domingo, 26 de junho de 2011

Origem da discórdia entre os Homens.

A ciência está perto de consolidar uma trivialidade: o comportamento humano é comportamento animal. Estranho que a ciência tenha que provar algo tão intuitivamente óbvio, não? Imagine você que em pleno século XXI ainda persiste a espantosa e esdrúxula crendice de que o homem é apartado das bestas (termo usado na Idade Média para designar os animais não-humanos). Nossos atos são eivados de emoções como medo, raiva e ciúme, usando o mesmo circuito neural que qualquer primata.
No final do texto apresentarei uma chocante coletânea de relatos narrados por pessoas que, por motivo torpe, tiraram a vida de alguém. Uso os relatos meramente para ilustrar o tema que será abordado, mas não para argumentar baseando-me em exemplos. Antes, porém, a devida fundamentação teórica.
Retomo o pensamento do filósofo Thomas Hobbes, já discutido neste blog em algumas postagens. O tema agora é a explicação oferecida pelo pensador inglês para o problema da discórdia humana. Quero lembrar de imediato três coisas: [a] como é um debate de interesse científico-filosófico, fica excluída qualquer consideração mágico-religiosa que, aliás, está muito distante do meu cardápio intelectual, para ser bem franco; [b] discórdia aqui significa rixa, briga, inimizade, estado de litígio, estado bélico, rancor por ciúmes, conflito com potencial letal ou com vistas a gerar deliberadamente prejuízo, dano, estrago, perda e destruição. Exemplo: a discórdia pode ser a própria guerra ou uma simples discussão de trânsito; uma briga em um bar ou um linchamento; discórdia também pode ser um desejo íntimo de que o outro se dê mal, embora o indivíduo nada faça efetivamente algo para que o outro sofra prejuízos. Portanto, “discórdia”, aqui, não quer dizer “falta de concordância a respeito de algo”, como no caso em que pessoas discordam se Deus existe ou não, se o PT é corrupto ou não, se o governo do FHC foi melhor do que o do Lula ou não etc. [c] em Filosofia concisão é quase um crime. Lembro das palavras de Jacques Derrida, em entrevista à Folha: “Para um filósofo é muito difícil falar pouco das coisas”. Como o espaço de uma postagem em um blog deve ser o mais breve possível, um tema tão controvertido como a discórdia humana evidentemente será tratado com certa precariedade. Deixo a advertência para quem se interessar pelo assunto: muitos aspectos da discórdia humana estão omitidos nesta pequena apresentação. Dito isto, passo ao filé mignom:
O ex-diretor do Centro de Neurociências Cognitiva do MIT, hoje professor de Harvard, Steven Pinker, disse que a filosofia de Hobbes (construída no longínquo século XVII) foi atualmente redescoberta pela Biologia Evolucionista, pela Teoria dos Jogos (ramo elegante da matemática, muito usado nas Ciências Sociais para analisar o comportamento social humano) e pela Psicologia Social, entre outras áreas. Tudo indica que as explicações hobbesianas representam um retrato fiel dos atos humanos, isto é, daquilo que somos realmente, da nossa natureza e não de uma pintura inventada na Europa Cristã de uma criatura ideal, quase angélica ou, o que da no mesmo, de uma criatura que é má por causa da Queda. De fato a análise de Hobbes é crua, fria e pessimista, abandonando o homem a sua própria sorte.
Quais são as causas da discórdia entre os homens? Uso as palavras de Hobbes: “De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais da discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória [ou honra].” [1]
[1] Competição: uma vez que os humanos disputam recursos (alimento, parceiros sexuais, status social, moradia, trabalho, territórios, riquezas, armas etc.) e que os próprios bens adquiridos podem servir de recursos tanto para obter outros, quanto para a manutenção dos que já se tem; e, uma vez que o ser humano é insaciável[2], as disputas assumem um contorno dramático, promovendo discórdia. Ora, seria uma indelicadeza lembrar ao leitor tantos fatos históricos antigos, já bastante conhecidos, em que os homens se matam por causa de recursos, dos mais variados possíveis. Em período recente, entre 1990 e 2006, ocorreram 910 conflitos de guerra[3]. Como lembra Dam Smith, embora a efetivação da violência em larga escala seja multifacetada, “Apenas dois fatores são necessários para que uma guerra ocorra – uma desavença e um propósito significativo pelo qual lutar.”[4] Muitos conflitos começaram por disputas em torno do preço de algum produto. Se referindo à pobreza, Smith afirma: “Quanto mais subsistem os recursos naturais dos países, maior a competição entre eles e mais fraca a capacidade do país de suprir as necessidades de seus habitantes. Isso promove o desgosto, uma sensação de injustiça e frustração. Trata-se do solo fértil para políticos ambiciosos articularem a insatisfação, para dar voz a um senso de injustiça, ainda que compartilhem ou não os mesmos sentimentos de seus seguidores.”[5]
O ser humano, portanto, compete para “ficar no lucro”. Já que ninguém quer “ficar no prejuízo”, ocorrem conflitos.
[2] Desconfiança: somos iguais em constituição. Por exemplo, todos nós sentimos medo. Como demonstra Hobbes, podemos diferir quanto ao objeto do medo, mas ainda assim o ser humano sente medo. Essa emoção faz parte da base que nos constitui como animais. Se uns tem medo de altura e outros medo do escuro, isso não passa de “objeto do medo” não da capacidade em si de sentir. O mesmo se dá com a cobiça. Muitas vezes cobiçamos o que o outro tem. Como diz Hobbes: somos criaturas que nos comparamos. Isso gera insegurança, pois posso supor que alguém pode não só cobiçar, mas tomar o que eu tenho. Guerras ocorreram por simples desconfiança, já que “a melhor defesa é o ataque”. Quando você sai de casa você se certifica de que fechou tudo, desconfiando que alguém possa entrar. Hobbes gostava de lembrar que o muros e muralhas eram a prova da desconfiança humana. Fico imaginando Hobbes tomando conhecimento sobre as “guerras preventivas” norte-americanas.
[3] Glória ou Honra: você está caminhando na calçada. No sentido contrário vem outra pessoa e esbarra no seu ombro e continua andando, sem sequer olhar para trás. Como você se sente? Eu respondo para você: você se sente desonrado, fica pensando: quem é esse sujeito que nem sequer me pede desculpas? Pois é. Segundo Hobbes, a discórdia surge por qualquer ninharia, como um sorriso sarcástico, uma palavra, uma opinião diferente, “e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido às suas pessoas, quer indiretamente aos seus parentes, amigos, nação, profissão ou ao seu nome.” [6]
De acordo com o filósofo inglês, a sensação de desonra nos leva ao forte desejo de vingança, que o autor define do seguinte modo: “O desejo de causar dano a outrem, a fim de o levar a lamentar qualquer dos seus atos, chama-se Ânsia De Vingança.”[7] Em outra passagem Hobbes define a vingança como “retribuição do mal com o mal[8] A visão do pensador é a de que a Lei dos homens é a seguinte: “Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris[9], isto é, “Com ferro fere, com ferro será ferido”. Desonra e desejo de vingança andam juntas.
Pinker fez o seguinte comentário sobre a afirmação de Hobbes de que a honra é um motor poderoso para a discórdia[10]:
A observação de Hobbes de que os homens brigam por causa de ‘uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente e qualquer outro sinal de menosprezo’ é tão verdadeira hoje quanto era no século XVII. Desde que começaram a ser registradas estatísticas sobre criminalidade urbana, a causa mais freqüente de homicídio tem sido ‘discussão’ – o que os boletins policiais classificam como ‘altercação de origem relativamente trivial; insulto, praga, empurrão etc.’ Um detetive de homicídios em Dallas comenta: ‘o assassinato resulta de bate-boca sobre coisas bobas. Os ânimos esquentam. Começa uma briga, e alguém acaba esfaqueado ou baleado. Trabalhei em casos onde os autores do crime estavam discutindo sobre um disco de dez centavos em uma jukebox ou sobre uma dívida de um dólar de um jogo de dados’.”
De acordo com o balanço anual do Instituto de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro[11], só no primeiro semestre de 2009 foram registrados 19.775 casos de lesão corporal culposa em brigas de trânsito. Uma fechada, uma buzina; forçar a passagem ou simplesmente piscar o farol serve de estopim para uma briga e até para um homicídio. O mesmo balanço registrou 3.198 casos de homicídios dolosos, também só no primeiro semestre daquele ano.
O ser humano é tão melindroso com sua honra que a pura e simples antipatia por alguém (“não fui com acara dele”) pode resultar em bate-boca, briga e homicídio.
Leia a seguir o relato de algumas pessoas condenadas por homicídios[12]:
[1] “Eu não fui com a cara do cidadão e ele não foi com a minha. A gente estava no boteco, os dois tinham bebido. Ele disse que eu não era homem. Mostrei para ele que eu era homem, sim. Fui para riba dele. Eu não queria matar, só brigar. Tanto que estava com o meu ‘trinta e oito’ e não usei. Ando com ele desde os 11 anos, quando ganhei do meu pai. O velho disse: ‘Nunca trespasse o direito dos outros, mas também nunca traga desaforo para casa’. Na briga, o cara puxou a faca e me furou. Tomei a faca e enfiei no peito dele. Morreu na hora. Dou graças a Deus por ter matado. Se não mato, ele me mata. Não penso mais nisso. Passou, passou.”
[2] “Matei minha ex-mulher porque ela levava muitos namorados para casa onde vivia com minhas filhas. Não foi por ciúme, mas sim porque ela estava dando mau exemplo para as meninas. A gota d’água foi quando fui pagar a pensão para minha filha e vi minha ex-mulher saindo de lá com outro macho. Passei a noite inteira acordado. O pensamento de matar ficava martelando na minha cabeça. Foi a pior noite da minha vida. No dia seguinte, fui até a casa dela de manhãzinha. Ela me viu e se assustou. Falei assim: ‘Lembra que a gente ia acertar aquela conta?’. Dei logo três tiros na cabeça. Foi como matar um animal. Se pensasse melhor, não teria feito isso.”
[3] “Matei um amigo de infância porque ele me bateu na cara. Ninguém quer apanhar na cara. O sangue da gente dá uma reviravolta. O homem não é nascido para apanhar na cara. Na minha festa de aniversário, esse rapaz ficou com ciúme porque uma ex-namorada dele estava querendo ficar comigo e me deu um tapa no rosto. Depois, fui até o meu quarto e peguei uma arma. Quando ele me viu, começou a correr, mas não deu tempo. Foi um tiro só, na nuca. Eu respeitava a amizade dele até o momento em que ele me agrediu. No mesmo instante que vi o corpo caído já tinha percebido que tinha acabado com a vida dele e com a minha.”
[4] “Esfaqueei meu marido e matei minha melhor amiga porque descobri que os dois tinham um caso. Fiz isso para lavar minha honra. Cheguei em casa e peguei ela com ele na minha cama. Fui para o bar na hora, desolada. Quando voltei para casa, ele estava só, chorando aquele choro falso. Fiquei com muita raiva. Dei seis facadas nele, mas ele não morreu. Saí de lá e fui para uma festa, onde encontrei a menina. Dei duas facadas nela. Ela implorou, mas eu deixei o ódio falar mais alto. Assisti a ela agonizar. Senti prazer em ver ela se debatendo. Hoje, vejo que não valeu a pena. Não sou uma assassina.”
Então, pensando em tudo que foi dito, eu quero saber em qual ponto sobre a discórdia que Hobbes estava errado?
Paulo Henrique Castro.

[1] Hobbes, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes. 2003, p. 108.
[2] Veja o texto que publiquei neste blog, Homo Passionalis: insaciável por natureza, sobre a afirmação hobbesiana de que os homens são insaciáveis.
[3] Smith, D. Atlas dos Conflitos Mundiais. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2007.
[4] Idem.
[5] Idem, p. 9.
[6] Idem nota 1.
[7] Idem, p. 52.
[8] Cf. p. 131.
[9] Idem, p. 113.
[10] Pinker, S. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras. 2004, p.442.
[11] Balanço das Incidências Criminais e Administrativas No Estado do Rio de Janeiro. Secretaria de Segurança, disponível na Internet.
[12] Relatos coletados pelo jornalista Kalleo Coura em reportagem da revista Veja de 17 de novembro de 2010.

2 comentários:

REGINA disse...

Parabéns por mais um texto magnífico: relatos fortes e verdades que acontece todos os dias em vários lugares do planeta...infelizmente estamos vivendo num mundo onde se perderam os verdadeiros valores e o mais importante é estar em evidência seja acabando com a própria vida ou com a do outro literalmente.
Hobbes errado?Nunca!!!
beijos
Rezinha

Unknown disse...

Obrigado pelo comentário, Branquinha! Parece que é isso mesmo. "O homem é o lobo do homem", disse Hobbes.
Bjs de amor, PH.