domingo, 4 de setembro de 2011

A vida pode ser uma obra de arte? Considerações sobre a estética da existência.

A palavra ‘estética’ foi criada por Alexander Baungarten (1714-1762), para designar a área de conhecimento filosófico que teria como objeto de estudo as faculdades sensitivas humanas em relação ao ato de captar a beleza, o belo e as formas artísticas[1]. ‘Estética’, assim, tornou-se um termo usado para designar uma parte especifica da filosofia que estuda o belo e a arte.
Acontece que Baungarten não inventou o termo por acaso. O filósofo alemão serviu-se de modo intencional do prefixo grego αϊσθη- (aisté), que forma um amplo conjunto de palavras em grego, destinadas a designar as atividades próprias dos órgãos dos sentidos humanos (tato, paladar, audição, olfato e visão). Por exemplo, αϊσθησις (aistésis) quer dizer:
(1) Sensação: [a] a totalidade de informações sensíveis que mobiliza afetos e emoções; [b] qualquer elemento sensorial específico.
(2) Sentido: [a] faculdade de sentir, sofrer alterações sensoriais; particípio passado do verbo sentir; [b] a recepção das sensações e a consciência das sensações; [c] sinônimo de sensação ou conjunto de sensações; [d] faculdade de perceber uma modalidade específica de sensações (calor, ondas sonoras, sabor, textura etc.), que correspondem a um órgão determinado, cuja estimulação da início ao processo interno da recepção sensorial; [e] o próprio órgão dos sentidos, o receptor.
Outro exemplo é o substantivo αϊσθήριον (aistérion), que quer dizer “sensório”: [a] relativo à sensibilidade (faculdade de receber informações sobre as mudanças no meio interno e externo); [b] o órgão dos sentidos, o centro de recepção das sensações; próprio para a transmissão de sensações. Por fim, outra palavra grega da mesma família fonética e semântica, αίσθητός (aistétos), que pode ser traduzida pelo termo “sensível”, isto é: [a] aquilo que tem a capacidade de sentir; [b] aquilo que pode ser percebido pelos sentidos; [c] quem tem a capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar.
Pois bem. Do exposto, podemos inferir que Baugarten não usou a palavra ‘estética’ de modo fortuito. O filósofo tinha em mente a idéia de que as obras de arte e a própria criação artística são provocações, exercícios e explorações do tato, da audição, do paladar, do olfato, da visão, em uma só palavra: do corpo. A arte é provocação dos sentidos; portanto, das emoções. É na arte que o corpo é revirado, contorcido, forçado a expurgos e explosões. Penso, por exemplo, no filme do cineasta francês Louis Malle (1932-1985), “Perdas e Danos”, e só o que me vem ao corpo (não só à cabeça) é o poder desestabilizador de uma paixão, do convite contraditório daquilo que é proibido, das pedras que carregamos nas costas sem pedir, das conseqüências dos atos impensados (“impensados”, porque são apenas sentidos). Do que é feita a vida? A “doce vida” (Felline).
A estética funda a própria existência humana: ver, não é somente ver formas e figuras, mas, sim, ver paisagens; cheirar, não é somente “captar propriedades que têm certos corpos de emanar partículas voláteis capazes de afetar os órgãos olfativos”, mas, sim, perceber o cheiro de um filho que já se foi, impregnado nas roupas deixadas no armário; tocar, não é somente “identificar informações sobre textura, consistência, peso e temperatura de um corpo”, mas, sim, acariciar; ouvir, não é somente “captar pelos órgãos da audição uma vibração que se propaga no meio elástico com uma dada freqüência”, mas, sim, se emocionar com uma música ou uma simples declaração de amor; por fim, o paladar não é somente “a função de captar e identificar gostos pela língua e transmiti-los pelos nervos gustativos até o cérebro”, mas, sim, o degustar de sabores. Assim, o ser humano está condenado a perceber o mundo de forma quase encantada. Tal qual um quadro representa algo (que pode ser belo, feio ou sublime), as representações mentais que começam com a experiência sensorial, são retratos arrebatadores da vida.
Acresce o seguinte: “estética” quer dizer que o mundo nos afeta. Essa, entretanto, não é uma idéia nova. O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), descreveu esse fenômeno no § 29 de sua obra fundamental (“Ser e Tempo”). Heidegger designou essa condição humana de sempre estar afetado de Befindlichkeit (“tonalidade afetiva”; “sentimento de situação”; “disposição”), isto é, o homem é o único ente que está em condição de ser afetado pelos outros entes que vem ao seu encontro no mundo. Isso significa dizer que o ser humano não é apático (a própria apatia já é uma forma de não ser apático); estamos sempre em sintonia com o mundo, disposto, afetado. Daí Heidegger escolher termos que nos permitissem compreender a nós mesmos como criaturas que imprimem tonalidade ao que é percebido. Os acontecimentos não são, na analítica existencial de Heidegger, fatos brutos, eventos dados. O homem é “ser-no-mundo” (In-der-welt-sein) e, desse modo, a existência uma categoria estética. Por isso que a morte nos assusta: ela põe em relevo a beleza da vida que nos será arrancada sem licença. A vida tem essa grandiloquência que as antigas tragédias gregas imortalizaram (leia ou veja a Trilogia Tebana, de Sófocles). O trágico é essa percepção de que vivemos como em uma gangorra, entre a felicidade e a infelicidade.
Pensando na filosofia de Heidegger, Michel Foucault (1926-1984) disse certa vez: “por que uma luminária e uma casa podem ser uma obra de arte e a vida não?” Será tal questão um convite para que você faça da sua vida algo de sublime? Certamente que ficar em casa assistindo Faustão, esperando que a sorte caia no seu colo, não parece uma opção artística. E a diferença de gostos? Ah, os gostos! Quase ia me esquecendo. “Gosto não se discute”, vão dizer os defensores petrificados do Domingão. Então raciocinemos: é claro que a indagação de Foucault possui um caráter político (interpretando a pergunta no contexto da obra do filósofo francês). Sim, gosto não se discute. Mas quem disse que a liberdade é uma questão de gosto? Quem tem coragem de dizer que a vida pode ser bela na escravidão? Para ficar mais claro, expresso a indagação de Foucault com um trecho de uma música dos Mutantes:
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Eis o fato: a liberdade é sublime (“sublime” é uma categoria estética acima do belo). Portanto, viver livre é o extremo da obra de arte.
Paulo Henrique Castro.

[1] Cf. Lalande, 2001.

9 comentários:

João Bernini disse...

Grande texto!
Quem o leu, o sentiu!

REGINA disse...

* Texto sensacional...eu acredito que a vida pode sim,num todo, ser uma obra de arte...as vezes bela, as vezes abstrata e algumas vezes até sem sentido...o que importa mesmo é o modo como decide viver sua vida, afinal de contas ela é feita de escolhas que nos fazem estar como vc mencionou no texto: entre a felicidade e a infelicidade. Beijos te amo *

Unknown disse...

Obrigado pela constante presença, João! Abraço. PH.

Unknown disse...

Rê: adorei o comentário. Me lembrou Aristóteles. O ponto que vc mencionou do texto corresponde muito com o seu discurso: a relação entre escolhas e a moldura da vida. Obrigado pelo comentário. Amo vc também. PH.

Rota Romântica-Valnora disse...

Além da excelente argumentação, você encerrou o texto com a citação de uma música que eu curto muito! É dos geniais baianos Gil e Caetano, lá dos anos 60.
E ela sintetiza a ideia central do seu texto:
"...mas as pessoas da sala de jantar//são ocupadas em nascer e morrer".
Parabéns!
Um abração de seu admirador, Valmir.

Unknown disse...

Obrigado Valmir!! Bom de mais ler seus comentários!! Fico verdadeiramente orgulhoso!! Saudade! Grande abraço, PH.

Shirley disse...

Genial!, que maravilha essa nossa capacidade de sentir por inteiro , de se entregar por inteiro em um sentimento, seja ele saudades, amor, felicidade...ou até mesmo tristeza...as vezes nos afundamos nela tambem...mais isso que é maravilhoso ...essa capacidade que temos de optar ..esteticamente falando somos perfeitos , belos.. ! independente de nossas escolhas.

Unknown disse...

Shirley, muito obrigado pelas belas palavras. Fico muito contente com o comentário. Abraço, PH.

Eleonora Barbosa disse...

Uma das propriedades da arte é que ela nos emociona e nos transforma. Passamos a enxergar a realidade de uma outra forma.