimento de realização, de responsabilidade e de camaradagem que há aqui. É fantástico. Não dá para descrever.” Disse Tim Carter, o mesmo que depois viria a perder a esposa e o filho.

[2] “Estou triste porque não deu certo. Parecia tudo tão maravilhoso. E digo isso sobre o dia 18 de novembro [dia do massacre]. Eu senti que havia perdido uma família. E sabia que tinha perdido meus filhos.”

[3] “Éramos pessoas que queríamos mudar algo. É uma pena não ter acontecido. E pode não voltar a acontecer. Mas uma coisa posso dizer: ao menos tentamos. Não ficamos à espera que outras tentassem. Sim, nós tentamos. Sim, foi um fracasso. Sim foi trágico. Mas, ao menos, tentamos [but at least we try].”

Nos três relatos há entusiasmo com a cidade que foi construída no meio da floresta e a tristeza só aparece, evidentemente, em razão das mortes. Mesmo no dia do massacre tudo parecia “maravilhoso”. Em outras palavras, os membros da comunidade não se percebiam como prisioneiros e não identificavam nada de errado na colônia (como veremos, tal percepção era, de fato, muito equivocada). Fica a impressão, nos trechos destacados, de que o massacre foi um episódio acidental, embora Jim Jones já tivesse falado aos fiéis sobre a possibilidade de suicídio coletivo como ato de repúdio ao mundo.

Ao que tudo indica, havia sim uma sólida convicção de bem-estar por viver naquela comunidade agrícola totalmente isolada do resto do mundo (não existia nenhum meio de comunicação disponível para os moradores da colônia e a cidade mais próxima ficava em um raio de 480 km, por meio de uma densa floresta. Só Jim Jones e alguns membros mais próximos do reverendo saiam de Jonestown em um pequeno avião). Não é difícil de imaginar que para um membro do Templo do Povo, Jonestown era o paraíso na Terra: pessoas vivendo em harmonia, criando seus filhos juntos, plantando e vivendo do que se colhia, morando em casas confortáveis com redes na varanda, no meio de uma exuberante floresta tropical.

Então, por que o paraíso se tornou um inferno? Para começar, um alerta (que, de algum modo, já foi anunciado parágrafos acima):

David Myers, professor de psicologia do Hope College Holland, em Michigan, fez o seguinte comentário sobre as respostas fáceis, ao analisar o caso de Jonestown e de outros cultos de doutrinação contemporâneos:

“[...] se atribuirmos os movimentos dos Novos Religiosos à força mística dos líderes ou às fraquezas características dos seguidores, podemos nos iludir com a noção de que somos imunes às técnicas de controle social. Na verdade, nossos próprios grupos – e incontáveis vendedores, líderes políticos e outros persuasores – usam com sucesso muitas dessas táticas em nós. É bem tênue e indistinta a linha entre instrução e doutrinação, esclarecimento e propaganda, conversão e coação, terapia e controle da mente.” [3]

Certamente que não se convence alguém a matar e morrer por uma causa, do dia para a noite. O massacre de Jonestown em 18 de novembro de 1978 foi um longo processo que começou em uma pequena cidade de Indiana, Lynn, no início da década de 1960, nos Estados Unidos. O triste episódio foi possível por diversos fatores que foram se estabelecendo ao longo de vários anos, entre eles fenômenos psicossociais muito bem estudados e conhecidos: [1] culto de doutrinação; [2] polarização de grupo; [3] pensamento de grupo; [4] desindividuação [5] afiliação e círculo moral e [6] responsabilidade difusa.

Nos próximos textos, faço uma análise do massacre a partir daqueles fenômenos psicossociais. Por hora, fico com um trecho de uma carta anônima encontrada no meio daquele mar de cadáveres: “a história deste movimento, desta ação, tem que ser examinada repetidamente.”

Paulo Henrique Castro.


[1] A tragédia foi muito bem documentada com filmagens na hora do ocorrido, gravações de áudio, testemunho de sobreviventes e cartas deixadas no local. Veja o documentário “Jonestown: the life and death of people’s temple”, produzido pela BBC e disponível na internet.

[2] Goldhagen, Daniel Jonah; Os carrascos voluntários de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[3] Myers, David G. Psicologia Social. Rio de Janeiro: LTC, 2000; p. 150.

2 comentários:

REGINA disse...

* Amor meu, que tragédia...estou ansiosa para as próximas publicações sobre esse assunto!!! bjus, bjus!

Unknown disse...

Obrigado por estar por aqui, meu amor!! PH.