domingo, 7 de agosto de 2011

Por que ‘Animal Racional’?

 

Animal
[Do lat. animale.]
Substantivo masculino.
1.Ser vivo organizado, dotado de sensibilidade e movimento (em oposição às plantas).

Racional
[Do lat. rationale.]
Adjetivo de dois gêneros.
1.Que usa da razão; que raciocina.

O que exatamente significa afirmar que o homem é um animal racional? Por que os filósofos sustentaram com tanta firmeza que as paixões eram opostas a razão e que, portanto, deveriam ser sufocadas e controladas? Por que os filósofos tiveram que considerar as paixões como algo de caráter baixo? De onde vem a idéia de que “ser dominado por uma paixão” é típico das “bestas” e não do ser humano? Pode mesmo a razão dominar as paixões? Todas estas questões estão condensadas em um só problema: quais as razões para se aceitar que o mundo humano é apartado do mundo animal?

A definição do homem como animal racional pressupõe duas características que, supostamente, só os agentes humanos teriam[1]: [1] razão como faculdade que orienta a conduta, possibilitando ao homem fazer as escolhas certas, distinguindo o certo do errado, o justo do injusto, o bem do mal; [2] razão como procedimento de conhecimento, que possibilita ao homem gerar um mundo complexo. Para Abbagnano, ocorreram na história da filosofia variações do conceito de animal racional, tais como: [1] Animal simbólico: enfatizando a capacidade do homem usar símbolos e que, desse modo, todo comportamento humano é simbólico; [2] Animal Político: o ser humano nasce pronto para viver em sociedade; [3]Homo Faber: o que define a espécie humana é a capacidade de fabricar utensílios.

A noção de animal racional e todas as suas variações possuem um pressuposto básico: o mundo humano é apartado do mundo animal. Além desse pressuposto ontológico, considerar o homem como animal racional gera vários problemas de ordem ética, tais como: a questão da acrasia (isto é, incontinência; o indivíduo sabe que a escolha não é a melhor possível, tem acesso racional ao conteúdo e conseqüência da escolha mais adequada e, ainda assim, age segundo a escolha inadequada), a questão do livre-arbítrio e o papel das paixões no direcionamento das ações humanas.

O filósofo inglês David Hume observou que:

Nada é mais comum na filosofia, e mesmo na vida corrente, que falar no combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando se conformam a seus preceitos. Afirma-se que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão; e se qualquer outro motivo ou princípio disputa a direção de sua conduta, a pessoa deve se opor a ele e até subjugá-lo por completo ou, ao menos, até torná-lo conforme àquele princípio superior. A maior parte da filosofia moral, seja antiga ou moderna, parece estar fundada nesse modo de pensar. E não há campo mais vasto, tanto para argumentos metafísicos como para declamações populares que essa suposta supremacia da razão sobre a paixão. A eternidade, a invariabilidade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais vantajosas; a cegueira, a inconstância e o caráter enganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor.”[2]

A nossa hipótese é a de que a noção de homem como animal racional é uma ficção filosófica. Um ideal antropocêntrico; uma invenção literária. Quando Platão e Aristóteles dividem e classificam as faculdades da alma, tal procedimento é meramente intelectual, não factual; quando Agostinho e Tomás de Aquino argumentam a favor do livre-arbítrio é para compatibilizar o mal moral com a onipotência divina; quando Kant fundamenta a moral a partir do imperativo categórico, o faz considerando a racionalidade como algo absoluto a priori, rejeitando qualquer doutrina empírica que recorra a natureza humana.

O ser humano não é uma idéia; é um ser concreto e deveria ser analisado e estudado a partir da experiência: os fatos[3] devem ser imperiosos.

O que é o homem? A mais famosa definição é atribuída a Aristóteles. Na obra conhecida como “Política”, diz o filósofo grego: “[...] o homem é o único animal que possui razão.” De acordo com Aristóteles, a propriedade especial de possuir “razão” permite ao homem, diferente de qualquer outro animal, distinguir o certo do errado, o justo do injusto, o bom do mal e qualquer outra qualidade moral[4].

É importante dizer que, no contexto em que Aristóteles faz tal observação, a palavra grega λόγος (razão, linguagem, discurso etc.) é usada para designar “linguagem” e não “razão” (como muito bem analisou o filósofo alemão Gadamer[5], 1900-2002). Todavia, a idéia de ver o homem como possuidor de uma propriedade que lhe permitisse a quase perfeição no agir, se tornou tão corriqueira que a aprendemos na escola. Isto é, podemos agir corretamente, pois somos dotados de razão. Se somos dotados de razão, toda conduta humana é gerenciada segundo princípios cognoscíveis. Pode o homem orientar a sua conduta de tal modo que suas ações sejam puramente racionais, isentas do jugo das paixões? Ora, um dos fundamentos do Estoicismo era justamente o de que ao homem convém agir racionalmente. Em contrapartida, agir passionalmente é típico dos animais: “[...] assim como o animal é guiado infalivelmente pelo instinto, o homem é guiado infalivelmente pela razão, e a razão lhe fornece normas infalíveis de ação que constituem o direito natural.[6]

Somos mesmo guiados infalivelmente pela razão? O que é intrigante com essa concepção de racionalidade infalível é que ela não se ajusta a realidade, simplesmente não condiz com os fatos. Como explicar, por exemplo, que um ser humano morra atropelado em baixo de uma passarela?

Paulo Henrique Castro.


[1] Abbagnano, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo Martins Fontes, 1998.

[2] Hume, D. Tratado sobre a Natureza Humana. São Paulo: UNESP, 2007; p. 445.

[3] Fato: “O que é ou acontece na medida em que é tomado como um dado real da experiência, sobre o qual o pensamento se pode fundar.” (Lalande, p. 388)

[4] Aristóteles. Politics. Harvard University Press. 1998, I, 1253a 10; p. 11.

[5] Gadamer, H. G. Verdade e Método II. Petrópolis: Vozes, 2002.

[6] Abbagnano, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998; p. 375.

2 comentários:

REGINA disse...

Nossa que texto bacana...

Concordo plenamente:

"O ser humano não é uma idéia; é um ser concreto e deveria ser analisado e estudado a partir da experiência..."

...e que venahm mais e mais textos que nos fazem pensar!

Eleonora Barbosa disse...

Texto bem elaborado e de fácil entendimento. Parabéns