domingo, 12 de fevereiro de 2012

Violência: Parte 6.

Um ano após os pesquisadores terem testemunhado o massacre, narrado anteriormente, o grupo Kasekela fez a sua terceira vítima. Seu nome era Goliath, agora um dos mais velhos animais daquela comunidade, encontrada no Parque Nacional de Gombe no longínquo ano de 1960.

Fartos pêlos da cabeça já esbranquiçados, costelas e a coluna vertebral bem visível, dentes muito fracos e usados – como o ser humano, os chimpanzés perdem os dentes com a idade – a imagem de Goliath era a de um idoso doente e mal alimentado: pele e osso. Estava na casa dos cinqüenta anos, algo muito comum em estado silvestre.

Sabe-se que os chimpanzés idosos, por perderem a força muscular, deixam de subir nas árvores frutíferas e, desse modo, ou se reconfortam com as que caem do pé ou, como já foi registrado, os companheiros mais jovens sobem e trazem frutas frescas que entregam na mão do vetusto.

Para quem vem acompanhando os textos aqui publicados, talvez lembre que Goliath, junto com outro idoso, Hugo, era um dos poucos indivíduos tolerados pelos dois grupos rivais – Kasekela e Kahama – até o ano de 1974. A partir deste período, nem eles tinham trânsito livre. Assim, Goliath se juntou definitivamente ao grupo Kahama, do sul. Como lembrou os autores, Goliath não era uma ameaça para ninguém, a não ser para a impetuosidade irrefreável dos agressores de Kasekela.

Tudo aconteceu assim: após uma patrulha de fronteira, um grupo de chimpanzés de Kesekela parou no topo de uma colina e ali permaneceram sentados. Do cume, olhavam fixamente para o vale Kahama – a extensa área do bando rival. A permanência durou 45 minutos, de acordo com os pesquisadores.

A cerca de 25 metros, distante da colina na qual estavam os curiosos animais, encontrava-se uma silhueta simiesca aparentemente se escondendo: era Goliath. A tragédia teve início porque o pobre idoso foi descoberto pelos olhares atentos dos chimpanzés de Kasekela. Ato contínuo, feito aves de rapina, ou pior; o vulturino bando desceu com fúria o declive, em direção ao alvo. Era tarde demais para fugir e mesmo que houvesse tempo, Goliath não tinha mais o vigor juvenil de outrora para escapar. Só lhe restou se encolher, gritando e cercado por intrusos ensandecidos. Socado, chutado, mordido e, se não fosse o suficiente para uma vítima sem revidar, o suspenderam e o arremessaram. Em seguida, um a um, pulavam no corpo de Goliath, feito crianças em uma cama elástica. Não, você não leu errado: fizeram do corpo ferido de um membro da mesma espécie, um pula-pula. Ora, veja você! Estamos falando de animais que, em um passado bem recente, giravam em torno de uma árvore (um no sentido horário e o outro no sentido contrário) e tocavam suavemente as mãos, sempre que se cruzavam ao circundar o tronco. De onde brotou tanta violência?

O ataque todo durou 18 minutos. Ao final, ainda excitados, os agressores foram embora, arrancando raízes de pequenas árvores, latindo, batendo nos troncos e ainda com os pêlos em pé.

Quanto ao inofensivo Goliath, com um profundo corte nas costas e a cabeça jorrando sangue, tentava se levantar, mas não teve êxito, se esborrachando inconsciente e tremendo, como em convulsões. Não é necessário dizer que ali terminava a longa jornada de Goliath.

Setembro de 1975. Quase todas as fêmeas do grupo Kahama, o qual era o alvo dos ataques, já havia se transferido para o grupo Kesekela (os agressores). Uma fêmea adulta, chamada de “Madam Bee” (Madame abelha), com duas crias fêmeas, “Little Bee” (Abelhinha) e “Honey Bee” (Abelha de Mel), ainda não havia se transferido, embora já tivessem passado bastante tempo com o grupo rival. Talvez não por coincidência, a fêmea adulta foi atacada por quatro machos adultos do grupo rival. Agarraram Madam Bee, batendo, arrastando e pisando nela. Deram-lhe socos até não agüentar mais e cair inerte. Após um tempo, conseguiu rastejar durante todo o dia. Morreu cinco dias depois. Suas duas crias foram transferidas para o grupo dos agressores.

Por volta da metade do ano de 1977, todos os seis machos adultos do grupo Kahama tinham sido exterminados em raides: você acha mesmo que isso foi decorrente de comportamentos cegos, como uma formiga que constrói pacientemente o seu formigueiro ou um cão que antes de se deitar gira em torno do próprio rabo? Para o espanto de todos nós e da comunidade científica, os chimpanzés são animais incrivelmente inteligentes, o que lhes permite comportamentos plásticos e, ainda por cima, ardilosos; capazes de avaliações mais acuradas do que supúnhamos – um chimpanzé pode se reunir em bandos de até 150 membros e ainda assim é capaz de reconhecer as intrincadas vocalizações uns dos outros. Ferozes, fazem de suas vítimas retalho. É espantoso sim, pois imaginávamos que só o homem retalhava o seu semelhante, só o homem invadia o território dos membros da sua própria espécie para matar. De uma ingenuidade antropocêntrica, o homem construiu para si a imagem do pedestal. Mas, deixemos a teoria para depois.

O único macho do grupo Kahama era um adolescente de 17 anos, que antes da divisão do grupo inicial, era um filhote que brincava com os, agora, violentos machos do grupo Kesekela. Foi batizado pelos cientistas com o nome “Sniff”. O jovem chimpanzé também tem a sua história, não menos horrenda que a dos demais.

Em 11 de novembro de 1977, Sniff foi capturado por seis machos do grupo kesekela. Como nos outros casos narrados por Wrangham e Peterson, os agressores surgiram com velocidade, extrema violência e excitação; latindo, arrancando galhos, arremessando pedras, socando os troncos, pêlos arrepiados, agarraram Sniff e o morderam “cruelmente” (a usar a expressão dos autores): fazendo feridas na boca, na testa, no nariz e nas costas. Não só: quebraram-lhe uma das pernas. Um macho agressor, Goblin, bateu sucessivas vezes no nariz severamente machucado do adolescente. Sniff, de acordo com o relato dos pesquisadores, ainda conseguiu perfurar com os dentes um outro adolescente do grupo rival, Serry, que logo foi ajudado por um macho adulto: Satan. Esse chimpanzé de nome sugestivo agarrou Sniff pela nuca e protagonizou um dos episódios mais famosos e comentados entre os primatólogos: bebeu o sangue que jorrava da ferida de Sniff! Para finalizar o que parecia uma cena de filme de terror, tão macabra quanto, Satan e Serry empurraram Sniff colina abaixo – de fato uma cena diabólica. “Sniff foi visto um dia depois, mutilado, quase incapaz de se mover. Depois disto, ele não foi mais visto e presumivelmente estava morto.” [1]

Ao final do ano de 1977, o grupo Kahama já não mais existia: fêmeas transferidas e machos exterminados. Afinal, como a ciência explica esse fato estarrecedor? Quais as implicações destas descobertas para a compreensão que temos de nós mesmos?

[Continua]

Paulo Henrique Castro


[1] Wrangham, R. & Peterson, D. Demonic Males. Apes and the origins of Human Violence. New York: Houghton Miffilin Company. 1996, p. 17.

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