segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sociedade Disciplinar, Escola e o Saber Útil.

 

O objetivo deste texto é apresentar a análise feita por Michel Foucault (1926-1984) sobre a origem da sociedade disciplinar e refletir sobre o papel da escola neste modelo de sociedade.

Paul-Michel Foucault nasceu em Poitiers, França, em 15 de outubro de1926. Com formação em Psicologia e Filosofia, Foucault foi professor da prestigiada Ecole Normale Superiéure e se tornou mundialmente famoso em 1961 com a sua obra “A História da Loucura”. Apresentou conferências no mundo todo, incluindo Brasil, Japão e Estados Unidos. Foucault morreu em 25 de junho de 1984, deixando uma obra rica e complexa.

Em 1975, o filósofo francês publica “Vigiar e Punir”, pesquisa histórica que aborda os métodos de controle social, suas mudanças, características e efeitos na constituição dos indivíduos, bem como a delimitação entre o normal e o anormal. Apresentaremos, logo abaixo, a análise feita por Foucault sobre o momento histórico em que se descobriu que era mais eficaz vigiar do que punir.

1.1. Poder-saber.

Entre os Séculos XVII e XIX houve uma mudança na forma de controle social (impedir roubos, sufocar agitações, coibir adultérios etc.), decorrente de eventos históricos de caráter econômico, jurídico-político e científico.

Na primeira parte de “Vigiar e Punir”, Foucault dedica sua análise ao suplício (nome genérico para as punições físicas como tortura, esquartejamento, enforcamento, mutilações etc. que eram determinadas por sentença judicial para delitos graves, típicas dos séculos XVII e XVIII).

A execução de Tiradentes é um exemplo marcante de como se punia alguém no século XVIII: enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro, a cabeça foi exposta em Vila Rica e as outras partes do corpo foram colocadas em locais públicos em outras cidades em que o alferes havia divulgado as idéias da Inconfidência.

Para usar uma expressão de Foucault, os suplícios eram “espetáculos punitivos” e continham um caráter pedagógico (a exposição das partes de Tiradentes atendia a um propósito: ensinar ao povo que qualquer forma de rebelião não seria tolerada e a punição seria igualmente severa). O que intrigou Foucault foi a supressão do suplício como forma punitiva e as novas formas de punir que surgiram no lugar das antigas. O que houve para que os formas de punição fossem modificadas? “É preciso punir de outro modo [...]. O suplício tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o ‘cruel prazer de punir’.”[1]

Acontece que a sociedade industrial exigia novas formas de exercício do poder, algo mais sutil, menos explícito do que os espetáculos sangrentos, pois do ponto de vista político os suplícios se tornaram impopulares. Surge, então, a disciplina, já adotada nos conventos, mas com contornos nitidamente capitalistas:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’.” [2]

Os processos disciplinares tinham, assim, um duplo objetivo: tornar o indivíduo dócil ao mesmo tempo em que se tornasse útil economicamente:

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).” [3]

As instituições da sociedade industrial, fábrica, escola, hospital, quartel, asilo etc. vão ser construídas a partir desses esquemas disciplinares, estabelecendo, além do enclausuramento, normas como horário para todo tipo de gesto, determinações expressas de comportamentos adequados, uniformes, uso de filas, exigência de silêncio e vigilância constante (o panóptico, como veremos logo abaixo).

Os mecanismos disciplinares estão ligados a um projeto de transformação dos indivíduos: fabricar sujeitos dóceis e úteis. Deve-se lembrar que para Foucault, “o saber designa, o processo pelo qual o sujeito do conhecimento, ao invés de ser fixo, sofre uma modificação durante o trabalho que ele efetua na atividade de conhecer.” [4]

Portanto, não é demais afirmar que o saber próprio do exercício do poder disciplinar engendra transformações no indivíduo, intimamente vinculadas ao interesse da sociedade disciplinar: ser dócil politicamente e ser útil economicamente. Um autômato que não incomoda e contribui para o acumulo de riquezas e da circulação de produtos. Qual a relação do poder-saber com a educação? Veremos no final do texto. Por hora, resta falar de um outro mecanismo disciplinar: o panoptismo.

1.2. Panoptismo.

Para o filósofo francês, um dos traços característicos da sociedade disciplinar é o que ele denominou de panoptismo. Do que se trata?

É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua, em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas.” [5]

Percebam que o controle se dá com o fim de corrigir, formar, transformar, em outras palavras: fazer com que o indivíduo internalize o saber útil para aquele modelo de sociedade: capitalista, industrial etc.

Segundo Foucault, portanto, o panoptismo possui um tríplice aspecto: [1] vigilância; [2] controle; [3] correção.

Em “Vigiar e Punir”, Foucault explica com maior detalhe o fenômeno do panoptismo. O autor inicia a sua análise com a apresentação das medidas que eram tomadas quando se declarava a peste em uma cidade: policiamento rigoroso, fechamento da cidade, proibição de sair, divisão da cidade em quarteirões (cada um com seu respectivo intendente); as ruas são controladas e vigiadas cada uma por um síndico, que determina a reclusão do morador, tranca todas as casas da rua, confere por nome cada residente todos os dias. O síndico verifica os vivos e os mortos e depois apresenta seus registros ao intendente e, este, ao prefeito da cidade.

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições.” [6]

Frebre alta, inquietude, ambulação cambaleante, confusão mental, prostação, delírio, choque e coma[7], são os sintomas da peste, doença epidêmica fatal que dizimou milhões de pessoas na Idade Média. Podemos pensar assim: os sintomas da peste são sinais da desordem. Desordem fisiológica, desordem comportamental, desordem psicológica e, considerando o alto grau de contágio da peste, desordem social. A imagem da peste evoca a necessidade da ordem, do controle e da vigilância, como disse o filósofo. Não foi à toa que as estratégias usadas para conter o avanço da peste, foram também usadas como instrumentos para combater, prevenir e impedir outros tipos de desordens sociais. Um exemplo muito recente foi o uso do toque de recolher (recurso usado nas cidades pestilentas na Idade Média), contra a população no Egito, uso este determinado pelo ditador Hosni Mubarak diante do protesto que ficou conhecido como o “Dia de Fúria” em 25 de janeiro do corrente ano. Como disse Foucault:

A peste como forma real e, ao mesmo tempo, imaginária da desordem tem a disciplina como correlato médico e político. Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos “contágios”, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem.” [8]

Para os governantes, diz o filósofo, a imagem da cidade pestilenta em controle é o sonho político por excelência. O estado de peste é o paroxismo do controle social.

A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada.” [9]

“[...] para ver funcionar suas disciplinas perfeitas, os governantes sonhavam com o estado de peste.” [10]

Os dispositivos disciplinares suscitados pelo medo da peste são facilmente encontrados em instituições próprias da sociedade industrial: o asilo, a escola, a fábrica, o hospital, a prisão, o quartel, a casa de correção etc.

Para Foucault, o Panóptico de J. Bentham (um projeto arquitetônico em que uma torre de vigilância fica no centro de um prédio em forma de anel que, por sua vez, é constituído de celas cujas janelas estão direcionadas tanto para o interior, quanto para o exterior do anel), realiza muito bem os mecanismos disciplinares provenientes do estado de peste. Como afirmou o filósofo: “Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar.” [11]

1.3. Escola e Saber Útil.

Talvez fosse acertado dizer que uma das grandes contribuições da análise de Foucault sobre as instituições panópticas, em especial a escola, é compreender o alcance político do que hoje nós chamamos de currículo oculto, isto é, o ambiente escolar, a atividade pedagógica contém saberes que são apropriados pelo aluno de modo indireto e não explícito. Saberes que tem a sua utilidade econômica e que contribuem para a docilidade política. Mas será que Foucault não fez meramente uma analogia da escola com a fábrica ou da escola com a prisão? Como muito bem observou Barros da Motta:

Afirmou-se que Foucault estabelece uma analogia entre a escola, a caserna, a usina, a prisão. A tese que ele defende é diversa: não há analogia, há identidade do mecanismo de poder.” [12]

A escola usa exatamente o mesmo mecanismo de poder que as outras instituições industriais: classifica, enumera, separa, examina, põe em fila, vigia, exige uniforme, toque de recolher, sinal para sair e entrar e todas as normas que Foucault demonstra ser facilmente encontradas em vários regulamentos de diferentes instituições do período em questão, de tal modo que em muitos casos não se consegue acertar se é de um quartel, uma prisão ou de uma escola.

Paulo Henrique Lima de Castro.


[1] Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 14ª. Edição, 1996; p. 69.

[2] Idem, p. 126.

[3] Idem, p. 127.

[4] Revel, Judith. Foucault: Conceitos essenciais. São Paulo: Claraluz Editora, 2005; p. 77.

[5] Foucault, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau editora. 2001, 2ª. Edição; p. 103.

[6] Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 14ª. Edição, 1996; p. 174-175.

[7] Dicionário Médico Enciclopédico Taber. São Paulo: Manole; p. 1355.

[8] Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes. 14ª. Edição, 1996; p. 175.

[9] Idem, p. 176.

[10] Idem.

[11] Idem, 177.

[12] Barros da Motta, Manoel. In Foucault, M. Ditos e Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003; Vol. IV; p. XXV.

2 comentários:

REGINA disse...

* Texto sensacional, me fez relembrar suas aulas na faculdade e a monografia sobre o "militarismo nas escolas"...bjus *

Unknown disse...

É mesmo! Sua monografia foi exelente! Lembrei ao escrever. Um beijo!