domingo, 29 de maio de 2011

Elogio a Dostoiévski.

§ 1. Restavam três dias para o Natal de 1849, em São Petersburgo. Após um ano e oito meses preso, o condenado à morte é finalmente levado ao pelotão de fuzilamento. O capuz foi colocado na cabeça do infeliz, as armas foram engatilhadas e o silêncio fúnebre foi interrompido, não pelo barulho dos fuzis, mas pela leitura surpreendente da revogação da pena de morte do prisioneiro, convertendo-a em quatro anos de trabalhos forçados. O sentenciado era Fiódor Dostoiévski (1821-1881), um dos mais importantes escritores da literatura mundial. Que tipo de marcas psicológicas deve ficar em alguém que passa pela experiência de sentir o hálito da morte?
§ 2. O que sempre me encantou em Dostoiévski é a ligação do escritor russo com a experiência do limite. Tudo indica que ter estado às portas da morte, tenha feito o autor de “Recordações da Casa dos Mortos” voltar-se para a condição precária da existência humana. Todavia, o limite tematizado por Dostoiévski não é entre a vida e a morte, como poderíamos apressadamente supor. O limite do qual o mestre fala é aquele que separa a vida medíocre (ordinária), da vida incomum (extraordinária).
§ 3. É verdade, o tema não é novo. A Ilíada e a Odisséia, obras gregas atribuídas a Homero, indicam o valor de uma vida incomum. Havia até um dito popular que expressava: “faça sua a beleza” (ποιέ σέ καλον), isto é, só uma vida considerada bela em feitos e realizações poderia ser valiosa. Era com esse lema que os guerreiros gregos se preparavam para a guerra: poliam os escudos, arrumavam os cabelos, limpavam as espadas e escolhiam as melhores sandálias. Pra quê? Um guerreiro homérico desejava que seus feitos em guerra fossem cantados (também contados) e que seus atos de bravura fossem apreciados como realizações extraordinárias, inimagináveis e, portanto, belas. Assim, não era a morte que interessava, mas aquilo que era feito em vida. (Deixo para outra publicação o debate sobre as condições sociais para realizar belos feitos, já que os guerreiros gregos eram todos aristocratas com escravos).
§ 4. Dostoiévski contou a ousadia de pessoas medíocres (“medíocre” quer dizer “na média”) que foram além dos limites impostos pelo rebanho, rompendo com os pactos que reduzem uma pessoa à um número na multidão. Somos o que os outros querem que sejamos (eis o limite do permitido). Somos o que a tradição manda: uma ovelha tem que ser o que as outras são e deve seguir o que o pastor manda. O limite do permitido é ser mais um número em uma lápide (com muita sorte você ganha uma frase bacana embaixo do número). Mesmo os “esmagados pela pobreza” (a expressão é do escritor russo) podem romper com os grilhões que nos mantém como mais uma cabeça na manada (a regra no rebanho é assim: sem exercitar o potencial criativo, crítico e analítico).
§ 5. Em “Crime e Castigo” há uma passagem muito emblemática: o absorto personagem Raskólnikov caminhava pela rua. Suas roupas eram comuns, isto é, não era diferente do que a maioria usava. Porém, o rapaz estava com um velho e surrado chapéu Zimmerman, e isso já não era comum. Era, digamos... estranho. Não demorou e o adorno diferente de Raskólnikov foi notado. Um bêbado começou a rir e Raskólnikov pensou: “Eu bem que sabia! – resmungava perturbado –, eu bem que sabia! E isso é o mais detestável! Vem uma bobagem qualquer, a coisa mais vulgar do mundo, e pode estragar uma idéia! É, um chapéu que chama atenção demais... Ridículo, e é por isso que chama atenção...” (Lembrei desta passagem porque não tem muito tempo e eu estava caminhando em uma rua de uma cidade pequena, indo ao dentista, sol forte e eu com meu panamá na cabeça. Notei, surpreso, que as pessoas me olhavam naquela tarde como se eu estivesse com uma melancia na cabeça ou fosse um ser estranho, meio extraterrestre, mas era apenas um chapéu. Como disse o velho mestre russo: “Ora, ninguém usa isto, de longe se nota, se grava...” Tive o meu momento Raskólnikov).
§ 6. “No caso aqui é preciso passar o quanto antes despercebido...” Em uma palavra é preciso ser “normal”. Dostoiévski antecipou em muito a análise feita por Michel Foucault, sobre os processos de normalização, de construção do ordinário, do comum, da repugnação do que quer que seja diferente da manada humana. É necessário ser como todo mundo é. O anormal, diz Foucault, é uma monstruosidade.
§ 7. “Hum... é... tudo está ao alcance do homem e ele deixa escapar só por medo... é mesmo um axioma. Curioso: o que será que as pessoas mais temem...” Temos medo do ridículo, mas a ousadia de ultrapassar o limite pode ser um daqueles momentos raros em que pensamos: valeu à pena. Sou diferente e preciso exercer a minha diferença, criando, explorando, fazendo diferença no meio da manada que segue tranquila para o curral.
§ 8. Lembro do meu primeiro encontro com Dostoiévski. Como de costume, eu e meu amigos conversávamos nos intervalos das aulas, nos corredores charmosos do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. O papo era quase sempre sobre assuntos teóricos (o que também guardo com muito carinho, pois parecia que estávamos em uma ilha no meio da manada). Estavámos em três e um dos amigos disse, com um exemplar de “Os Demônios” nas mãos: “sobre o existencialismo, esse é dos melhores!” Fiquei perplexo com os comentários do meu amigo. Perguntei ao terceiro: “e aí, quando é que você vai começar a sua leitura de Dostoiévski?” Ele retrucou: “você tá maluco? Temos que ler as três críticas de Kant!” Pensei: “é verdade! Com tanta coisa obrigatória para ler na faculdade, não ia dar para ler Dostoiévski tão cedo”. Comecei a ler “Crime e Castigo” no dia seguinte.
§ 9. Talvez seja preciso ler aquele que viu a face impiedosa da morte, para despertar para a vida e reconhecer que uma vida valiosa é aquela em que realizamos as nossas obras, com a nossa marca registrada, ultrapassando o limite. Viver extraordinariamente.
Paulo Henrique Castro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi amor, mais um texto magnífico!
Com certeza as pessoas que não estão dentro do padrão estipulado pela sociedade são vistas como ET's... a maioria que não é assim, se fecham nesse mundinho padronizado por medo dos julgamentos e assim não vivem extraordinariamente!
Viva Dostoiévski, viva você! Te amo!Rê

"Crime e Castigo - realidade: parábola da culpa e da punição"

Unknown disse...

Obrigado, amore mio!! É o padrão, como vc observou, que torna a vida medíocre. O medo entorpece e nos conformamos com o mínimo. Bjs de amor!