terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Sobre a Insurgência e o Inegociável (parte I).

Por que o homem se insurge? Quais as razões para seguir o rebanho e simplesmente obedecer e obedecer? Qual é a raiz da insurgência? Por que se rebelar quando podemos obedecer e seguir vivendo? Bem, não é um assunto tão simples.
Para começar, nem todos na sociedade se rebelam. Há muitas vantagens para não se insurgir, uma delas é o medo de sofrer injustiças ainda maiores. De fato, parece que a maioria das pessoas prefere a conveniência, os lucros e as vantagens do conformismo, a ter que se embrenhar em lutas ou reivindicações que podem apenas trazer problemas, intranqüilidade ou mesmo a morte de quem faz questionamentos ou se insurge. Em qualquer sociedade humana os homens poderiam simplesmente obedecer e, bem ou mau, seguir suas vidas sem ousar desafiar o poder estabelecido. Assim, parece mais adequado se conformar.
A despeito desta conclusão óbvia, existem aqueles que não se conformam, lutam, protestam, fazem queixas, explodem prédios, queimam o próprio corpo por uma causa; morrem e matam. Por que alguns resolvem desobedecer? Fatos como o levante de cidadãos húngaros despreparados, mal armados, sem experiência de luta armada ou de guerra/guerrilha, contra o poderoso exército soviético em 1956, gera mais espanto ainda. Como foi possível que adolescestes, mulheres e até idosos se insurgissem contra um dos exércitos mais bem preparados do mundo? Como sabemos o levante acabou em tragédia: os húngaros foram barbaramente destruídos pelos Russos. Mesmo que cada evento histórico sofra influências particulares, não podemos deixar de notar que a insurgência é um fenômeno encontrado em todas as sociedades e culturas, caso contrário, haveria algum agrupamento humano sem regras. Na verdade não há. Toda sociedade proíbe algo.
Há justificativa para revoltar-se? Ora, os homens têm o costume de colocar etiquetas nos potes de açúcar e sal. Confundir tais substâncias nunca é desejável. Do mesmo modo os filósofos inventaram as etiquetas “dignidade” e “coisalidade”, para não confundirmos o que é coisa e o que é gente. “Coisa” é aquilo que não pertence a si mesmo, mas pertence a outro. Por isso pode ser vendida, manipulada, destruída e banalizada. “Gente” é aquilo que não pode sofrer as ações que são conferidas às coisas. “Gente” não é propriedade. Quando alguém é dono de alguém, a vida é indigna e a revolta é sempre legítima. “Dignidade” e “coisalidade” não são etiquetas permutáveis. Por essa razão, como afirma Foucault[1], a revolta é o momento em que nada na vida é permutado. Daí não ser preciso buscar justificativas para a revolta. “Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se os seus poderes não são “absolutamente absolutos”, é porque, por trás de todas as aceitações e coerções, além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais se permuta na vida, em que os poderes nada mais podem e no qual, na presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem.” (Foucault[2])
Quando um homem prefere o risco de morre a viver agrilhoado, estamos diante da manifestação daquilo que é inegociável: a reivindicação incondicional da dignidade. Quanto a isso, não há poder “absolutamente absoluto”; não há poder que resista frente a experiência dilaceradora do inegociável. Parece que para alguns homens, como cantou Trilussa em seus versos, a focinheira cabe melhor ao cão do que ao homem, que os faz preferir antes a morte do que o amordaçamento.  Desse modo, enquanto houver usurpação da dignidade, haverá levantes.
A injustiça produz inquietação. Uma das mais emblemáticas lições sobre a insurgência é a tragédia Antígona de Sófocles (495 a. C. – 406 a. C.). Hino á liberdade, Antígona é o modelo perfeito daquele que se insurge diante do inegociável. Nossa heroína, Antígona, não acatou o decreto do tirano que a impedia de sepultar o seu ente querido (haverá algo mais indigno? Há tantas formas de indignidade quanto podemos imaginar. Parece que o homem se especializou em violar a dignidade dos demais). Curioso é que algumas pessoas viam em Antígona um ato insano, afinal, caso ela ousasse violar o decreto estabelecido pelo Tirano, seria sentenciada a morte. O “certo”, diziam os outros, era que Antígona devesse se conformar. É justo revoltar-se? Para pessoas como Antígona, se existe um poder desigual que viola a dignidade nos tratando como coisas, a questão anterior não tem resposta: ela é definitivamente absurda.
Há uma crença muito difundida entre as pessoas em achar que qualquer manifestação de revolta, rebelião ou rebeldia, seja um ato socialmente negativo. Em quais condições insurgir-se (revoltar-se, sublevar-se, etc.) é justo? “Insurgir” significa agir contra qualquer exercício injusto do poder estabelecido. Muitas situações humanas coletivas às vezes exigem o papel de uma liderança, alguém que tenha mando, que governe, dirija, administre ou controle o comportamento das outras pessoas. Isto vale para o Estado, para o escritório, para a família, para a fábrica, para o namoro ou quaisquer outros âmbitos das relações humanas. Tais situações são estados de governo. “Governar” é toda ação que controla, dirige ou influencia as ações e o comportamento alheio[3]. Assim, “governar” é uma noção ampla, que não se restringe ao papel do Presidente da República, do Rei ou Imperador (como freqüentemente estamos habituados a pensar). Designa um vasto campo de papéis sociais (ser patrão, ser mãe, ser pai, ser policial, ser professor, ser homem, ser mulher, ser proprietário, ser chefe, ser supervisor, enfim, qualquer situação de mando).
O problema é que a história nos mostra que o exercício do governo pode ser justo ou injusto. De que modo as pessoas reagem frente a um governo injusto? Como muito bem observou Platão, a injustiça gera ressentimentos e qualquer tarefa que não seja executada com justiça engendrará um quadro de revolta. Na República, Platão[4] apresenta o seguinte diálogo em que Sócrates começa perguntando a Trasímaco:
“[...] parece-te que um Estado ou um exército, piratas, ladrões ou qualquer outra classe, poderiam executar o plano ilegal que empreenderam em comum, se não observassem a justiça uns com os outros?
— Certamente que não — respondeu.
— E se a observassem? Não seria melhor?
— Absolutamente.
— Decerto, Trasímaco, é porque a injustiça produz num e noutros as revoltas, os ódios, as contendas; ao passo que a justiça gera a concórdia e a amizade. Não é assim?
— Seja — respondeu —, só para não discutir contigo.
— Fazes bem, meu excelente amigo. Mas diz-me o seguinte: se, portanto, é este o resultado da injustiça — causar o ódio onde quer que surja — quando ela se formar entre homens livres e escravos, não fará também que se odeiem uns aos outros, com que se revoltem e fiquem incapazes de empreender qualquer coisa em comum?
— Precisamente.
— E se se originar entre duas pessoas? Não ficarão divididas, odientas e adversárias uma da outra e dos que são justos?
— Ficarão — respondeu.”
Não é difícil compreender que mesmo para executar um roubo os ladrões (ao menos entre si), deverão organizar-se segundo alguma noção de justiça. Quase sempre a partilha do espólio revela, então, se o ato foi justo ou injusto. Por mais esdrúxulo que isso possa parecer a discórdia entre os ladrões está relacionada com o direito a partes iguais. E não existe conceito mais íntimo de justiça que não seja o de direito de igualdade.
O senso de igualdade é, portanto, o gatilho para a revolta. Resta saber de que modo esse gatilho não é acionado mesmo diante das desigualdades mais atrozes.
Paulo Henrique Castro





[1] Foucault, M. Ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
[2] Idem, p. 77.                                                                      
[3] Houaiss.
[4] Platão, República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Passos 351c-e. 

3 comentários:

REGINA disse...

Amor, como sempre, impactante!
Será um momento vida?Sorrisos!
Que venham outros textos...
Te amo
Rezinha

Patrícia Dinamarco disse...

Adorei o texto,
espero que a ADESC não seja uma "coisa", mas a personificação dos professores, algo que não pode ser vendido, manipulado, destruído ou banalizado, pois nela se encontra a dignidade de todos os professores da ESC.
E quando atentarem contra o que nos é inegociável, possamos estar unidos, numa só voz, a da ADESC.

Unknown disse...

Que prazer imenso te ver por aqui, Patrícia! Adorei o inteligente comentário e comungo com você as esperanças... "numa só voz, a da ADESC."
Obrigado! PH.