domingo, 24 de julho de 2011

Filosofia da Religião II.

 

Sete de janeiro de 1974, Parque Nacional de Gombe. Pesquisadores[1] observam e acompanham a movimentação de um bando de oito chimpanzés durante dias na mata fechada. Eram sete machos (seis adultos e um adolescente) e uma única fêmea sem filhotes, chamada pelos cientistas de Gigi. O macho alfa (líder do bando) era Figan. Um outro macho muito forte se chamava Humphrey e pesava cerca de 50 kg.

Na floresta, cada bando de chimpanzés tem o seu território bem delimitado. Enquanto os oito chimpanzés percorriam a sua região, ouviram as vocalizações de uma comunidade vizinha de chimpanzés, não pertencente ao grupo original e muito menos ao território dos oito primatas. Curiosamente, o bando que ouviu os grunhidos não emitiu nenhum som em resposta. Ficaram em silêncio (sabe-se que o chimpanzé é um animal muito barulhento, tanto em cativeiro, quanto em estado selvagem), e ainda aumentaram o ritmo da caminhada. Vasculharam os limites da sua área e foram além, avançando sobre o território do bando vizinho de modo muito rápido.

Enquanto isso, no território da comunidade barulhenta, havia um macho adulto, Godi, pacificamente comendo em uma árvore. Um pouco distante havia seis outros machos pertencente ao mesmo grupo de Godi, que fizeram aquelas vocalizações que o outro bando tinha ouvido. Freqüentemente Godi andava com a sua turma, mas, por algum motivo, naquele dia ele estava sozinho (um erro que iria custar a sua vida).

Quando Godi se deparou com o grupo rival dos oito chimpanzés intrusos ele ainda estava em sua árvore. Pulou e correu, mas foi cercado pelos invasores.

Humphrey foi o primeiro a atacar Godi, agarrando-o pela perna. Desequilibrado, Godi caiu de frente, com a face voltada para a lama, e Humphrey pulou sobre ele, imobilizando-o com seus 50 kg e segurando com as mãos os membros superiores da vítima, ao mesmo tempo em que mantinha a perna de Godi presa (os chimpanzés usam os quatro membros com a mesma habilidade, ao contrário do ser humano).

Durante a vigorosa imobilização imposta por Humphrey, os outros intrusos atacaram Godi. Hugo, o mais velho, usando os dentes, arrancou pedaços da carne de Godi. Outro macho deu golpes na altura da escápula e recuou (é necessário lembrar que um chimpanzé adulto é 5 vezes mais forte do que o homem). O adolescente apenas assistiu e Gigi gritava e circulava em torno do ataque, que continuou com mordidas e pancadas.

Após dez minutos, Humphrey soltou a perna de Godi e os outros pararam de bater. Enquanto o animal ferido tirava a sua face da lama, uma enorme pedra foi lançada sobre ele. Haviam feridas impressionantes por todo o corpo de Godi, jorrando sangue. “Ele nunca mais foi visto de novo. Pode ter sobrevivido por alguns dias, talvez uma semana ou duas. Mas ele certamente morreu.” [2]

O grupo de chimpanzés que invadiu o território dos vizinhos, depois do ataque, retornou para os limites da sua área original, dessa vez menos excitados.

O relato deste ataque foi o primeiro registro científico de que animais não-humanos usavam de violência gratuita (o primeiro de inúmeros registros em diversos locais na África e também em cativeiro). Há descrições apavorantes sobre a intensidade da violência entre estes animais. Por diversas vezes observou-se que quando um grupo cerca um único indivíduo, após imobilizá-lo, arrancam-lhe os dedos (as unhas dos chimpanzés são muito afiadas, feito navalhas) e até bebem o sangue da vítima. Em alguns casos foi registrado que os algozes voltaram ao local em que o corpo do animal foi deixado morto. Olharam e foram embora[3].

Por que Humphrey e sua turma atacaram? Não foi para defender o seu território, considerando que o ataque foi no espaço do grupo vizinho; também não foi por alimento, pois os animais atacaram e foram embora sem se servir de nada para comer; não foi por defesa, dado que eles estavam distantes do território vizinho e não foram atacados; não pode ser por livre escolha, já que livre-arbítrio é uma capacidade que Deus deu apenas aos humanos, como alegam determinadas correntes teológicas. Então por quê? E por que usaram de tanta violência (lembre-se do episódio da pedrada, quando Godi já estava jorrando sangue por diversas feridas)?

Além de o fato em si ser de difícil explicação, as descrições deste tipo de violência tão orquestrada entre animais não-humanos enfraquece a tentativa de compatibilizar a existência de um Deus bondoso, todo-poderoso e onisciente, com a existência do mal natural (debate que iniciamos na publicação anterior deste blog). É difícil de imaginar quais seriam as razões que um Deus bondoso teria ao criar animais que possam fustigar uns aos outros com esse requinte de crueldade.

O argumento do instinto também não parece funcionar. De acordo com essa argumentação, o animal age por instinto, logo não pensa. Daí segue-se atos que para nós parecem incompreensíveis, mas que ocorrem segundo uma programação fixa na natureza e planejada por Deus. Uma vez em andamento, a natureza teria seguido o seu rumo e, portanto, as ações observadas entre os animais já não estariam ligadas à bondade divina. Ora, mas o argumento parece frágil se atentarmos para dois motivos: [1º.] Ainda que as ações violentas dos chimpanzés sejam decorrentes de uma programação cega, quem a programou foi Deus; e, sendo todo-poderoso, poderia ter programado ao menos os animais não-humanos de tal modo que não ocorressem sofrimentos decorrentes dos atos deles mesmos. [2º.] A crueldade (penso que ninguém chamaria o ato de receber uma pedrada como um ato de bondade, assim, me furto de debates meramente verborrágicos[4]) de um animal para com o outro não parece servir à função pedagógica, que se alega ser típica da asserção de que humanos possuem livre-arbítrio. Porque se admitirmos que haja no Plano divino para os animais também um propósito de ensinar o Bem maior (o crescimento moral e espiritual), então teremos que estender a noção de capacidade de livre escolha aos animais, o que é contraditório com a noção de instinto. Ou bem os chimpanzés agem por puro instinto e, nesse caso teríamos que oferecer uma réplica para a primeira objeção [1º.], ou bem os chimpanzés tem livre-arbítrio, o que anula o próprio argumento do instinto.

De qualquer forma, permanece enigmática a co-existência de um Deus bondoso, onipotente e onisciente com o mal natural. O fato de animais serem cruéis faz retornar um argumento que já encontramos em Epicuro e que David Hume reacende:

Ou Deus quer acabar com o mal, mas não pode (caso em que deixaria de ser um Ser Todo-poderoso); ou Deus pode acabar com o mal, mas não quer (caso em que Deus deixaria de ser sumamente bom); ou Deus quer acabar com o mal, pode fazê-lo, mas não sabe como (caso em que não seria onisciente).

Em qualquer dos casos mencionados anteriormente, os atributos divinos estariam em cheque, quando a discussão inclui a existência do mal natural. Como tipicamente Deus, nas religiões monoteístas, é descrito com tais atributos (bondade, onipotência e onisciência), a sua própria existência passa a ser objeto de sérias dúvidas. Como resolver este dilema?

Paulo Henrique Castro.


[1] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996.

[2] Idem, p.6.

[3] De Waal, F. B. Eu, Primata. São Paulo: Companhia das Letras. 2007.

[4] Veja neste blog um texto sobre desacordos: “Desacordos filosóficos ou meramente verbais”.

Nenhum comentário: