domingo, 19 de junho de 2011

Não se pode não querer aquilo que se quer.

Na obra Leviatã, Thomas Hobbes (1588-1679) é muito claro quanto à concepção antiga e medieval sobre a racionalidade: simplesmente é inaceitável compreender a vontade (ato de querer) como um apetite racional. Por que? É o que veremos na seqüência a partir de algumas considerações sobre a noção de liberdade em Thomas Hobbes.
Com a Revolução científica do século XVII, surgiu uma forte crença de que os fenômenos físicos poderiam ser explicados recorrendo às leis do movimento, daí o termo mecanicismo, que indica:
Toda doutrina que recorra à explicação mecanicista. Entende-se por explicação mecanicista a que utiliza exclusivamente o movimento dos corpos, entendido no sentido restrito de movimento espacial. Nesse sentido, é mecanicista a teoria da natureza que não admite outra explicação possível para os fatos naturais, seja qual for o domínio a que eles pertençam, além daquela que os interpreta como movimentos de corpos no espaço.” [1]
O mecanicismo é uma concepção marcada por duas características, segundo Abbagnano: [i] negação do finalismo (não há objetivo ou plano nos eventos da natureza); [ii] causalidade necessária (ou determinismo): tudo que existe possui uma causa.
Sem sombra de dúvidas a filosofia de T. Hobbes pode ser classificada como um Materialismo Mecanicista: para explicar o mundo nós só precisamos examinar a matéria e o movimento dos corpos. Nesse contexto diz Hobbes: a vida não passa de um movimento dos membros cujo início ocorre em alguma parte interna. Tal perspectiva vale tanto para homens como para os outros animais.
Hobbes classifica o movimento animal em dois grupos: [i] movimento vital: circulação do sangue, pulsação, respiração, digestão, nutrição, excreção etc.; [ii] movimento voluntário: andar, falar, gesticular, mover os membros entre outros. O movimento voluntário serve par fortalecer o movimento vital, isto é, tem um valor de sobrevivência; e começa com a memória sobre onde, como, e o que. A própria memória é um resíduo das nossas sensações, que são, por sua vez, movimentos provocados nos órgãos do animal pela ação das coisas em nosso corpo (tato, audição, paladar, visão, olfato).
Se um cão fica acorrentado, então ocorreu um impedimento externo com relação aos movimentos do animal. Se não ocorrer impedimento (externo) algum, ou melhor, se ocorrer ausência de impedimentos externos, segue-se que o animal irá se mover da maneira que se move normalmente. O cão pode buscar a comida em vários pontos até se saciar. A ausência de impedimentos externos é, para Hobbes, propriamente a liberdade (ou independência).
Agora suponha que o animal seja impedido de se mover, impedindo-o de agir como habitualmente faz. Admita também que esse impedimento é uma doença ou qualquer impedimento próprio da constituição do animal. Nesse caso, o que lhe falta não é a liberdade, mas simplesmente a capacidade de se mover.
Diante de outras opções possíveis de ação ocorre uma série de pensamentos sobre o que fazer (deliberação). Este processo é constituído pela alternância de paixões conflituosas sobre fazer ou se abster de fazer, e também sobre as conseqüências de fazer ou da omissão do ato. Temos medo de fazer, hesitamos e calculamos (razão) sobre o impacto da ação. Enquanto se delibera sobre qual, entre as opções possíveis, será a ação mais adequada a ser escolhida, o curso da ação está em aberto. Porém, quando o processo de deliberação chega ao fim (vontade), manifestado na consumação do ato, o curso da ação está fechado. Assim, a idéia de opções possíveis implica: [i] possibilidade de ação em aberto; [ii] possibilidade de ação fechada, quando a opção X foi escolhida, a vontade seleciona então o ato visível.
Poderíamos falar de quatro tipos de liberdade: [i] liberdade de querer: quando desejamos algo ou não gostamos de algo (“Pedro quer brincar, mas está na hora de ir para a escola”); [ii] liberdade de escolher: quando se pode escolher algo sem que a preferência seja coagida (“Pedro pode escolher para sobremesa ou sorvete ou salada de frutas”); [iii] liberdade de fazer: quando efetivamente podemos realizar uma ação escolhida sem impedimentos externos (“Pedro pegou o sorvete”); [iv] liberdade de poder: quando se diz que há liberdade a partir da constituição do indivíduo (“Pedro pode tomar sorvete porque não esta mais doente”).
Hobbes admite apenas como liberdade [ii] e [iii]. Não há liberdade de querer, já que não se pode não querer aquilo que se quer (embora seja possível fazer ou não fazer aquilo que se quer); não há liberdade de poder, uma vez que é inadequado afirmar que alguém perdeu a liberdade por estar doente. Sendo assim, só há liberdade de escolher fazer algo ou se abster de fazer (praticar ou evitar ação), e há liberdade de fazer (quando não ocorre impedimento externo). A liberdade de fazer está ligada as condições objetivas da ação: ou há impedimentos externos, ou não. Se há impedimentos externos, não tenho liberdade de fazer; se não há impedimentos externos, tenho liberdade de fazer. Também a liberdade de fazer é limitada pela ordem dos motivos: algumas preferências são mais fortes do que outras.
Segundo Hobbes, em uma passagem muito peculiar, se compararmos com a tradição filosófica, “[...]liberdade é escolher o que temos vontade, mas não escolher a nossa vontade[...]”[2].
Trata-se de uma nova forma de compreender a condição humana. O querer ocorre como um fluxo inevitável, governado por nossas paixões. O indivíduo só não faz o que quer, porque há impedimentos externos; porém, lhe é negado ter a liberdade de querer ou não querer o que se quer. Isso pode ser observado no momento em que se delibera sobre algo extremo e a oscilação de medos, desejos e aversões podem ser tão conflitantes a ponto de gerar sofrimento no indivíduo.
Conta uma antiga lenda grega[3], que a guerra de Tróia começa quando a mulher do Rei Menelau, Helena, fugiu com um hóspede, o príncipe Páris. O insulto era duplo, o Rei traído e um deus ultrajado (Zeus era o protetor da hospitalidade). Tamanho insulto exigiu uma vingança à altura: invadir Tróia.
Coube ao irmão do Rei Menelau, Agamêmnon, ser o comandante dos gregos na guerra, sem saber do terrível destino que uma velha maldição lhe reservava.
No dia da partida para a guerra, duas águias apareceram diante do palácio de Menelau e devoraram uma lebre prenha. O episódio foi interpretado como se as aves fossem Menelau e Agamêmnon e a lebre fosse Tróia. Curiosamente, esse acontecimento deixou a deusa Ártemis (amiga dos animais) ressentida.
Quando as tropas estavam embarcadas e já no mar de Áulis, a deusa, então, retardou a navegação da esquadra grega com uma perigosa calmaria e impôs uma exigência para que as naus partissem: ou Agamêmnon matava a sua jovem filha virgem em sacrifício da deusa, ou toda a esquadra ficaria ali. Qualquer decisão do comandante seria danosa. Se não sacrificar Ifigênia, Agamêmnon condenará todos os seus subordinados à morte, já que não podiam nem atracar e nem partir. Por outro lado, matar a própria filha era um peso que o grande guerreiro grego não poderia suportar. O que fazer? Nas palavras de Ésquilo: “a decisão foi obra de um instante”. Ifigênia foi sacrificada e Agamêmnon amargou o seu terrível infortúnio.
As tragédias gregas foram escritas antes que a filosofia fosse sistematizada e todas continham dilemas morais, isto é: “Estamos freqüentemente diante de escolhas morais difíceis. Entre duas ações que é impossível realizar ao mesmo tempo não chegamos a saber qual a opção que constitui nosso dever, que é moralmente obrigatória [...]”[4]. Diante de duas obrigações que não podem ser, ao mesmo tempo, satisfeitas, um agente se vê preso a um dilema. Somos livres?
Ser racional, em parte, significa querer o que é certo e ser livre para querer o que é certo. Porém, para Hobbes, não é possível não querer o que se quer.
Paulo Henrique Castro.

[1] Abbagnano, Dicionário de Filosofia. São Paulo Martins Fontes. p. 653.
[2] English Works of Thomas Hobbes. Editora Bibliolife, Vol. V, p. 113.
[3] Oréstia, de Ésquilo (525 a. C. – 456 a. C.)
[4] Dicionário de Éica e Filosofia Moral.

Um comentário:

REGINA disse...

* Parabéns mais uma vez, ótimo texto! *