domingo, 26 de dezembro de 2010

Sobre a Insurgência e o Inegociável (parte II).

Consta que em 1855, em Taubaté-SP, chegou aos ouvidos do delegado local um rumor sobre insurreições de escravos nas zonas cafeeiras. Como de costume no Brasil escravagista, o levante foi punido com extrema violência. Nos julgamentos dos líderes da insurreição, um advogado de escravos foi duramente censurado. “Diziam seus detratores que defender um homem pertencente a essa classe que queria insurgir-se era abalar a força moral dos habitantes da localidade.” [1]
Não é novidade para ninguém que um dos traços marcantes da moral do brasileiro seja o mandonismo[2]. Em razão deste traço, qualquer manifestação de desprezo em relação ao status de mando que alguém tenha é julgada antecipadamente como imoral. Resistir, recusar, boicotar e sabotar são ações encaradas como nocivas e anti-sociais. É como se a reverência ao mandatário fosse algo religioso e que, de tão sagrado, jamais poderia ser alvo de questionamento, repúdio ou afronta. Respeitar hierarquias, ainda que beneficiem mais quem está no topo da estrutura do que quem esteja embaixo, é uma devoção para a moralidade brasileira.
No entanto, um aspecto deste traço cultural do brasileiro nos intriga: por que deveríamos julgar negativamente (isto é, considerar imoral) um ato de insubordinação? Qual o fundamento para aceitar que, a despeito do abuso de poder e da concentração de privilégios, temos que lidar respeitosamente com o tirano? Um olha lúcido demonstraria justamente o contrário: se há uma relação desigual, estruturada de acordo com as posições sociais de mando e obediência, então é louvável que a parte com menor fração recuse a própria relação nomeando-a como ilegítima. Portanto, imoral é a relação de desigualdade em que o mandatário usa instrumentos (poder) para a manutenção dos seus privilégios, o que acaba por tornar, paradoxalmente, a recusa como um ato moralmente aceitável. Para entendermos o argumento será necessário [a] esclarecer dois conceitos filosóficos: “moral” e “ética”; [b] observar a ambivalência da moralidade.
Para conviver precisamos de acordos. Todo acordo é constituído por regras e normas que devem ser observadas pelas partes envolvidas. ‘Moral’ é o nome dado ao conjunto de regras, normas ou princípios que orientam o comportamento que repercute na vida dos outros. Evidentemente, a existência de normas para regulamentar as relações entre as pessoas cumpre uma função: a própria possibilidade de co-existir. Em outras palavras, só é possível a convivência com o mínimo de regras que concilie os interesses pessoais com os interesses coletivos. (uso como referência a obra “Ética” de Sánchez Vásquez[3]).
Os atos do indivíduo são enquadrados em normas em função da necessidade de convivência harmoniosa (o que implica obviamente a noção de igualdade), da distribuição equitativa das vantagens para os membros da comunidade, por fim, para que a condição gregária não se torne impossível. A moral, portanto, diz respeito as nossas ações. Mais especificamente falando: a moral só tem sentido porque nossos atos têm repercussões na vida dos outros. “Ética” é a palavra usada para designar o campo filosófico de estudo sobre a moral, mas também é sinônimo de moral em determinados contextos. 
Tugendhat[4] nos lembra que o problema é que freqüentemente as pessoas se orgulham em dizer o quanto são éticas e o quanto os OUTROS não são éticos: errados são os outros! Encontramos por todos os cantos pessoas que se dizem baluartes da moralidade e dos bons costumes. Então como entender a ética se todos se julgam éticos? Há dois aspectos que devem ser observados: [a] valores morais são dependentes de costumes e [b] valores morais são dependentes da nossa constituição emocional.
Os valores morais são dependentes de costumes, como já havia indicado Aristóteles. Para o filósofo grego, a própria origem da palavra ήθική (ética, virtude moral) já revelava como nos constituímos como seres morais, uma vez que tal termo deriva de έθος (hábito, costume, modo de ser)[5]. Certamente que Aristóteles não queria dizer com isso que bastaria que o sujeito se acostumasse com virtudes morais e teríamos um cidadão ético, isto é, agindo de acordo com as normas prescritas pelos costumes, mas apenas indicar que os valores morais estão intimamente ligados aos costumes e hábitos.
Valores morais dependem também de nossa constituição emocional. Outro filósofo, o inglês T. Hobbes[6], deu muita ênfase no papel das paixões na constituição do sujeito ético: nossos julgamentos morais estão assentados naquilo que nos agrada ou desagrada. Assim, não só julgamos as ações dos outros como morais/imorais baseados em critérios emocionais, mas também agimos mediante tais critérios. Como nossas emoções sobre qualquer assunto são extremamente variadas, então estaríamos condenados ao eterno desentendimento.
Ora, se os costumes são diferentes e se os estados emocionais são subjetivos, segue-se que as normas morais são relativas. Isso explica o fato de que, ao julgarmos, errado é sempre o OUTRO (afinal, quem gostaria de se reconhecer como um indivíduo imoral?). Portanto, a perspectiva moral pode mudar de acordo com a posição social do agente.
Disso resulta a ambivalência da moral: a “crença moral” (o que acreditamos ser certo ou errado) é algo muito diferente da distribuição real de vantagens, dos bens, dos danos e prejuízos. Se os valores morais são subjetivos, então são pouco efetivos para legitimar a objetividade da vida prática. Em outras palavras, um escravo pode ser censurado por desobedecer ao senhor e a censura pode evocar os princípios mais nobres que podemos imaginar para justificar que um homem seja escravo do outro, mas ainda assim escravo fica na senzala e senhor na casa-grande. E, se uma condição extrema como a escravidão pode ser defensável, é fácil compreender porque as pessoas defendem e estão pouco dispostas a desafiar um tirano qualquer, seja “chefe de família”, um patrão, um líder político, um sacerdote, um professor, entre outros, apenas pelo culto à posição de mando que eles ocupam e pela crença enraizada de que uma hierarquia jamais pode ser errada.
Se isto estiver correto, os homens continuarão se revoltando e os levantes serão sempre justificáveis. Fico com as belas palavras de Michel Foucault: As insurreições pertencem à história. Mas, de certa forma, lhe escapam. O movimento com que um só homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diz: “Não obedeço mais”, e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco da sua vida – esse movimento me parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente impossível: Varsóvia terá sempre seu gueto sublevado e seus esgotos povoados de insurrectos. E porque o homem que se rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razões, para que um homem possa, “realmente”, preferir o risco da morte à certeza de ter de obedecer.”[7]

Paulo Henrique Castro


[1] Costa, E. V. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
[2] Freyre, G. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2003.
[3] Sánchez Vásquez, A. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; p. 69-70.
[4] Tugendhat, E. Lições sobre Ética. Paz e Terra, 2004.
[5] Aristóteles. Nicomachean Ethics. Massachusetts: Harvard Universety Press, 1999.
[6] Hobbes, T. Leviatãn. São Paulo: Martins fontes, 2003.
[7] Foucault, M. Ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

Um comentário:

Rota Romântica-Valnora disse...

Falar de insurgência num país como o nosso, onde ainda prevalece o "manda quem pode, obedece quem tem juízo", requer competência e, acima de tudo, coragem.
Parabéns, Paulo Henrique