domingo, 17 de abril de 2011

Vontade e Livre-Arbítrio: animal racional?

Livre-arbítrio: “possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.” [1]
Chovia muito naquela noite de 07 de fevereiro de 2007, em Osvaldo Cruz, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Entre 21h00min e 21h40min, Diego (20 anos), Dudu (25 anos), Carlos Roberto (23 anos), Tiago (21 anos) e um adolescente, que vamos chamar de Bill, cometeram um ato bárbaro. Eles saíram no carro do pai de Tiago, um táxi, para roubar carros. Tudo estava previamente acertado sobre a partilha de eventuais bens que fossem usurpados. Duas armas de fogo foram usadas e não consta nenhum uso de entorpecentes. Tiago era o motorista e o combinado era abordar algum carro em que a vítima fosse mulher[2].
Tiago parou o carro no sinal vermelho, na esquina da estrada Henrique de Melo. Em seguida, um Corsa Sedan prata parou logo atrás. No interior do veículo que acabara de parar, havia três pessoas: Rosa Cristina (a condutora), sua filha Aline (no banco do carona) e, no banco de trás, João Hélio (também filho de Rosa).
Do Táxi saíram armados Diego, Bill e Dudu. Abordaram o Corsa, com xingamentos, ameaçando e ordenando que os ocupantes saíssem do veículo. Bateram, ainda, com as armas nos vidros do carro para aterrorizar as vítimas. Por sua vez, em desespero, Rosa Cristina fez dois pedidos aos filhos: “tirem o sinto de segurança” e “desçam do carro”. Rosa e Aline conseguiram. O pequeno João Hélio de 6 anos não teve a mesma sorte e habilidade. Embora tivesse conseguido sair do carro, o menino não conseguiu soltar o sinto. Os bandidos deram partida no Corsa arrastando a criança e, mesmo sabendo que o menino estava preso ao veículo, continuaram dirigindo, além de fazer manobras com o carro para poder se livrar do corpo.
Essas informações sugerem que nenhum deles estava fazendo algo que fosse involuntário, forçado ou sem consciência dos atos e das possíveis conseqüências. Como se diz, eles sabiam o que faziam. Então, por que fizeram o que fizeram?
O episódio narrado anteriormente deixa muita gente perplexa e indignada por uma razão muito especial:
“Quando o indivíduo possui o tipo de controle que supõe a responsabilidade moral , estimamos de maneira característica que ele possui o controle da sua ação, ou seja, embora ele realize efetivamente uma determinada ação, nós julgamos que ele teria podido agir diferentemente – que ele teria podido agir, realizar outra ação ou se abster de qualquer ação. Tal concepção do controle implica então a noção de “outras opções possíveis” (possibilidades alternativas), e ela constitui certamente, pelo menos em parte, a representação do controle (tradicionalmente admitido pelo senso comum), concebido como necessário para o livre-arbítrio e para a responsabilidade moral.” [3]
Afinal, como indivíduos racionais, sem serem coagidos a agir do modo que agiram, sem ser forçados pelo uso abusivo de entorpecentes e no perfeito equilíbrio das suas faculdades mentais, foram capazes de atos tão brutais? Fatos como os descritos anteriormente impõe um grande problema para sustentar a definição de homem como “animal racional”, uma vez que a racionalidade supõe, como veremos, não só controlar o comportamento mais distinguir o certo do errado, o justo do injusto. Por maior que seja a influência interna ou externa sob o comportamento, alguns filósofos admitem que possuímos um tipo de controle sobre as nossas ações, que é denominado de “livre-arbítrio” ou “vontade livre”. “Diremos assim que um indivíduo dispõe de seu livre-arbítrio na medida em que possui o tipo de controle geralmente associado (de uma maneira ou de outra) à responsabilidade moral [...]” (Canto-Sperber, 2003; p. 74, Vol. 2)
“Se pensarmos que um agente deve dispor do seu livre-arbítrio, é essencialmente em razão do problema da imputabilidade moral – ou seja, do fato de que ele possa legitimamente ser considerado como moralmente responsável por sua conduta, ou ainda que deve, para ser moralmente responsável, poder controlar de algum modo a sua conduta.” (idem)
O exemplo oferecido no início do texto serve apenas (e tão somente) para demonstrar que buscamos explicar o comportamento humano em termos de livre escolha, em função da necessidade que temos de responsabilizar alguém pelos seus atos (como a citação anterior elucida). Sempre é bom deixar claro que a tentativa de problematizar o livre-arbítrio não se confunde com uma defesa dos atos humanos ou como uma justificativa. O leitor deve sempre ter em mente essa separação, que em filosofia ficou conhecida como “guilhotina de Hume”. Analisar não é justificar.
A noção de “opções possíveis para agir” implica não só que há possibilidades de ação em aberto, mas também inclui a idéia de que escolher tal ou qual opção esta ao alcance do agente: ele poderia ter agido de modo diferente. Supomos que o agente pode ser responsável por agir do modo que escolheu, isto é, responder pelos seus atos, já que possui a faculdade de razão. Sendo a razão uma capacidade suprema de indicar ao agente qual é a ação correta a ser escolhida, então pode-se responsabilizar quem escolhe agir errado. Agir é, portanto, um produto da razão que, por sua vez gerencia a vontade de agir daquele modo e não de outro, deixando fechados possíveis cursos alternativos de ação. Quem erra, erra porque quer errar. Como disse Platão: “A responsabilidade é de quem escolhe.” [4] Quem age errado, o faz porque decidiu agir errado. Enquanto um cão não pode evitar querer acasalar com uma cadela no cio e de agir segundo essa inevitável tendência (a menos que esteja acorrentado), o indivíduo humano pode querer ou não querer a relação sexual e também pode agir ou não de acordo com esse querer (a menos que esteja acorrentado). Essa é a Teoria Racionalista da Ação Humana.
O termo “humano”, aliás, é usado justamente para designar tudo aquilo que nos separa do mundo não vivo e do restante do mundo vivo, ou seja: podemos controlar os nossos ímpetos, uma vez que não somos programados como computadores ou animais (seres de instintos) e, de quebra, temos consciência das nossas ações e das conseqüências das nossas ações. “A autonomia é um bem que se limita aos seres humanos. Ela jamais é atribuída aos animais, não importa o que façam. O que distingue os seres humanos parece ser sua capacidade de raciocinar, sobretudo acerca dos fins da vida.”[5]
É a nossa condição humana que nos permite gerenciar as muitas possibilidades de ação (em dadas circunstâncias), e nos dá inteligência para optar. Entre tantas opções possíveis de ação, podemos calcular e controlar qual será a mais apropriada. A essa capacidade de controle damos um nome muito especial: “livre-arbítrio[6].
Notadamente, a idéia de livre-arbítrio supõe o ato mental de ponderar. Temos a crença de que possuindo o livre-arbítrio somos então dotados da capacidade absoluta de examinar em minúcia os nossos atos, donde resulta as nossas exigências morais. Confundimos livre-arbítrio com infalibilidade. De acordo com essa crença, portanto, desde que somos dotados de livre-arbítrio, então só é possível optar pela ação errada por livre e espontânea vontade. Ora, isso implica certa concepção de ser humano inclinado a um ideal de vida perfeito: podemos ser melhores, basta querer (tal expectativa pode turvar uma compreensão mais exata do comportamento das pessoas).
O pressuposto fundamental da doutrina do livre-arbítrio é, deste modo, afirmar que a razão é essa capacidade legisladora que nenhuma outra criatura possui. A razão assenhoreia a conduta humana. Dito de outro modo: se é dotado de razão, então é um ser humano; e se é um ser humano, então é livre para escolher agir de acordo com as “opções possíveis para agir”.
O problema é como entendemos e explicamos a faculdade da razão. Em primeiro lugar, quais são os motivos para aceitarmos que a razão é uma propriedade exclusiva do indivíduo humano? Em segundo lugar, a função legisladora da razão tem, de fato, este controle prático sobre o agir? Em terceiro lugar, a noção de racionalidade suprema e infalível não seria um equívoco, decorrente da visão antropocêntrica? Por fim, se a racionalidade é uma compreensão equivocada do ser humano, então como podemos responsabilizar os outros?
Surge, além dos problemas suscitados, um dilema: ora, se o homem é essencialmente racional, então é capaz de controlar qualquer influência que contamine suas ações; mas, se a razão não for uma essência que nos distingue dos outros animais, então o curso das ações pode ser influenciado por fatores passionais (do mesmo modo que ocorre com qualquer animal). Ou bem o homem é essencialmente racional, ou bem a razão não é uma essência que nos distinguiria dos outros animais. Ou somos capazes de controlar qualquer influência que contamine nossas ações, ou o curso de nossas ações pode ser influenciado por fatores passionais.
Paulo Henrique Castro

[1] Houaiss p. 1774.
[2] Todas as informações sobre este caso foram extraídas da denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro, 2a. Promotoria de Justiça junto à 1a. Vara Criminal de Madureira. Processo no. 2007.202.001808-4. Promotor de Justiça José Luis F. Marques. Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2007.
[3] Cf. Canto-Speber, Monique (Org.). Dicionário de Ética e Filosofia Moral. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2003.
[4] Platão, 1996; p. 493.
[5] P. 141-142 Laurence Thomas, in Canto-Sperber.
[6] Cf. Canto-Speber, Monique (Org.). Dicionário de Ética e Filosofia Moral. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2003.

6 comentários:

Eleonora disse...

Olá Paulo,
Será que desta vez conseguirei postar o meu comentário? Excelente texto como sempre. Minha dúvida: temos consciência das nossas ações mais será que todos possuem a consciência das conseqüências delas? .
Bjs, Eleonora

Unknown disse...

Oi Eleonora! Obrigado pelo elogio (vindo de vc é mesmo um baita elogio para qualquer aspirante à escritor). Bem, sua indagação exige realmente tempo para refletir (o que indica o peso filosófico da questão). De fato são dois aspectos distintos... Tenho que pensar. Obrigado pelo comentário! Bjs, PH.

REGINA disse...

Oi amor, mais uma vez adorei o texto.
Acredito que a vida, é sim feita de escolhas, essas talvez com consequências diferentes das quais imaginamos.
Eu escolhi vc, e o imagino pra sempre em minha vida!Beijos.Te amo!

¤ Sarah Sciotta ¤ disse...

Olá PH,gostei muito do blog,Parábens!Muito bom mesmo!Com o perdão da palavra,vc é mto foda,aprendi muito com suas aulas.Obrigada!

Unknown disse...

Oi Rê! Obrigado! De fato, essa relação entre escolhas e consequências, que vc menciona, é muito interessante. Uma vez que os efeitos das ações dependem do arranjo dos outros fatores, decorre desse cenário um quadro de relativa incerteza (o que faz das consequências algo diferente do que imaginávamos, como vc disse). Bjs, com amor, PH.

Unknown disse...

Sarah! Seja bem vinda! Obrigado mesmo! Que bom que tenha gostado. Foi uma pena não ter acompanhado a sua turma em Fundamentos Humanísticos II, por causa de ocupações administrativas na Faculdade. Fico feliz de vc estar aqui. Obrigado pelo "foda" rsrsrsrs... Bjs, PH.