quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Lições de Filosofia 1

N
o final do século VII a. C. e início do século VI a. C., surge nas colônias gregas da Ásia Menor, na cidade de Mileto, na Jônia, um modo peculiar de pensar: a Filosofia (φιλοσφία)[1]. O que significa exatamente “um modo peculiar de pensar”?
Segundo Diôgenes Laêrtios[2], a palavra  φιλοσφία foi inventada por Pitágoras de Salmos, no seguinte episódio: assim que Pitágoras chega à cidade de Flús, o tirano Lêon lhe perguntou quem era ele e Pitágoras respondeu: sou um φιλοσοφός (filósofo). Pitágoras explicou o adjetivo usando os Grandes Jogos gregos comparando-os a vida: uns comparecem para lutar, outros para fazer negócios e, por fim, havia os que compareciam para ver, os espectadores. Os que lutam, buscam a fama e os que negociam, ambicionam os ganhos. Mas os filósofos são como os espectadores: ávidos pela verdade.
Desde o início que a especificidade do trabalho filosófico está relacionada com a busca pela verdade. Os pensadores gregos começaram a ficar insatisfeitos com as explicações dadas pela tradição (notadamente Hesíodo e Homero, fontes da mitologia grega), para justificar a realidade. A insatisfação foi só o início; foi, por assim dizer, certo estado de espírito. O mais importante foi feito depois. As indagações e explicações mitológicas foram substituídas por indagações e explicações pautadas em categorias lógicas, racionais. Ou seja, por “categorias lógicas” entendem-se operações cognitivas movidas por uma desconfiança nas explicações mágicas sobre as origens do universo, das coisas e dos homens. Ora, eventos tão complexos ocorrendo no universo não poderiam ser explicados recorrendo a conflitos de vaidades entre os deuses. A Filosofia inaugura uma atitude radical de oposição a todo tipo de explicação que recorra à magia.         
De fato, explicações míticas ainda estão presentes nos fragmentos manuscritos dos primeiros filósofos (Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Pitágoras, Xenófones, Heráclito, Parmênides e outros). Até mesmo em Platão e Aristóteles é possível identificar a influência de seitas da época, como os órficos. Todavia, de modo paulatino, as categorias lógicas vão se distanciando das explicações meramente mágicas e emocionais, para chegar, já com Aristóteles, caracterizadas pelas exigências da razão. Não há como negar que, desde as suas origens até os dias de hoje, a Filosofia possui uma constante, um traço indelével: a explicação racional.
         Portanto, e de acordo com o titular da cátedra de História da filosofia Antiga da Universidade de Milão, Giovanni Reale, a Filosofia surgiu com características muito peculiares e definidoras:

(1) O conteúdo da Filosofia: o que se convencionou chamar de Filosofia pretende explicar a totalidade das coisas, toda a realidade. Como indagou o primeiro filósofo, Tales de Mileto: “qual é o princípio de tudo?”
(2) O método da Filosofia: a Filosofia se vale de explicações puramente racionais. Nas palavras de Reale, “O que vale em filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica: é, numa palavra, o logos. Não basta à filosofia constatar, verificar dados de fato, coletar experiências: a filosofia deve ir além do fato e das experiências para encontrar as suas razões, a causa, o princípio.”[3]
(3) O escopo da Filosofia: a filosofia busca a verdade por si mesma, não tendo nenhuma pretensão de ser prática ou de qualquer aplicabilidade. Desse modo, o objetivo da filosofia é meramente contemplativo, teórico.

Com essas três características, afirma Reale, “[...] é possível estabelecer aquilo que de direito merece ser chamado de filosofia, e aquilo que também de fato, a partir de Tales, fizeram todos os que mereceram o nome de filósofos”.[4]
Platão (427-348 a. C.), filósofo grego, comparou a avidez do filósofo com a amabilidade de um cão[5]: um cão pouco tolera a presença de um estranho. Em contrapartida, o cão acolhe muito bem uma pessoa com quem já está familiarizado, uma pessoa que já conhece[6]. O cão é amigo de quem conhece e não suporta bem o que desconhece. Em que consiste a natureza da filosofia? Justamente em distinguir uma “visão amiga e inimiga” baseando-se no conhecimento das circunstâncias e não na ignorância dos fatos. Certamente Platão usou essa alegoria pensando na própria palavra φιλοσφία, que quer dizer “amigo da sabedoria”. Assim, a primeira característica da filosofia é o discernimento. Mas, antes que alguém chame um cão de filósofo, devemos entender de um modo ainda mais radical o que Platão assinalou como a capacidade de conhecer distintamente o mundo.
O filósofo não deseja parte da sabedoria, mas, sim, a totalidade do saber, diz Platão em outro trecho[7]. Em outras palavras o filósofo tem fome de saber. Ademais, deve ter maturidade para discernir. Diz Platão[8]:
Ora, daquele que tem aversão às ciências, sobretudo sendo jovem, e ainda sem discernimento para saber o que é bom e o que não é, não diremos que gosta da ciência nem da filosofia; tal como daquele que tem aversão à comida, não diremos que tem fome, nem que está desejoso de alimento, nem que é comilão, mas que está sem apetite! [...] Mas àquele que deseja prontamente provar de todas as ciências e se atira ao estudo com prazer e sem se saciar, a esse chamaremos com justiça filósofo, ou não?
Também, continua Platão, não basta ter a capacidade de discernir e gostar de aprender, caso contrário, muitos indivíduos seriam chamados de filósofos. Então, quais podem ser denominados de filósofos? “Aos amadores do espetáculo da verdade[9]. Discernir, para um filósofo, reside na capacidade de distinguir o que é mera aparência daquilo que de fato é. Os sentidos podem nos enganar e só a razão pode nos revelar a realidade por trás das aparências.
A filosofia é uma busca de conhecimento racional. Desse modo, ao contrário do que muitos pensam, não é poesia. Platão[10] fez questão de deixar claro: “exprimo-me sem metro porque não sou poeta” (φράσω δέ άνευ μετρου οΰ γάρ είμι ποιητικός). Estranha afirmação, essa do filósofo grego. Ora, como bem sabemos[11], a poesia tinha um papel fundamental na cultura grega. Os cidadãos gregos, cedo tinham contato com a poesia e o saber poético. Também sabemos do fato de Platão ter pertencido a uma família aristocrática e que contava com uma excelente educação, o que incluía o saber poético. De certo, portanto, que Platão não desconhecia a métrica (o conjunto de regras que rege a medida, o ritmo, e a organização do verso, da estrofe e do poema como um todo). Então, por que a advertência de Sócrates feita à Adimanto, na referida passagem da “República”, supra mencionada? A resposta é simples. Platão faz lembrar nessa passagem qual é o seu propósito: filosofar; e fazer Filosofia não é fazer poesia.
De acordo com Platão (República, 582 d), o instrumento necessário para julgar bem pertence ao filósofo. E esse instrumento é o λόγος (razão). O que quer dizer razão? Platão distinguia o mundo em “mundo superior” (o mundo do pensamento e da intuição) e em “mundo inferior” (o mundo dominado pela opinião e pela ignorância). No mundo superior, a razão (λόγος) é o meio de alcançar a essência (τί εστιν) de cada coisa (Platão, República, 532a). É o meio de elevar o pensamento (νόησις). O pensamento, por sua vez, nos permite conhecer o mundo, ora pela ciência (επισθήμη), ora pelo pensamento discursivo (διανοια). Platão incluía também no mundo superior a intuição (νους), espécie de reconhecimento imediato de idéias inatas. O mundo inferior é dominado ou pela total obscuridade da ignorância (αγνοια), ou pela mera opinião (δόξα). A opinião se divide em crença (πίστις) e em suposição (είκασία), que só permitem ao homem ver as sombras e a confusão reinante na multiplicidade (τά πολλά). O mundo, portanto, se divide entre aqueles que estão afundados na obscuridade da ignorância e da opinião e aqueles que emergiram para o mundo das idéias.
Platão ilustra a sua graduação de conhecimentos no seu famoso “mito da caverna” (República, livro VII ). Em outra obra (Sofista, 216 a), Platão diz: “ [...] aqueles que não apenas parecem, mas que realmente são filósofos, observam das alturas em que estão a vida dos homens de nível inferior.”
O conhecimento racional caracteriza-se por buscar a clareza, a exatidão, a análise; busca também excluir a multiplicidade e a contradição, uma vez que estas condições são próprias da aparência. Julgar a partir das aparências é opinião. Pensar além das aparências é filosofar (Platão, República, 476d).
Certamente que a opinião enseja certo conhecimento, e Platão sabia muito bem. Porém, trata-se de um conhecimento sobre o qual ninguém encontra acordo, uma vez que é extremamente variável. Assim, Platão considerava a mera opinião como algo obscuro e intermediário. Se a opinião é um tipo de conhecimento intermediário, então quais são os extremos? A Filosofia e a ignorância.
O filósofo não se basta com as aparências. Ao buscar a sabedoria, o filósofo esforça-se por descobrir a verdade, visto que não há nada mais relacionado com a verdade do que a sabedoria: “Ora, poderá encontrar-se algo de mais relacionado com a sabedoria do que a verdade?” (Platão, República, 485c)
Na tradição da Filosofia (e fora dela), sugiram alguns pensadores afirmando que a verdade é intangível. Ora, mas se a filosofia não pode alcançar a verdade, como se afirma, então já alcançamos uma: a verdade de que a verdade é intangível. E, se for esse o caso, então é possível encontrar outras. Conseqüentemente, a busca pela sabedoria, empreendida pela Filosofia, permanece válida. “Verdades” são coisas que permanecem do mesmo modo e que podem ser compreendidas por todos os indivíduos racionais do mesmo modo. “[...] os filósofos são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre do mesmo modo, e que aqueles que o não são, mas se perdem no que é múltiplo e variável, não são filósofos [...]” (Platão, República, 484b).
Para entender as palavras de Platão, faça o seguinte experimento: observe um dia qualquer de inverno. Junte algumas pessoas e pergunte a elas se está fazendo frio. Você irá testemunhar um enorme desacordo entre as respostas. Mas por que as pessoas não chegaram a um acordo em suas respostas? Para Platão, o conhecimento do mundo baseado em sensações gera confusão e multiplicidade de opiniões. Como conseqüência, nós não podemos ter um conhecimento seguro sobre o mundo fundamentado em meras opiniões. O conhecimento racional exige que algo seja reconhecível por todos que possuam a capacidade de raciocínio. E a marca da opinião é justamente a multiplicidade de juízos, confusão e desacordo, uma vez que se sustenta em sensações individuais e na variação de testemunhos dos outros (“ouvir dizer”).
Segundo o filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646-1716) existem dois tipos de verdades: “Podem ser verdades de razão ou verdades de fato. As verdades de razão são necessárias, enquanto as de fato são contingentes.” [12]
Cada ser humano tem um (e somente um) local de nascimento. Essa é uma verdade de fato, e é contingente porque poderia ser de outro modo: se seus pais, leitor, tivessem nascido no Afeganistão e se tivessem decidido ficar por lá, provavelmente você teria outro lugar de nascimento, diferente do que DE FATO tem. Verdades de fato estão relacionadas com possibilidades.
Uma verdade é necessária quando em qualquer mundo possível o resultado é sempre o mesmo. Não há possibilidade de conceber um mundo em que ‘2+2= 7’ é verdadeiro. O resultado dessa operação é necessariamente 4, em qualquer mundo possível. “Os mundos possíveis são modos como as coisas podem ser.” [13]
O instrumento da Filosofia é a lógica e, como disse outro filósofo, Wittgenstein[14]: “O que é lógico não pode ser meramente-possível.”




Notas:
[1] Reale, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993, Vol. I.
[2] Diôgenes Laêrtios viveu por volta do século III da era cristã. Sobre ele, pouco se sabe. Deixou uma obra importante sobre os filósofos antigos que, em certos casos, é a única fonte biográfica: “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres.” Brasília: editora da UNB, 1977; 2. Ed.           
[3] Reale continua a apresentar a especificidade da filosofia, quanto ao método: “E é este caráter que confere cientificidade à filosofia. Tal caráter é comum também à outras ciências, as quais, exatamente enquanto ciências, nunca são apenas constatação e verificação empírica, mas são sempre busca de causas e de razões. Mas a diferença está em que, enquanto as ciências particulares são buscas de causas de realidades particulares ou de setores de realidades particulares, a filosofia é, ao invés, busca de causas e princípios de toda a realidade”. (P. 29)
[4] Idem, p. 28.
[5] Platão. República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. s/d, 8ª. Ed. (376 a-c).
[6] É necessário lembrar que, para Platão, conhecer é reconhecer. Cf. o diálogo Mênon. Rio de Janeiro: editora Puc-Rio/Edições Loyola.
[7] Idem (475b).
[8] Idem (475e).
[9] Idem .
[10] Idem (393d).
[11] Jaeger, W. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
[12] Leibniz, G. Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, Col. Os Pensadores, 2000; p. 359.
[13] Branquinho, J. Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006; p. 536.
[14] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: EDUSP, 2001ç p. 137.

Paulo Henrique L. de Castro


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