domingo, 10 de julho de 2011

Não te escuto. Logo, sou Ignorante.

O presunçoso se expressa em um diálogo como se estivesse falando com as paredes: ignora o outro, ainda que este fique com o dedo levantado esperando a sua vez. Você já conversou, ou melhor, já ficou ouvindo alguém presunçoso? É desagradável. A pessoa desanda a falar com aquele ar professoral, como se estivesse dando aulas para um espelho. Não pergunta, não checa se o outro tem uma opinião diferente, não oferece ao outro a oportunidade de falar, em uma palavra: monólogo.

Aquele que conversa consigo mesmo na frente de outra pessoa sem ouvi-la é um ignorante, sem dúvida. Primeiro porque ignora o outro (no sentido de não levar a perspectiva alheia em consideração; desprezo), o que é estupidez, grosseria, falta de educação. Segundo porque o sujeito desconhece (ignora) que o conhecimento de qualquer coisa envolve aspectos que não são todos visíveis apenas de um único ângulo (o do ignorante). Porém, o mais triste vem agora: o ignorante não percebe que, dependendo do público para quem ele apresenta o seu solilóquio, haverá alguém que o olha nos olhos e pensa: como ele (a) pode ser tão ignorante? Por que faz tanta questão de abrir a boca para falar do que não sabe, com ar de quem escreveu diversos volumes para a Enciclopédia dos Ignorantes Sabedores de Nada (DUMB, sigla em húngaro arcaico do século XV)?

Uma das coisas mais importantes que Descartes indicava a respeito de seu método de filosofar, era a fundamental diferença entre desconfiança e presunção. “Presunçoso” é aquele indivíduo que tem uma excessiva confiança em suas convicções, sem nem ao menos atinar para o fato de que elas possam estar profundamente equivocadas. Assim, Descartes afirmava pender mais para a desconfiança do que para a presunção na busca pela verdade. Desconfiar supõe perguntar e discutir.

“Discutir” não é brigar. Discutir é propor idéias e saber apreciar e tolerar as idéias alheias, até mesmo aquelas que são contrárias as nossas. Claro, nem sempre gostamos de ouvir idéias que nos incomodam, que põem em dúvida as nossas crenças mais aferradas. Por isso, muitas vezes, um diálogo vira “bate boca”. Mas, discutir não é fechar os ouvidos para o que os outros têm a dizer.

Sabemos que desde Sócrates a Filosofia se faz a partir da dialética, entendida como a arte do diálogo. O que é um diálogo? “Um diálogo é uma seqüência de trocas de mensagens ou atos de fala entre dois (ou mais) participantes. Tipicamente, porém, um diálogo é uma troca de perguntas e respostas entre duas partes.” [1]

(O ignorante não pergunta e nem responde: vocifera.)

Dialogar é trocar informações por meio de perguntas e respostas. Podemos conversar de vários modos e com vistas a vários fins. Entretanto, o tipo de diálogo que interessa ao filósofo é o diálogo racional, que se caracteriza pelo questionamento crítico, pela avaliação lógica e pelo comprometimento com o objetivo do diálogo.

O que é o objetivo do diálogo? “Todo diálogo surge de um problema, de uma diferença de opinião ou de um assunto a ser resolvido que tenha dois lados. Esses lados constituem o tema do diálogo”. [2] Assim, o primeiro passo em um diálogo é identificar claramente qual é o foco da conversa. Onde queremos chegar com a discussão? Qual é o tema que se está discutindo? Qual problema ou questão está em disputa? A falta de objetividade (incapacidade de manter a atenção no foco do diálogo) produz muita confusão e desentendimento. Quando as pessoas perdem de vista o foco do diálogo, cabe a crítica de não-pertinência: “isso não vêm ao caso”, “isso não é pertinente”, “você está falando de outra coisa” etc.[3]

Identifique o tema do diálogo, certifique-se sobre as suas convicções sobre o tema, assuma o seu compromisso com um dos lados. Se você não tem uma posição segura e clara sobre o assunto, então é de bom tom apenas levantar indagações para depois se posicionar. Desviar-se do assunto do diálogo é uma forma típica de gerar confusão e desacordos[4]. O diálogo racional tem um objetivo que não podemos perder de vista. Sair deliberadamente do assunto que está sendo tratado chama-se “divagar”. E a divagação não contribui para o diálogo racional.

Há muitos tipos de desacordos em um diálogo. Como afirmou o filósofo contemporâneo Douglas Walton, muitos não passam de pura tolice, considerando que ocorrem simplesmente por falta de educação e intolerância (ignorância). Não há forma mais medonha de intolerância do que “discordar por discordar”, isto é, não admitir que o outro tenha argumentos convincentes. É como o sujeito que diz: “você fica com a sua opinião, que eu fico com a minha.” Ou o “diálogo de surdos”, em que não ocorre nenhuma argumentação e as perguntas ficam indo e voltando para sempre:

Por exemplo, o crente e o ateu poderiam ficar perguntando para sempre: ‘Por que você não acredita na existência de Deus’ versus ‘Por que você acredita na existência de Deus?’ Essa atitude não faria o argumento avançar nem um pouco. Para chagar em algum lugar, cada um dos lados tem que assumir um razoável ônus da prova. Num diálogo, isso significa que cada lado tem que tentar justificar com sinceridade a posição que adotou e tem que se comprometer caso sua posição exija tal comprometimento.” [5]

De um modo ou de outro, “discordar por discordar” não tem fundamento. Se não tem fundamento, então por que exatamente ocorreu desacordo? Porque certas discussões são geradas quando crenças cegas são usadas como algo estabelecido e inquestionável.

Essa é a maior expressão daquilo que se convencionou chamar de dogmatismo. Imannuel Kant[6], filósofo alemão, reclamou da postura dogmática de modo enfático, afirmando que a razão deveria seguir a via segura da ciência “[...] em vez de tenteios sem fundamento ou de leviana vagabundagem a que a mesma se entrega quando procede sem crítica [...].” Ainda segundo Kant, o “[...] dogmatismo corrente recebe um encorajamento tão precoce e tão forte para discorrer comodamente sobre coisas de que nada entende nem entenderá, como ninguém poderá entender [...].”

(Amiúde o ignorante é um dogmático)

Ser dogmático é ser intransigente. E a intolerância emperra o diálogo, uma vez que descamba para a altercação pessoal. “Altercar”, significa “discutir com ardor”, “provocar polêmica”. Caracteriza-se por[7]:

[a] ataques pessoais, agressivos muitas vezes, contra o outro participante do diálogo;

[b] abandono do foco em questão (o objetivo do diálogo é colocado de lado). Há uma insistente tentativa de desviar as atenções do objetivo da disputa;

[c] apelo às emoções e vontade de vencer a discussão a qualquer custo (“vencer no grito”).

Em suma, é preciso evitar o erro de defender com firmeza conclusões apressadas e baseadas na ignorância. Isso se chama raciocínio dogmático e é o pior dos erros num diálogo racional. É preciso saber que, no outro lado da questão, pode haver argumentos tão razoáveis quanto os que você defende.” [8]

Ignorância é quase igual à masturbação: nego ao outro a possibilidade de amplificar o meu prazer (pode existir coisa mais pobre?). Bem, como eu disse, “é quase igual”. Diferente da ignorância, a masturbação contempla o outro em fantasia, ao passo que ignorar pressupõe uma exacerbada egolatria.

Paulo Henrique Castro.


[1] Walton, D. N. Lógica Informal: Manual de Argumentação Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 04.

[2] Idem, p. 14.

[3] Idem.

[4] Confira neste blog um texto sobre desacordos: “Desacordos filosóficos ou meramente verbais?”

[5] Walton, D. N. op. Cit., p. 65.

[6] Kant, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulben kian. 1997, p. 28.

[7] Walton, D. N. op. Cit.

[8] Idem, p.66.

2 comentários:

REGINA disse...

* Arrasou no texto meu amor...vivemos num mundo onde a maioria das pessoas não escutam umas as outras...só querem falar, e não aceitam opiniões...e viva os poucos não ignorantes que ainda restam... *

Unknown disse...

Obrigado, Rezinha! Bjs, PH.