sábado, 26 de março de 2011

Notas sobre o amor (parte 1).

chagall_promenade
Reza uma velha lenda na Grécia antiga, que o Amor, uma divindade tipicamente brincalhona, jocosa e irreverente, estava brincando em um bosque. Lá longe, descendo uma ladeira, vinha a Loucura, outra divindade, por sua vez marcada pelo mau humor, exagero e descontrole.
Ao avistar a Loucura, o Amor resolve fazer uma das suas brincadeiras. Esconde-se em um arbusto e pensa:
— Oba! Quando a Loucura passar, vou pular atrás dela, dando-lhe um imenso susto!
Assim foi. Bastou a Loucura passar pelo arbusto e o Amor nem sequer hesitou: deu um pulo e gritou feito um monstro. A Loucura, agudamente desvairada, como lhe é peculiar, bruscamente voltou-se para o Amor e enfiou-lhe dois dedos, um em cada olho. O Amor, urrando de dor, imediatamente ficou cego.
A notícia correu feito um guepardo, chegando aos ouvidos dos deuses supremos e soberanos daquele mundo. Assim, diante de ato tão atroz e repugnante, foi instituído pelos deuses um tribunal. Após um longo e cansativo período de debates, julgando o comportamento tempestivo da Loucura, sua falta de comedimento e a conseqüência de sua ação, os sábios deuses chegaram a um veredicto: a condenação da Loucura seria guiar o Amor por todo o tempo em que as criaturas humanas existissem.
A falta de clareza dos juízos de quem está amando parece ser uma crença popular muito antiga, como sugere a alegoria narrada anteriormente. “O amor é cego”. Desejar o outro com intensidade pressupõe alimentar fantasias que, por sua vez, nos impedem de avaliar a realidade como corriqueiramente estamos acostumados.
Do mesmo modo que há graus de cegueira, também há graus de amor. Quanto mais intenso for o sentimento, mais turvo serão os juízos. Sobre isso, Roberto Freire, psicanalista e um dos maiores pensadores libertários do Brasil, recentemente falecido, disse que: do amor não se faz biópsia, só se faz necrópsia.
Ora, “biópsia” é o estudo do tecido vivo e “necrópsia” é o estudo do tecido morto. Enquanto se está vivendo o amor, não parece ser possível ver com clareza os episódios relacionados com a pessoa amada. Sabe aqueles conselhos que os pais e amigos sempre dão (“estou falando, fulano não te ama tanto quanto você”; “veja bem! Você ama mesmo essa moça? Porque parece que ela blá, blá, blá”; “olha... não quero me meter na relação de vocês, justamente porque estou de fora, mas a minha opinião é que...”); o problema com eles (os conselhos) é que são concebidos por quem não está vivendo aquele amor específico. Somente após se distanciar do amor que se viveu, é que tais conselhos vão fazer sentido para o indivíduo que amava. Claro. O amor morreu. Pura necrópsia.
Roland Barthes, em seu livro “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, também trata sobre a cegueira do amor. Para ele, encontrar o amor implica em uma “afirmação imediata”: deslumbramento, exaltação, projeção louca de um futuro realizado, a impulsão de ser feliz, o desejo que nos devora etc. Barthes conclui: digo sim a tudo (me tornando cego). “Afirmação imediata” significa: o ser amado me ofusca a visão de tal modo que só consigo dizer “sim”... “sim, vamos”; “sim, quero”; “sim, concordo”; “sim, ela (ele) é linda”... tudo é afirmativo, sem negação (mesmo porque negar é interditar a graça no amor).
Antigas escolas filosóficas da Grécia, os epicuristas e os estóicos, acreditavam que o bem supremo para o sábio era atingir a ataraxia, palavra grega que indica um estado de profunda imperturbabilidade da alma. Buscar a tranqüilidade da alma silenciando as paixões era o ideal dos sábios.
Ora, que ideal magnífico! Mas, ainda assim, um ideal. Quem ama se lança em um terreno instável, do qual o ciúme é apenas um dos aspectos perturbadores da topografia do amor. Para atingir a ataraxia é necessário não amar; e para não amar é necessário não ser humano.
Agora volte ao topo, caro leitor, e observe a tela de Marc Chagall, A Promenade, em que sua amada Bella, em um cenário onírico, lhe escapa pelos dedos ao sabor do vento.

Paulo Henrique Castro.

13 comentários:

Unknown disse...

O melhor e o mais inteligente de todos os professores que ja tive, suas aulas são excelentes, a gente não se cansa, e da vontade de correr para biblioteca tentando ser um pouco melhor. Se eu conseguir ser um professor com apenas 10% do PH, ja ficarei feliz. Ótimos textos, continue postanto para que suas aulas nunca terminem. Tudo de melhor, fica com DEUS. Abraço.

Alex R. Oliveira

Unknown disse...

Obrigado, Alex! Seu comentário verdadeiramente me emociona. Um abraço fraterno! PH.

Unknown disse...

Meu irmão, você é demais! Tenho orgulho de você! Um grande beijo! Fernanda.

Unknown disse...

Linda!!! Obrigado! Sinto saudades! Lembro de você pequenininha... e agora esse mulherão! Beijos em você e todos da nossa família!

REGINA disse...

Amor, como sempre surpreendendo a todos com seu dom e sabedoria ao escrever!Te amo.

Unknown disse...

Obrigado Rê! Como sabes, foi você quem me inspirou à falar sobre o amor. Não há teoria sem a prática e amar você me faz refletir sobre o amor em geral. Amo você! PH

REGINA disse...

Que lindo meu amor...como é bom tê-lo na vida, espero poder para sempre mais um pouquinho ser sua "deusa grega inspiradora".Te amo

Unknown disse...

Parabéns professor! Demais o texto, ou seria uma crônica ? rs
Enfim, parabéns! Apesar do pouco tempo que você deu aula pra mim (apenas 1ºP. ano passado) me sinto lisonjeado de ter recebido informações vindas de você. E ainda espero poder receber um pouco mais. Desejo que continue na faculdade por um bom tempo, pois você faz a diferença por lá. Abraços!

Unknown disse...

Obrigado Raul! É... confesso que há uma caráter de crônica mesmo rsrs. Bem, espero tê-lo por aqui dividindo pensamentos comigo e com os demais. Um grande abraço, mais uma vez obrigado, PH.

Arafat disse...

O amor é uma coisa louca mesmo, quando nos entregamos a ele, sai de baixo!!! como diz em Minas. Mas não é só a visão que é afetada,são todos os sentidos...só se ouve o q se quer,as coisas mudam de sabor todas tem o sabor do amor!!! A vida se enche de cores e ficamos ensandecidos!!! Tá explicado!!! É a loucura que acompanha!!!

Como é bom morrer de amor e continuar vivendo!!!

Parabéns Paulo Henrique por mais um texto belíssimo!!

Unknown disse...

Lindas palavras, Arafat! Obrigado pelo comentário! Grande abraço, PH.

Carla Martins disse...

O texto é, sem dúvida alguma, excelente. Contudo, na minha opinião de simples mortal (e não-filósofa rs), eu diria que o comportamento descrito como sendo do amor, me faz pensar na paixão, algo avassalador. Acredito que o amor seja fruto do amadurecimento da pessoa e do relacionamento.
Muitas vezes nos empolgamos e, como o sentimento está tão intenso, o denominamos como amor. Porém, este sentimento pode ser algo cego e muitas vezes egoísta e exigente. Podendo, algumas vezes, não passar de atração física, de tesão. Entretanto, pode ser que a empolgação evolua e transforme-se em algo mais sereno. Acredito que o amor seja assim: sereno, respeitoso, companheiro, amigo. Acredito que o amor enxergue bem mas sabe ouvir, refletir, respeitar ao próximo e a si mesmo.

Unknown disse...

Carlinha,
Que prazer ver você aqui no blog. Adorei o comentário e concordo muito com a distinção feita por você. Dizem que o amor pode ser "fogo de palha". Acho que é sobre isso que a sua observação diz respeito e que nos convida para uma reflexão demorada. Sem dúvida o amor tem que saber ouvir, refletir, respeitar e ser respeitado, como você tão bem caracterizou. Seu raciocínio é muito instigante: como pode ser o amor guiado pela loucura, se ele deveria ser sereno?
Obrigado pelo comentário e te espero por aqui mais vezes, Bj, PH.